São Paulo, domingo, 06 de junho de 2004

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CRÍTICA

A dor e a delícia da transmissão do futebol

BIA ABRAMO
COLUNISTA DA FOLHA

Dá para entender por que a TV norte-americana ainda resiste tanto ao futebol -o de verdade, bem entendido.
É um jogo ruim demais para a transmissão televisiva: cada bloco dura uma eternidade em termos de tempo de TV; pode não acontecer nada; o campo é enorme, inenquadrável; tudo acontece ao rés do chão, longe, portanto, do rosto dos jogadores, e essa lista poderia continuar ainda mais um tanto.
De certa maneira, as imagens que os outros esportes oferecem com muito mais generosidade -o lance espetacular, o corpo do atleta em poses inacreditáveis, a beleza de certos movimentos- custam a sair numa partida de futebol, que exige de seu espectador muito mais paciência e atenção. Daí que toda transmissão de jogo de futebol tenda a se transformar em narrativa, de preferência dramática.
O drama pode partir de rivalidades históricas entre times locais, da importância do jogo ou do fato de o time representar o país, mas é quase sempre um drama anunciado. Há menos de reportagem em uma transmissão de futebol do que de ficção. Em geral, o trabalho é fazer o drama previsto "bater" com aquilo que acontece de fato em campo. Narração, comentários, edição, via de regra, dedicam-se a ajustar a realidade do jogo ao roteiro imaginado.
Quando se trata da seleção brasileira, o drama ganha inflexões patrióticas irresistíveis e nos dois lados, ou seja, no lado de quem narra e no lado de quem ouve. A cada jogo, importante ou não, a honra do país está em campo, e o resultado do placar reafirma a dor ou a delícia de ser brasileiro.
Mas o patriotismo, assim como outras moedas de troca simbólica, também tem lá seus modismos -e parece, mais ainda só parece, que, depois de uma confortabilíssima posição de pentacampeão na Copa do Mundo, o ufanismo da vez é mais contido.
Com todo seu histórico de exagero caricato, o apresentador Galvão Bueno, um competente tradutor desse estado de espírito do país, vem imprimindo um tom mais sóbrio às transmissões dessas rodadas das eliminatórias da Copa de 2006.
Claro, continuam os cacoetes -seu "Ronaldo" de muitos erres, muitíssimo bem imitado no "Casseta & Planeta", por exemplo, está intacto. Mas, mesmo em um jogo quase que naturalmente dramático como o desta semana que passou, contra a arquiinimiga Argentina, há menos entusiasmo artificial, menos desculpas para encobrir os tradicionais erros da defesa e desqualificação do adversário.
Ainda é cedo para afirmar que o patriotismo menos ruidoso prevalecerá até 2006. O que prossegue no mesmo lugar é a cafajestada machista das propagandas de cerveja, coisa que parece construir o caráter nacional ainda mais do que o drama encenado pelas partidas de futebol.


@ - biabramo.tv@uol.com.br


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