São Paulo, quarta-feira, 06 de junho de 2007

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"Não existe "número um" na música"

Ganhador de 15 prêmios Grammy, o violoncelista Yo-Yo Ma faz três recitais em SP e diz rejeitar a fama de melhor do mundo

"É importante para um músico ser especialista e generalista", diz americano, conhecido por usar o violoncelo na música popular


JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL

O violoncelista americano Yo-Yo Ma, 51, fará neste mês três recitais para o público paulistano: no dia 18, na Sala São Paulo, em concerto beneficente da CIP (Congregação Israelita Paulista), e nos dias 19 e 20, na temporada da Sociedade de Cultura Artística, no teatro daquela entidade (os dois últimos com ingressos esgotados). Sua acompanhante será a pianista britânica Kathryn Stott.
O programa dos três concertos será o mesmo. De Franz Schubert, a "Sonata Arpeggione"; de Dmitri Chostakovich, a "Sonata op. 40"; de Astor Piazzolla, "Le Grand Tango"; de Egberto Gismonti e Geraldo Carneiro, "Bodas de Prata" e "Quatro Cantos"; e, de César Franck, sua "Sonata em Lá Maior". De origem chinesa, mas nascido em Paris, Yo-Yo Ma já gravou 75 LPs e CDs, 15 deles premiados com o Grammy.
Em conversa com a Folha por telefone, de Nova York, na última quinta-feira, ele fez expressos elogios a Mstislav Rostropovich (1927-2007), qualificando-o de "mestre". Mas disse não aceitar que o promovam à posição de "número um" em seu instrumento após a recente morte do violoncelista russo. Essa hierarquização, diz ele na entrevista, é própria aos esportes, não à música.

 

FOLHA - Como explicar que o violoncelo tenha se tornado, com o sr., um instrumento para a interpretação de música popular?
YO-YO MA -
Nos últimos dez ou 15 anos, conheci um número razoável de violoncelistas mais jovens que buscava novas aplicações ao nosso instrumento. Muitos compositores também passaram a escrever para o violoncelo, buscando instrumentistas curiosos pela obtenção de novas sonoridades. É algo absolutamente excitante, que me deixa feliz por ter uma parcela dessa experiência. Creio que, no futuro, esse movimento, ainda limitado, vá se ampliar.

FOLHA - Mas não há também um credenciamento fornecido pelo fato de o sr. ter se tornado conhecido como um intérprete clássico?
YO-YO -
Sempre acreditei que é importante para um músico ser ao mesmo tempo um especialista e um generalista. Há uma disciplina própria ao repertório que inclui Bach, Beethoven ou Schubert. Nesse campo, todos nós tivemos um imenso mestre, Rostropovich, que nos deixou há poucas semanas. Essa disciplina fornece uma visão sobre as sonoridades que violoncelistas de outras áreas procuram alcançar.

FOLHA - Por falar em Bach, quantas vezes o sr. já gravou as "Seis Suítes para Violoncelo Solo"?
YO-YO -
Eu o fiz duas vezes e acredito que já seja o bastante. Creio que na primeira delas havia uma mistura de inocência e arrogância da juventude. A segunda gravação foi bem mais madura, uma espécie de tentativa de entender a música de Bach a partir da leitura de Albert Schweitzer [1875-1965; musicólogo e cirurgião francês, Prêmio Nobel da Paz em 1952], que o descrevia como um compositor pictural.

FOLHA - Poucas pessoas ainda se lembram de Schweitzer...
YO-YO -
O que é uma pena. Ele escreve sobre a música de uma maneira tão incrivelmente bela. Ele acredita que a música de Bach é mais ou menos como uma semente plantada na alma das pessoas. A criatividade consiste em acompanhar o crescimento dessa semente.

FOLHA - Rostropovich morreu em abril. Ele era considerado o "número um" de seu instrumento. Como o sr. reage quando alguém afirma que agora o "número um" é o sr.?
YO-YO -
Eu não acredito que exista na música algo assimilável a um "número um". Nas competições esportivas há sempre um confronto, um vencedor e um perdedor, que seguem marcando ou perdendo pontos. Mas na música não há vencedores nem perdedores, e sim vozes diferenciadas que dizem muitas vezes as mesmas coisas. São vozes singulares, únicas. Ao mesmo tempo, elas dialogam com as outras vozes que procuram entender a música. Nunca gostei de concursos de instrumentistas por causa disso: pela ilusão de que haveria um primeiro, um segundo ou um terceiro. As coisas não são simples assim. Nenhuma pessoa é superior a outra por preferir determinada praia para se banhar em lugar de outra.

FOLHA - Em São Paulo, o sr. interpretará Chostakovich. Será que ele não foi menos tocado por idiossincrasias políticas, voltando à evidência no ano passado, com o centenário de seu nascimento?
YO-YO -
Chostakovich nasceu em 1906 e atravessou a Revolução Russa, o período de Stálin, a Guerra Fria. Muito da música que escreveu representa um tipo de testemunho sonoro das decisões difíceis que muitos artistas foram obrigados a tomar.
Creio que, de certo modo, ele sentisse uma espécie de dor e de sentimento de culpa por ter sido sobrevivente. É como se a música dele fosse ao mesmo tempo a voz dos que não puderam ser ouvidos. Quando a União Soviética entrou em colapso, foi compreensível que muitos buscassem esquecer um pouco essa realidade pesada. Agora, podemos voltar nossos olhares para esse período, lembrarmos dos odores, dos sons e das paisagens que Chostakovich traz em sua música.

FOLHA - O sr. já gravou Villa-Lobos, Tom Jobim e outros. Está em seus planos voltar a gravar brasileiros?
YO-YO -
O Brasil tem, musicalmente, uma energia criativa incrível. Sempre me surpreendo com isso ao sentir o pulso dessa energia musical. Estou obviamente interessado em consultar partituras de Villa-Lobos, conversar com músicos. Villa-Lobos foi originariamente um violoncelista. Ele também tem uma interessantíssima descrição sinfônica de Nova York ["New York Skyline"].


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