São Paulo, segunda-feira, 06 de março de 2006

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LITERATURA

Fábula ácida lançada em Portugal descreve, em tom de farsa, os valores dos novos-ricos do país africano

Pepetela alfineta a nova elite de Angola

Macarena Lobos - 3.dez.2003/Folha Imagem
O escritor angolano Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, o Pepetela, que lança "Predadores"


DENISE MOTA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Faz 30 anos que Angola atingiu a independência. Os frutos sociais dessa acidentada caminhada para a autodeterminação -o país saiu da égide portuguesa e passou para as mãos do MPLA (Movimento Popular para a Libertação de Angola) não sem poucos embates com a Unita (União Nacional para a Independência Total de Angola), numa guerra civil que deixou cerca de 2 milhões de mortos- servem de mote para "Predadores", novo livro do angolano Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, o Pepetela, vencedor do Prêmio Camões em 1997.
Em tom de farsa, com o deboche em alta e o pensamento sempre irônico e fluido que o caracteriza, o autor desenha uma república cuja elite política, econômica e intelectual está infestada de gente preocupada com algo em nada referente à "libertação de Angola", menos ainda dos angolanos.
Ainda sem previsão de lançamento no Brasil, "Predadores" acompanha as empreitadas de um "cidadão exemplar" de Angola, como qualifica logo de início Pepetela. Vladimiro Caposso, protagonista do romance, é um homem que, nascido pobre e inexpressivo politicamente, se provará um ás do tráfico de influência quando os portugueses fogem desesperados às vésperas de um poder africano assumir o comando do país.
Camaleônico, em um momento em que para a maioria havia insegurança, pobreza e ruínas, aí é justamente quando Caposso começa a se reinventar. Muda de história, de amigos, altera o nome, arranja uma religião, entende "a psicologia do momento", segundo explica o autor, e constrói um patrimônio milionário.
Ao seu redor, com ele, acima dele ou sob suas ordens, dentro de seus pensamentos e a manobrar suas jogadas, habitam seres que visam o máximo lucro e o mínimo esforço, os predadores de Pepetela. "Quem detém o poder financeiro vem de várias origens. Caposso arrancou para a fortuna através das suas atividades no partido dominante, que lhe permitiram os primeiros meios de enriquecimento. Foi "político" quando lhe convinha", diz o autor de 64 anos.
Apesar de lançado num momento em que o país caminha para um novo pleito, assunto sobre o qual Pepetela demonstra ceticismo ("Parece-me que setembro de 2007 é a data ideal para o partido no poder apresentar realizações importantes e ganhar mais uma vez as eleições"), o autor afasta a percepção de que seu livro tenha como objetivo criticar o estado de coisas em um país há três décadas sob controle da mesma agrupação política.
"Caposso é um personagem que de fato tem algumas características de um setor da nova burguesia, os emergentes. Mas não pretende ser o retrato da alta sociedade atual."
No entanto, apesar do tom bem-humorado que imprime ao livro, o escritor -ele mesmo um ex-guerrilheiro a serviço do "partido no poder" e que foi nomeado vice-ministro de Educação em 1976, posição que deixaria em 1982- não esconde, ao longo da narrativa, seu desapontamento.
Quando Caposso promove uma elegante reunião com autoridades governamentais em sua fazenda, por exemplo, escreve: "(...) Todos riram. A regra do novo regime era essa (...), ninguém gastava dinheiro inutilmente com a coletividade. O dinheiro só servia para produzir mais dinheiro ou para esbanjar em ações de prestígio".
O autor também descarta que sua ficção embuta apontamentos sociológicos, mas mergulha nas preocupações, transformações e hábitos de famílias à margem do "novo mundo" em andamento.
Antagonista moral de Caposso, o garoto Nacib -nome recebido como homenagem dos pais ao personagem de "Gabriela", a primeira telenovela exibida em Angola, em 1977-, criado sem leite, acostumado a almoçar apenas "arroz e um pouco de peixe frito, o prato mais barato do mercado" -como anota Pepetela-, contraria a estatística e se torna engenheiro. Contraria a "psicologia do momento" e não se afasta dos parentes, que continuam a viver num bairro miserável.
Com o cruzamento dessas realidades, o autor monta uma fábula ácida e sem moral ao fim, exposição de uma cadeia alimentar impulsionada por poder e prestígio na qual nenhuma espécie termina por sobreviver impunemente.
"Não faço a mínima idéia de o que os angolanos aprenderam [ao longo dos últimos 30 anos]. Mas parece-me que há uma certeza muito grande: guerra nunca mais."

Predadores
    
Autor:
Pepetela
Editora: Dom Quixote (Portugal)
Quanto: 17, em média (383 págs.)



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