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Crítica/ "Crônicas de Bustos Domecq e Novos Contos de Bustos Domecq"
Borges e Bioy satirizam a Argentina
Heterônimo, criado pela dupla nos anos 40, ataca com humor a política e a impostura das vanguardas artísticas do país
JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA
Bustos Domecq, como se
sabe, é um autor inventado, um heterônimo
criado pelos escritores argentinos Jorge Luis Borges (1899-1986) e Adolfo Bioy Casares
(1914-99) para satirizar a vida
cultural e política argentina.
Dos anos 40 aos 70, Borges e
Bioy se divertiram escrevendo
crônicas, contos, artigos de crítica e histórias policiais sob a
assinatura de Domecq.
A editora Globo lança agora
no Brasil, agregados em um volume, dois livros dessa produção heterônima, um de crônicas e outro de contos.
O primeiro reúne textos de
crítica literária e estética e é
uma faca de dois gumes: um
voltado para o ranço beletrista,
provinciano e vazio de certa intelectualidade portenha, representado na própria linguagem
cheia de firulas de Bustos Domecq; o outro ferindo sem piedade a impostura das vanguardas literárias e visuais.
São textos divertidíssimos,
em que o "autor", com disposição bajuladora, exalta produções como a de um escritor que
se limita a grafar, em cada um
de seus livros, uma única palavra; ou a do arquiteto cuja
"obra" consiste no espaço entre
edifícios, árvores, objetos e seres já existentes.
Os retorcidos argumentos de
que Bustos Domecq lança mão
para valorizar os artistas abordados e fulminar seus detratores são uma impagável aula de
retórica barroca.
No segundo livro, o de contos, persiste a mordacidade da
crítica, mas com uma volta a
mais do parafuso, uma vez que
Bustos Domecq cria outras vozes (as de seus personagens),
obrigando Borges e Bioy a exercer todo o seu virtuosismo.
Nessas ficções criadas por um
personagem fictício (Domecq),
a vida argentina aparece duplamente refratada.
Em meio a histórias cômicas,
vividas por personagens patéticos, cujas grandes ambições
contrastam com as patifarias
do dia-a-dia, destaca-se como
um corpo estranho um conto
terrível em sua violência, "A
Festa do Monstro".
Trata-se do relato em primeira pessoa, por um participante, do linchamento de um
jovem judeu por militantes peronistas que se dirigem a um
comício de seu líder.
Nos detalhes sórdidos relatados, na psicologia boçal do narrador e sobretudo na exacerbação da italianada gíria popular
portenha, Borges e Bioy parecem expressar todo o seu horror pelo populismo truculento
e obscurantista de Juan Domingo Perón (1895-1974).
Como observa Davi Arrigucci
no prefácio, muito desse horror
provém da postura aristocrática e conservadora dos autores,
assustados diante da emergência das massas trabalhadoras
urbanas que vinham corromper a velha Argentina.
Que importa? Mesmo os
grandes artistas são tributários
de seu tempo e de suas origens.
Mas sua arte segue nos encantando e assombrando.
CRÔNICAS DE BUSTOS DOMECQ
E NOVOS CONTOS DE BUSTOS
DOMECQ
Autores: Jorge Luis Borges e Adolfo
Bioy Casares
Tradução: Maria Paula Gurgel Ribeiro
Editora: Globo
Quanto: R$ 42 (253 págs.)
Avaliação: ótimo
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