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CARLOS HEITOR CONY
A correção política e verbal
Semana passada, numa palestra em Fortaleza, perguntaram-me sobre a necessidade de
um melhor diálogo da igreja com
a sociedade. É evidente que não
sou autoridade nem tenho especial interesse no assunto, mas
questionei as duas palavras-chaves da pergunta: "sociedade" e
"diálogo". No caso específico da
igreja, ela se preocupa não com a
sociedade, mas com a humanidade, que é a mesma desde que o
mundo foi criado e habitado por
mais de um homem. Houve um
papa, não sei se João 23 ou Paulo
6º, que lembrou ser a igreja uma
"expert" em homem. É isso aí.
Quanto à sociedade, o próprio
fundador do cristianismo a ignorou, pregando não para ela, mas
para a humanidade, da qual seus
crentes até hoje o consideram salvador. Ele próprio afirmou que a
sua pessoa, o seu reino, a sua fundação não eram deste mundo,
embora estivessem no mundo e,
no caso da igreja, fosse ela constituída por mundanos, ou seja, por
homens, sujeitos aos mil acidentes
da história e da carne.
A outra palavra, "diálogo", vem
sendo usada, abusada e até mesmo profanada em determinadas
situações. Já foi dito por gente
mais ilustre, como Schopenhauer
e Nietzsche, que ninguém muda a
opinião de ninguém. Por questão
de educação, conveniência ou fadiga, aceita-se a argumentação
do contraditório, mas nenhum
argumento é suficientemente forte para modificar a soma de conceitos, preconceitos e intuições
que cada um formou ao longo da
vida. E usamos hoje a palavra
diálogo como um eufemismo de
"convencer". Quatro prisioneiros
de uma tribo de antropófagos estão ao lado do caldeirão que os
assará. Os selvagens começam a
festa, abrindo o apetite com cantorias e danças. Um dos prisioneiros recebe dos demais a missão de
ir "dialogar" com os esfomeados.
No caso da igreja, ela tem um
púlpito para pregar o que julga
necessário. Ainda que só tenha
um fiel ou que não tenha nem isso, o púlpito lá está e, dentro dele,
a mensagem que ela guarda há
2.000 anos. Quem não quiser ouvi-la tem a porta do templo aberta. Lutero foi embora por essa porta quando visitou Roma e, em outra porta, na catedral de Wittenberg, afixou sua bula, rompendo
com a igreja e com o papa, criando outro púlpito, mais liberal,
mais moderno, que deu lugar a
outros e numerosos púlpitos, que
acabaram até no púlpito eletrônico do bispo Macedo. (De forma
bem mais modesta, eu também
saí pela mesma porta.)
Volto à palestra de Fortaleza. Os
dois termos da pergunta, igreja e
sociedade, mereciam ser explicitados. Que tipo de igreja sobrevive
no século 21? Ela é perfeita, irretocável? É evidente que não. Mas isso é problema exclusivo dela, de
seus papas, bispos, concílios, sínodos, de sua tradição baseada numa respeitável literatura patrística. Se está ou não adequada à sociedade, o problema é saber que
tipo de sociedade é esse, ou seja, a
sociedade atual, pois houve centenas de sociedades que também se
consideraram o estágio mais
avançado da civilização, da ciência, da técnica e da moral.
E fica a pergunta: a sociedade
atual é flor que se cheire? Basta
abrirmos um jornal, ligarmos o
rádio ou a TV, basta abrirmos a
janela que dá para a rua ou
olharmos para dentro de nossa
própria casa, para dentro de nós
mesmos, para ficarmos sabendo
(se antes não o sabíamos) que estamos longe daquilo que poderíamos chamar de sociedade ideal ou
de algo próximo disso.
Só para ficar em fatos e coisas
recentes: a invasão do Iraque, o
atentado ao World Trade Center,
a chacina na Baixada Fluminense, a suposta pedofilia do Michael
Jackson, a eleição do Severino -a
lista seria infinita se houvesse a
necessidade de provar que a sociedade na qual vivemos não merece
ser levada a sério.
Sim, temos avanços notáveis
-a roda inventada pelo sumérios, as caravelas dos descobridores do século 16, o celular, a internet, o barbeador de três lâminas,
o peru congelado que já vem com
um termômetro no peito para
apitar na hora em que estiver
pronto. Grande e admirável
mundo novo!
Mais sintomático do que o barbeador de três lâminas e do que o
peru com termômetro no peito, os
entendidos descobriram que as
ações e palavras devem ser politicamente corretas, adequadas à
sociedade correta em que vivemos. O poema de Jorge de Lima
"Essa Nêga Fulô" deverá ser recitado como "Essa Afrodescendente
Fulô". E a obra prima do folclore
gaúcho "O Negrinho do Pastoreio" será corrigido para "O Afrodescendente do Pastoreio". De
hora em hora, a sociedade melhora?
No caso específico da igreja, ela
terá de se modificar tanto e tamanhamente que uma de suas mais
belas antífonas, que ela herdou
do Velho Testamento, seria atualizada para dialogar com a sociedade correta. No "Cântico dos
Cânticos", onde o ritual cristão
foi buscar dezenas de citações, está o maravilhoso verso atribuído
a Salomão: "Sou negra e formosa,
por isso o rei me amou e me introduziu em sua alcova". Além de
substituir o "negra" por "afrodescendente", terão de trocar o rei
pelo presidente da República. A
sociedade politicamente correta
não é monárquica. Só serão tolerados os quatro reis do baralho.
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