São Paulo, sábado, 06 de julho de 2002

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"NASCER DUAS VEZES"

Escritor italiano refaz os caminhos da aceitação em romance de 2000 lançado agora no Brasil

Pontiggia expõe deficiências humanas

FRANCESCA ANGIOLILLO
DA REPORTAGEM LOCAL

Paolo, filho do personagem principal de "Nascer Duas Vezes", é uma criança "com problemas". Sofre de tetraparesia espástica distônica, que limita gravemente suas faculdades motoras.
Paolo tem problemas. Mas qual criança -e, finalmente, qual adulto- não os tem? Essa é a questão que pontua o romance do italiano Giuseppe Pontiggia.
A voz do narrador, o professor Frigerio, conduz o leitor pelo percurso feito no sentido da aceitação das limitações de seu filho. Caminho semelhante trilhou o autor. O livro, diz Pontiggia, 67, em entrevista à Folha, ensinou-lhe a conviver melhor com os "problemas" de Andrea, seu filho, hoje com 32 anos.
O escritor explica longamente por que recusa o rótulo de obra autobiográfica para "Nascer Duas Vezes" -mas não nega que a filiação do livro esteja evidentemente na própria experiência.
Porém diferencia "uma narrativa autobiográfica, que quer tratar com veracidade os personagens e as situações", de uma como "Nascer Duas Vezes", em que "se sente livre para vetar, tirar, inserir episódios, figuras e variações que não estão no passado".
O esforço de descolar a obra da vivência se enraíza também no fato de que Pontiggia, antes de ser o pai de Andrea, era já um escritor. Portanto espera o reconhecimento do livro não só como relato que atrai a atenção do leitor para uma causa pessoal, mas também (e principalmente) como literatura.
"Até nos momentos mais terríveis, desconcertantes, procurava intensidade emotiva e eficácia estilística. Minha ambição primeira era fazer uma narrativa muito forte, capaz de envolver, de comunicar uma experiência importante, não só para quem vive a deficiência, mas para cada leitor."
A narrativa se constrói sobre episódios esparsos -a aventura que se torna uma escada rolante para Paolo, as dificuldades na escola, os conflitos em família. Notamos aqui e ali um fio cronológico, mas não há uma sucessão linear: o fluxo é o da memória.
"Eu me fundo no naturalismo e procedi pela escolha dos momentos mais memoráveis da existência: sequências, flashes, diálogos -os que dão o sentido mais forte da experiência. Esse modo de perceber o tempo e a sucessão dos fatos corresponde à nossa percepção, que não é feita de uma coerência e continuidade cronológicas, mas de segmentos."
O relato assume diferentes registros para alcançar o problema em toda a sua complexidade -cuja compreensão, na opinião de Pontiggia, "exige uma multiplicidade de tons, do dramático ao satírico, o cômico, o irônico". Dessa escala, porém, o escritor fez questão de deixar de fora uma nota: a autopiedade. Salta aos olhos como um traço impressionante em "Nascer Duas Vezes" a ausência total de comiseração.
O narrador nos surge atormentado, mas consciente de suas culpas. Não há espaço para ser condescendente na história de Frigerio -nem consigo mesmo, nem com os que o cercam. E nem com os deficientes. O livro levanta uma bandeira contra o senso comum que olha os "menos validos" com deferência caridosa, quase ao ponto de pretender afirmar que são iguais aos outros -como se a diferença fosse um pecado.
"Os primeiros anos do romance são na época da contestação, 68. Foi útil pensar que eram iguais aos outros. Mas era uma mentira generosa. O protesto ulterior é dizer que são diversos dos outros, mas com direitos iguais. E devem ser tratados com a maior abertura mental e comportamental", afirma Pontiggia. "Os deficientes têm uma diversidade mais vistosa. Precisam de ajuda, solidariedade, mas não de compaixão."
Para ele, o livro é, ainda, "uma descoberta da deficiência universal no confronto dos problemas". "Os problemas existem, todos temos. Não acho que eles se resolvam: problemas se enfrentam. Um exemplo de nossa inabilidade social é crer que os problemas se resolvem definitivamente."


NASCER DUAS VEZES - ("Nati Due Volte", 2000). De: Giuseppe Pontiggia. Editora: Companhia das Letras (tel. 0/ xx/11/3167-0801). Tradução: Roberta Barni. 208 págs. R$ 27,50.



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