São Paulo, sábado, 06 de março de 2010

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Crítica/ "Crônicas de Bustos Domecq e Novos Contos de Bustos Domecq"

Borges e Bioy satirizam a Argentina

Heterônimo, criado pela dupla nos anos 40, ataca com humor a política e a impostura das vanguardas artísticas do país

JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA

Bustos Domecq, como se sabe, é um autor inventado, um heterônimo criado pelos escritores argentinos Jorge Luis Borges (1899-1986) e Adolfo Bioy Casares (1914-99) para satirizar a vida cultural e política argentina. Dos anos 40 aos 70, Borges e Bioy se divertiram escrevendo crônicas, contos, artigos de crítica e histórias policiais sob a assinatura de Domecq.
A editora Globo lança agora no Brasil, agregados em um volume, dois livros dessa produção heterônima, um de crônicas e outro de contos. O primeiro reúne textos de crítica literária e estética e é uma faca de dois gumes: um voltado para o ranço beletrista, provinciano e vazio de certa intelectualidade portenha, representado na própria linguagem cheia de firulas de Bustos Domecq; o outro ferindo sem piedade a impostura das vanguardas literárias e visuais.
São textos divertidíssimos, em que o "autor", com disposição bajuladora, exalta produções como a de um escritor que se limita a grafar, em cada um de seus livros, uma única palavra; ou a do arquiteto cuja "obra" consiste no espaço entre edifícios, árvores, objetos e seres já existentes. Os retorcidos argumentos de que Bustos Domecq lança mão para valorizar os artistas abordados e fulminar seus detratores são uma impagável aula de retórica barroca.
No segundo livro, o de contos, persiste a mordacidade da crítica, mas com uma volta a mais do parafuso, uma vez que Bustos Domecq cria outras vozes (as de seus personagens), obrigando Borges e Bioy a exercer todo o seu virtuosismo.
Nessas ficções criadas por um personagem fictício (Domecq), a vida argentina aparece duplamente refratada. Em meio a histórias cômicas, vividas por personagens patéticos, cujas grandes ambições contrastam com as patifarias do dia-a-dia, destaca-se como um corpo estranho um conto terrível em sua violência, "A Festa do Monstro".
Trata-se do relato em primeira pessoa, por um participante, do linchamento de um jovem judeu por militantes peronistas que se dirigem a um comício de seu líder. Nos detalhes sórdidos relatados, na psicologia boçal do narrador e sobretudo na exacerbação da italianada gíria popular portenha, Borges e Bioy parecem expressar todo o seu horror pelo populismo truculento e obscurantista de Juan Domingo Perón (1895-1974).
Como observa Davi Arrigucci no prefácio, muito desse horror provém da postura aristocrática e conservadora dos autores, assustados diante da emergência das massas trabalhadoras urbanas que vinham corromper a velha Argentina. Que importa? Mesmo os grandes artistas são tributários de seu tempo e de suas origens. Mas sua arte segue nos encantando e assombrando.


CRÔNICAS DE BUSTOS DOMECQ E NOVOS CONTOS DE BUSTOS DOMECQ

Autores: Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares
Tradução: Maria Paula Gurgel Ribeiro
Editora: Globo
Quanto: R$ 42 (253 págs.)
Avaliação: ótimo




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