São Paulo, segunda-feira, 06 de março de 2006

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FORMA&ESPAÇO

Arte e arquitetura ao alcance da mão

GUILHERME WISNIK
COLUNISTA DA FOLHA

Será lançado amanhã, na FAU Maranhão (18h30), "Arquitetura e Trabalho Livre" (Cosacnaify; R$ 65; 456 págs.), reunião de textos críticos do arquiteto e pintor Sérgio Ferro, radicado na França desde 1971, após ter sido preso e exilado pelo regime militar. Com organização e apresentação de Pedro Arantes e posfácio de Roberto Schwarz, é uma contribuição inestimável ao debate arquitetônico contemporâneo, uma vez que reúne ensaios seminais como "O Canteiro e o Desenho" (1976), ao mesmo tempo que apresenta textos inéditos, que atualizam as discussões do autor.
Membro atuante de uma geração que praticou resistência aberta à ditadura militar, Ferro construiu um ponto de vista crítico verdadeiramente radical, que, à diferença de grande parte da sua geração, como notou Schwarz, não se integrou ao realismo conformista, mantendo viva a sua contundência. Contudo não foi pequeno o custo pessoal dessa coerência, pois na França Ferro não teve seu diploma aceito, o que lhe rendeu um compulsório exílio da arquitetura, isolamento que afetou a exemplaridade da sua crítica. Sim, porque o horizonte dessa crítica, apesar da negatividade de base, é essencialmente construtivo. Quero dizer: o substrato do ataque de Ferro à posição do arquiteto -que num momento de radicalização política significou incitação ao abandono do projeto em favor da luta armada- ampara-se, no fundo, em um amor pela construção, resumido na idéia de arte como "manifestação da alegria no trabalho".
Discípulo de Vilanova Artigas, Sérgio Ferro levou o compromisso político e social de sua arquitetura para o campo da crítica à organização do canteiro de obras. Enxergando o papel estratégico e funcional da construção civil dentro da economia política, passou a entender a obra de arquitetura não como um produto acabado, que devia ser olhado segundo critérios estéticos, mas como expressão de um processo de trabalho: violento e alienado. Está aqui a grande diferença em relação ao marxismo de Artigas, que apostava no desenvolvimento da indústria como motor de crescimento do Brasil. Ferro logo percebeu, acertadamente, que, em um país com abundância de mão-de-obra e com organizações arcaicas de trabalho, o "atraso" da construção era estrutural. E que, portanto, era preciso levar adiante soluções construtivas alternativas, quase pré-industriais, como a abóbada de tijolo. Foi essa firme tomada de posição que abriu caminho para miradas críticas posteriores, capazes de enfrentar a complexidade heterogênea das crescentes periferias, em aproximação com organizações populares (mutirões, assentamentos), forçando experimentações coletivas e participativas fora do esquema usual das empreiteiras.
No entanto, a radicalidade de suas posições também suscita dúvidas. Por exemplo: ao entender arte e arquitetura apenas como trabalho, Ferro considera o "projeto" autoral e intelectual um instrumento de opressão, uma vez que impede a participação criativa dos operários no fazer. Igualmente, retira da obra acabada qualquer papel crítico de tensionamento do mundo real, pois, reduzida à condição de mero artesanato, a arte é atividade libertadora apenas para aquele que a produz, no momento do trabalho. Assim, faz o elogio de momentos históricos em que o comando da construção esteve nas mãos de artesãos -como no gótico, ou no ecletismo-, e não de arquitetos, como no Renascimento e na modernidade. Nesse ponto, me pergunto: não há um enorme prejuízo em defender o caráter reiterativo e conservador da tradição artesanal em detrimento dos saltos culturais que apenas a visão totalizadora do "projeto", como conhecimento acumulado, é capaz de dar?
Finalmente, será que o diagnóstico da inviabilidade da industrialização da construção a médio prazo no Brasil justifica uma quase que completa negação das contribuições da indústria à cultura do século 20? Quero dizer que parece haver, em sua visão da arte, uma resistência a incorporar os frutos benéficos e maléficos da indústria cultural, sem a qual não existem cinema, canção de massas ou arte pop, por exemplo. Pois é preciso admitir que a "mão feliz" que, num canteiro livre, pode vir a construir casas -assim como pintar quadros- talvez não seja o paradigma único para uma sociedade complexa que também tem que construir indústrias, estradas e aeroportos.
Sérgio Ferro mantém uma admirável lucidez crítica ao apontar o quanto a virtualidade voraz do capitalismo financeiro, no desenho quase desmaterializado da arquitetura contemporânea -ironicamente indiferente à produção-, implica, na verdade, uma redobrada exploração do trabalho concreto. Lucidez que, no entanto, parece se amparar em uma esperança algo inglória de poder frear a "marcha da história", o que, seguramente, não é uma solução ao alcance da mão.


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