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"Não existe "número um" na música"
Ganhador de 15 prêmios Grammy, o violoncelista Yo-Yo Ma faz três recitais em SP e diz rejeitar a fama de melhor do mundo
"É importante para um músico ser especialista e generalista", diz americano, conhecido por usar o violoncelo na música popular
JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL
O violoncelista americano
Yo-Yo Ma, 51, fará neste mês
três recitais para o público paulistano: no dia 18, na Sala São
Paulo, em concerto beneficente da CIP (Congregação Israelita Paulista), e nos dias 19 e 20,
na temporada da Sociedade de
Cultura Artística, no teatro daquela entidade (os dois últimos
com ingressos esgotados). Sua
acompanhante será a pianista
britânica Kathryn Stott.
O programa dos três concertos será o mesmo. De Franz
Schubert, a "Sonata Arpeggione"; de Dmitri Chostakovich, a
"Sonata op. 40"; de Astor Piazzolla, "Le Grand Tango"; de Egberto Gismonti e Geraldo Carneiro, "Bodas de Prata" e "Quatro Cantos"; e, de César Franck,
sua "Sonata em Lá Maior".
De origem chinesa, mas nascido em Paris, Yo-Yo Ma já gravou 75 LPs e CDs, 15 deles premiados com o Grammy.
Em conversa com a Folha
por telefone, de Nova York, na
última quinta-feira, ele fez expressos elogios a Mstislav Rostropovich (1927-2007), qualificando-o de "mestre". Mas disse
não aceitar que o promovam à
posição de "número um" em
seu instrumento após a recente
morte do violoncelista russo.
Essa hierarquização, diz ele na
entrevista, é própria aos esportes, não à música.
FOLHA - Como explicar que o violoncelo tenha se tornado, com o sr.,
um instrumento para a interpretação de música popular?
YO-YO MA - Nos últimos dez ou
15 anos, conheci um número
razoável de violoncelistas mais
jovens que buscava novas aplicações ao nosso instrumento.
Muitos compositores também
passaram a escrever para o violoncelo, buscando instrumentistas curiosos pela obtenção de
novas sonoridades. É algo absolutamente excitante, que me
deixa feliz por ter uma parcela
dessa experiência. Creio que,
no futuro, esse movimento,
ainda limitado, vá se ampliar.
FOLHA - Mas não há também um
credenciamento fornecido pelo fato
de o sr. ter se tornado conhecido como um intérprete clássico?
YO-YO - Sempre acreditei que é
importante para um músico ser
ao mesmo tempo um especialista e um generalista. Há uma
disciplina própria ao repertório
que inclui Bach, Beethoven ou
Schubert. Nesse campo, todos
nós tivemos um imenso mestre, Rostropovich, que nos deixou há poucas semanas. Essa
disciplina fornece uma visão
sobre as sonoridades que violoncelistas de outras áreas procuram alcançar.
FOLHA - Por falar em Bach, quantas
vezes o sr. já gravou as "Seis Suítes
para Violoncelo Solo"?
YO-YO - Eu o fiz duas vezes e
acredito que já seja o bastante.
Creio que na primeira delas havia uma mistura de inocência e
arrogância da juventude. A segunda gravação foi bem mais
madura, uma espécie de tentativa de entender a música de
Bach a partir da leitura de Albert Schweitzer [1875-1965;
musicólogo e cirurgião francês,
Prêmio Nobel da Paz em 1952],
que o descrevia como um compositor pictural.
FOLHA - Poucas pessoas ainda se
lembram de Schweitzer...
YO-YO - O que é uma pena. Ele
escreve sobre a música de uma
maneira tão incrivelmente bela. Ele acredita que a música de
Bach é mais ou menos como
uma semente plantada na alma
das pessoas. A criatividade consiste em acompanhar o crescimento dessa semente.
FOLHA - Rostropovich morreu em
abril. Ele era considerado o "número
um" de seu instrumento. Como o sr.
reage quando alguém afirma que
agora o "número um" é o sr.?
YO-YO - Eu não acredito que
exista na música algo assimilável a um "número um". Nas
competições esportivas há
sempre um confronto, um vencedor e um perdedor, que seguem marcando ou perdendo
pontos. Mas na música não há
vencedores nem perdedores, e
sim vozes diferenciadas que dizem muitas vezes as mesmas
coisas. São vozes singulares,
únicas. Ao mesmo tempo, elas
dialogam com as outras vozes
que procuram entender a música. Nunca gostei de concursos
de instrumentistas por causa
disso: pela ilusão de que haveria um primeiro, um segundo
ou um terceiro. As coisas não
são simples assim. Nenhuma
pessoa é superior a outra por
preferir determinada praia para se banhar em lugar de outra.
FOLHA - Em São Paulo, o sr. interpretará Chostakovich. Será que ele
não foi menos tocado por idiossincrasias políticas, voltando à evidência no ano passado, com o centenário de seu nascimento?
YO-YO - Chostakovich nasceu
em 1906 e atravessou a Revolução Russa, o período de Stálin, a
Guerra Fria. Muito da música
que escreveu representa um tipo de testemunho sonoro das
decisões difíceis que muitos artistas foram obrigados a tomar.
Creio que, de certo modo, ele
sentisse uma espécie de dor e
de sentimento de culpa por ter
sido sobrevivente. É como se a
música dele fosse ao mesmo
tempo a voz dos que não puderam ser ouvidos. Quando a
União Soviética entrou em colapso, foi compreensível que
muitos buscassem esquecer
um pouco essa realidade pesada. Agora, podemos voltar nossos olhares para esse período,
lembrarmos dos odores, dos
sons e das paisagens que Chostakovich traz em sua música.
FOLHA - O sr. já gravou Villa-Lobos,
Tom Jobim e outros. Está em seus
planos voltar a gravar brasileiros?
YO-YO - O Brasil tem, musicalmente, uma energia criativa incrível. Sempre me surpreendo
com isso ao sentir o pulso dessa
energia musical. Estou obviamente interessado em consultar partituras de Villa-Lobos,
conversar com músicos. Villa-Lobos foi originariamente um
violoncelista. Ele também tem
uma interessantíssima descrição sinfônica de Nova York
["New York Skyline"].
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