São Paulo, sexta-feira, 06 de abril de 2007

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CARLOS HEITOR CONY

O milagre da banana

De tanto adiar meu projeto de ser santo fui me tornando descrente de tudo

TODA SEXTA-FEIRA Santa, como a de hoje, eu relembro não exatamente a morte de Cristo, mas a morte de um projeto meu, aliás, o único projeto de vida que tive e não realizei: eu queria ser santo. Ser santo, para mim, não era ser virtuoso, entregue a orações e penitências, pensando bem, nunca fui religioso no sentido usual, apesar dos anos que passei num seminário católico, era terreno, material, mundano, embora soubesse que devia amaldiçoar o diabo, o mundo e a carne.
Eu queria ser santo para fazer milagres. Os heróis do meu tempo de menino eram os personagens das histórias em quadrinhos, Tarzan, Flash Gordon, Mandrake, X-9, o Ás Drumond, Jim das Selvas, Fantasma, Batman e o Capitão Marvel. Eu os apreciava, mas não queria ser como eles, enfrentavam muitos perigos, corriam riscos que não me atraiam.
Faziam maravilhas, é certo, mas não faziam milagres. Além do mais, eram personagens de ficção, não podia imitá-los porque, entre outras coisas, não tinha inimigos poderosos nem vontade de salvar os outros, apenas de me salvar.
Os santos eram diferentes, não enfrentavam tantos perigos assim, e só tinham o demônio como inimigo -um inimigo que podiam vencer com um pouco de água benta e uma ave-maria. Em compensação, faziam milagres formidáveis. Santo Antônio tinha o dom da ubiqüidade, transportava-se fisicamente pelo espaço de forma mais sadia que qualquer herói do "Suplemento Juvenil". Estava pregando numa igreja e comparecia a um tribunal distante para depor a favor de um inocente. Pregava na praia e os peixes vinham à tona para escutá-lo.
Geraldo Magela foi um santo que chegou a ser proibido de fazer milagres. O bispo o chamou e disse que ele estava atrapalhando o rebanho de fiéis, que o procuravam diretamente, passando por cima da própria igreja. Saindo da casa do bispo, Geraldo Magela viu um operário despencando de um andaime.
Tendo prometido não mais fazer milagres, ele mandou que o operário ficasse parado no ar e voltou ao bispo, expôs a situação, o bispo foi ver e viu o operário parado no ar. Diante da situação extrema, abriu uma exceção e deixou Geraldo Magela fazer o resto do milagre. O operário pousou tranqüilamente no chão.
Ora, para fazer proezas iguais eu precisava ser santo e lá fui para o seminário, onde acreditava que podia me entregar a uma vida devota que me desse poderes sobrenaturais. Na primeira refeição de minha nova vida, havia uma enorme banana d'água como sobremesa. Imaginei que poderia, um dia, transformar aquela banana em ouro, seria bom para todos, para a igreja, os fiéis e para mim. Os meus superiores teriam de escrever ao papa uma carta em latim dizendo que um aluno transformava bananas em ouro. Perguntei aos meus colegas como era banana em latim. Não podia ser "banana", nominativo, e "bananae", genitivo.
Um outro aluno, do terceiro ano, também não sabia, mas sabia embromar. Disse que os romanos não conheciam a banana, fruta tropical, logo não tinham necessidade de dar nome para uma coisa que não existia para eles.
Ouvi as explicações. Ninguém me perguntou por que diabo eu logo no primeiro dia queria saber como era banana em latim. Decidi esperar um pouco, adiando minha vontade de fazer milagres. Além de ignorante, eu não era santo o suficiente para curar paralíticos, fazer os cegos enxergarem, curar doentes, nem mesmo fazer de uma simples banana um pouco de ouro que ajudaria a evangelização dos pagãos da Manchúria.
De tanto adiar meu projeto de ser santo e realizar milagres, fui me tornando descrente de tudo, de mim mesmo principalmente. Fiz uma revisão das promessas feitas de abjurar o mundo e a carne. Ainda não cheguei ao ponto lastimável de fazer um pacto com o demônio, que também faz milagres ao jeito dele.
Eu era louco por tortas de banana (banana normal, sem ser de ouro). Fiz uma besteira qualquer e o pai me castigou, proibindo que minha mãe me desse o pedaço que me competia. Nesse dia, eu vendi minha alma ao demônio, que não me deu o ar de seu enxofre. Pensou -e pensou certo- que minha alma não valia um pedaço de torta de banana.


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