São Paulo, sexta-feira, 06 de janeiro de 2006

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CINEMA

Baseado em livro de ex-combatente, "Soldado Anônimo" mostra recrutas imaturos à espera de combate que não vem

Filme sem ação escancara vazio da guerra

LEILA SUWWAN
DE NOVA YORK

"Soldado Anônimo" é um filme de guerra sem combate, sem herói, sem trama e sem mensagem política. À primeira vista, parece uma proposta cansativa: jovens marines americanos sedentos de sangue, morrendo de tédio e se afogando em testosterona na areia quente do deserto em 1991, na Guerra do Golfo.
A crítica norte-americana não recebeu bem a noção de um filme amorfo sobre a primeira guerra do Iraque enquanto Washington rebola para justificar a segunda. Para o diretor, Sam Mendes ("Estrada para Perdição", "Beleza Americana"), a proposta é mais complexa e a carga política do filme é propositadamente ambígua.
"As pessoas podem ficar um pouco frustradas com um filme que trata tão deliberadamente sobre a futilidade e flerta com a noção de uma guerra, mas não cumpre essa expectativa. Há um perigo nisso, mas, para mim, é deleite", provocou Mendes, às gargalhadas, em entrevista na véspera da estréia norte-americana.
"Soldado Anônimo", baseado no best-seller de Anthony Swofford "Jarhead", conta a história do próprio autor, um garoto de 20 anos que lê Albert Camus, mergulha num treinamento militar brutalizante e praticamente enlouquece à espera de uma guerra que, em solo, nunca acontece.
Os passatempos? Limpeza de rifle, briga de escorpiões, masturbação, bebedeira e hip hop. Numa época de convulsão política, o filme pode não passar de um "reality show" sobre o que acontece com recrutas desamparados e imaturos após meses no deserto.

Sadismo
Hollywood começa a flertar com temas políticos, ainda que embalados para consumo em massa. No caso de "Soldado Anônimo", a crítica só vai existir para quem focar o vazio do filme, o humor amargo e o surrealismo inquietante, marcas de Mendes.
Um marine quer levar um cadáver iraquiano para casa como suvenir e mata camelos por diversão. Um jogo de futebol americano acaba em simulacro sexual para chocar uma jornalista. Difícil não lembrar do sadismo da prisão de Abu-Ghraib.
Há alusões a vacinas experimentais, ao perigo do fogo amigo, à censura nas entrevistas com jornalistas americanos. Provocações a uma irresponsabilidade do comando, à promiscuidade da imprensa? O fato é que os personagens não têm carisma e ninguém vai se comover com a aflição deles: "não matei ninguém hoje".
Quem conseguir assistir até o final, ainda verá cenas absurdas: um cavalo branco, solitário, ensopado de petróleo. Ou, diante de uma chuva do combustível, frases como "A terra está sangrando".
Mas algumas seqüências são mais reflexivas e visualmente interessantes. O sargento Sykes (Jamie Foxx) delira sobre a maravilha da guerra numa visão infernal de petróleo em chamas. Swoff, o narrador (Jake Gyllenhaal), se senta numa roda de corpos de soldados iraquianos carbonizados e pergunta como foi o dia. Uma pergunta assombra o filme: por que os americanos estão ali?
O filme acaba expondo a perversidade e o despropósito da situação por vias tortas, correndo o risco de exasperar demais. "Existe uma pressão nos Estados Unidos para definir tudo, preto no branco, mas isso é confuso. A vida é cheia de áreas cinzentas, imagine uma guerra", diz Mendes.

Entretenimento x reflexão
Com alusões explícitas a clássicos como "Apocalipse Now" (Francis Ford Coppola) e "Nascido para Matar" (Stanley Kubrick), "Soldado Anônimo" se coloca em posição de humildade para evitar comparações e brinca com a noção de que o público e os soldados só conhecem as guerras pela herança cinematográfica.
Para Jamie Foxx, ignorância não é necessariamente o problema. "Você precisa deixar de lado o que aprendeu na faculdade. O povo perde muito tempo "ponderando", bebendo "capuccino'", ironiza. "Sou democrata, mas, com tanta sátira, ironia e piada, a gente fica meio dormente. Este filme é só entretenimento."
Não é bem o que divulgam os escritores. O autor do livro passou dez anos refletindo antes de escrevê-lo e não esconde sua relutância entre a insensatez da guerra e o espírito de união dos marines. O roteirista, William Broyles Jr, é veterano de guerra e tem um filho no Iraque. Ele insiste numa aura ingênua dos soldados, que estão apenas cumprindo ordens e "procurando seu lugar na vida".
Mas, se o filme aborrece e parece às vezes celebrar o tédio e a inutilidade, o livro é objetivamente cru e duro. Para não contar o final do filme, vai o do livro. Swofford diz que o escreveu por solidão e desespero, "um grito silencioso de um caixão". Assume que foi à guerra voluntariamente, mas se envolveu numa "fucked up situation" (situação f...). "Algumas guerras são inevitáveis e precisam ser lutadas, mas isso não elimina o desperdício da guerra. Desculpe-nos, devemos dizer às mães cujos filhos vão ter mortes terríveis. Isso nunca vai acabar. Desculpas", escreve para concluir, agradecido por não ter matado.


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