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FORMA&ESPAÇO
Arte e arquitetura ao alcance da mão
GUILHERME WISNIK
COLUNISTA DA FOLHA
Será lançado amanhã, na
FAU Maranhão (18h30), "Arquitetura e Trabalho Livre" (Cosacnaify; R$ 65; 456 págs.), reunião de textos críticos do arquiteto e pintor Sérgio Ferro, radicado
na França desde 1971, após ter sido preso e exilado pelo regime
militar. Com organização e apresentação de Pedro Arantes e posfácio de Roberto Schwarz, é uma
contribuição inestimável ao debate arquitetônico contemporâneo,
uma vez que reúne ensaios seminais como "O Canteiro e o Desenho" (1976), ao mesmo tempo
que apresenta textos inéditos, que
atualizam as discussões do autor.
Membro atuante de uma geração que praticou resistência aberta à ditadura militar, Ferro construiu um ponto de vista crítico
verdadeiramente radical, que, à
diferença de grande parte da sua
geração, como notou Schwarz,
não se integrou ao realismo conformista, mantendo viva a sua
contundência. Contudo não foi
pequeno o custo pessoal dessa
coerência, pois na França Ferro
não teve seu diploma aceito, o que
lhe rendeu um compulsório exílio
da arquitetura, isolamento que
afetou a exemplaridade da sua
crítica. Sim, porque o horizonte
dessa crítica, apesar da negatividade de base, é essencialmente
construtivo. Quero dizer: o substrato do ataque de Ferro à posição
do arquiteto -que num momento de radicalização política significou incitação ao abandono do
projeto em favor da luta armada- ampara-se, no fundo, em
um amor pela construção, resumido na idéia de arte como "manifestação da alegria no trabalho".
Discípulo de Vilanova Artigas,
Sérgio Ferro levou o compromisso político e social de sua arquitetura para o campo da crítica à organização do canteiro de obras.
Enxergando o papel estratégico e
funcional da construção civil dentro da economia política, passou a
entender a obra de arquitetura
não como um produto acabado,
que devia ser olhado segundo critérios estéticos, mas como expressão de um processo de trabalho:
violento e alienado. Está aqui a
grande diferença em relação ao
marxismo de Artigas, que apostava no desenvolvimento da indústria como motor de crescimento
do Brasil. Ferro logo percebeu,
acertadamente, que, em um país
com abundância de mão-de-obra
e com organizações arcaicas de
trabalho, o "atraso" da construção era estrutural. E que, portanto, era preciso levar adiante soluções construtivas alternativas,
quase pré-industriais, como a
abóbada de tijolo. Foi essa firme
tomada de posição que abriu caminho para miradas críticas posteriores, capazes de enfrentar a
complexidade heterogênea das
crescentes periferias, em aproximação com organizações populares (mutirões, assentamentos),
forçando experimentações coletivas e participativas fora do esquema usual das empreiteiras.
No entanto, a radicalidade de
suas posições também suscita dúvidas. Por exemplo: ao entender
arte e arquitetura apenas como
trabalho, Ferro considera o "projeto" autoral e intelectual um instrumento de opressão, uma vez
que impede a participação criativa dos operários no fazer. Igualmente, retira da obra acabada
qualquer papel crítico de tensionamento do mundo real, pois, reduzida à condição de mero artesanato, a arte é atividade libertadora apenas para aquele que a
produz, no momento do trabalho. Assim, faz o elogio de momentos históricos em que o comando da construção esteve nas
mãos de artesãos -como no gótico, ou no ecletismo-, e não de
arquitetos, como no Renascimento e na modernidade. Nesse ponto, me pergunto: não há um enorme prejuízo em defender o caráter reiterativo e conservador da
tradição artesanal em detrimento
dos saltos culturais que apenas a
visão totalizadora do "projeto",
como conhecimento acumulado,
é capaz de dar?
Finalmente, será que o diagnóstico da inviabilidade da industrialização da construção a médio
prazo no Brasil justifica uma quase que completa negação das contribuições da indústria à cultura
do século 20? Quero dizer que parece haver, em sua visão da arte,
uma resistência a incorporar os
frutos benéficos e maléficos da indústria cultural, sem a qual não
existem cinema, canção de massas ou arte pop, por exemplo. Pois
é preciso admitir que a "mão feliz" que, num canteiro livre, pode
vir a construir casas -assim como pintar quadros- talvez não
seja o paradigma único para uma
sociedade complexa que também
tem que construir indústrias, estradas e aeroportos.
Sérgio Ferro mantém uma admirável lucidez crítica ao apontar
o quanto a virtualidade voraz do
capitalismo financeiro, no desenho quase desmaterializado da
arquitetura contemporânea
-ironicamente indiferente à
produção-, implica, na verdade,
uma redobrada exploração do
trabalho concreto. Lucidez que,
no entanto, parece se amparar em
uma esperança algo inglória de
poder frear a "marcha da história", o que, seguramente, não é
uma solução ao alcance da mão.
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