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CRÍTICA
A dor e a delícia da transmissão do futebol
BIA ABRAMO
COLUNISTA DA FOLHA
Dá para entender por que a
TV norte-americana ainda
resiste tanto ao futebol -o de
verdade, bem entendido.
É um jogo ruim demais para a
transmissão televisiva: cada bloco dura uma eternidade em termos de tempo de TV; pode não
acontecer nada; o campo é enorme, inenquadrável; tudo acontece ao rés do chão, longe, portanto, do rosto dos jogadores, e essa
lista poderia continuar ainda
mais um tanto.
De certa maneira, as imagens
que os outros esportes oferecem
com muito mais generosidade
-o lance espetacular, o corpo do
atleta em poses inacreditáveis, a
beleza de certos movimentos-
custam a sair numa partida de
futebol, que exige de seu espectador muito mais paciência e atenção. Daí que toda transmissão de
jogo de futebol tenda a se transformar em narrativa, de preferência dramática.
O drama pode partir de rivalidades históricas entre times locais, da importância do jogo ou
do fato de o time representar o
país, mas é quase sempre um
drama anunciado. Há menos de
reportagem em uma transmissão
de futebol do que de ficção. Em
geral, o trabalho é fazer o drama
previsto "bater" com aquilo que
acontece de fato em campo. Narração, comentários, edição, via
de regra, dedicam-se a ajustar a
realidade do jogo ao roteiro imaginado.
Quando se trata da seleção brasileira, o drama ganha inflexões
patrióticas irresistíveis e nos dois
lados, ou seja, no lado de quem
narra e no lado de quem ouve. A
cada jogo, importante ou não, a
honra do país está em campo, e o
resultado do placar reafirma a
dor ou a delícia de ser brasileiro.
Mas o patriotismo, assim como
outras moedas de troca simbólica, também tem lá seus modismos -e parece, mais ainda só
parece, que, depois de uma confortabilíssima posição de pentacampeão na Copa do Mundo, o
ufanismo da vez é mais contido.
Com todo seu histórico de exagero caricato, o apresentador
Galvão Bueno, um competente
tradutor desse estado de espírito
do país, vem imprimindo um
tom mais sóbrio às transmissões
dessas rodadas das eliminatórias
da Copa de 2006.
Claro, continuam os cacoetes
-seu "Ronaldo" de muitos erres, muitíssimo bem imitado no
"Casseta & Planeta", por exemplo, está intacto. Mas, mesmo em
um jogo quase que naturalmente
dramático como o desta semana
que passou, contra a arquiinimiga Argentina, há menos entusiasmo artificial, menos desculpas
para encobrir os tradicionais erros da defesa e desqualificação
do adversário.
Ainda é cedo para afirmar que
o patriotismo menos ruidoso
prevalecerá até 2006. O que prossegue no mesmo lugar é a cafajestada machista das propagandas de cerveja, coisa que parece
construir o caráter nacional ainda mais do que o drama encenado pelas partidas de futebol.
@ - biabramo.tv@uol.com.br
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