São Paulo, sábado, 06 de julho de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"NADA MAIS QUE A VERDADE"

Respeito aos mortos

SUZANA SINGER
DIRETORA DE REVISTAS DA FOLHA

Escrito por um quarteto de jornalistas recém-formados, o livro "Nada Mais que a Verdade" conta a "extraordinária história do "Notícias Populares'", como define o seu subtítulo.
Fruto de uma pesquisa extensa -que incluiu 52 entrevistas com todos os editores-chefes vivos do jornal e com figuras tão díspares quanto o publisher Octavio Frias de Oliveira e o apresentador Ratinho-, a obra recupera a saga de uma peça polêmica, mas de grande importância na história da imprensa no Brasil.
É fácil e divertido percorrer, pelas 280 páginas, a trajetória do jornal que, "espremido, pinga sangue", como diziam seus desafetos. Impossível manter-se indiferente a manchetes como "Broxa torra o pênis na tomada", "Mulher mais bonita do Brasil é homem" ou "A morte não usa calcinha".
Ou não se interessar pela origem de fantasmas que povoaram a infância de quem tem pelo menos 35 anos, como o bebê-diabo e a loira do banheiro (para os curiosos: o primeiro foi fruto da criatividade de um repórter, em pleno sucesso de "O Exorcista", cujo único lastro com a realidade era o nascimento de um bebê com prolongamento de cóccix e duas pequenas saliências na testa; o segundo foi uma invenção da redação, criada a partir de uma foto desfocada de uma funcionária do jornal, em um dia especialmente sem notícias).
O livro reserva ainda outras boas revelações, como a aposta precoce que o "NP" fez na jovem guarda, o fato de ter sido o primeiro a ter uma coluna dedicada ao público gay, a informação de que nunca existiu a manchete "Violada em pleno auditório" -quando Sergio Ricardo quebrou seu violão no palco em 1967-, além da identidade do colunista Voltaire de Souza (nesse caso, os curiosos terão de comprar o livro).
"Nada Mais que a Verdade" não é, porém, apenas um rosário de histórias curiosas. O livro narra em detalhes o nascimento do jornal, em 1963, como um projeto político -o de criar um diário que fizesse frente ao "Última Hora", de Samuel Wainer, e ajudasse a conter a "ameaça comunista" de João Goulart- e acompanha de perto sua trajetória, até o fechamento no ano passado.
Os autores mostram que, passado o "perigo vermelho", o "NP" deixou de lado a política e intensificou a busca por um público carente e semi-escolarizado, mas ciente do que quer. Vivendo apenas da venda em banca, o "NP" precisou mais do que outros veículos entender o seu leitor. Foram muitos altos e baixos em 37 anos de existência, nos quais a fórmula crime+sexo+sobrenatural+economia popular era testada em pitadas diferentes, dependendo da situação do país e das convicções do editor-chefe.
Um dos méritos de "Nada Mais que a Verdade" é não cair na esparrela de que é fácil fazer jornal popular. Não basta empilhar cadáveres ao lado de fotos de mulheres nuas e, de quando em quando, inventar aberrações. O bebê-diabo foi um estrondo, mas sua sucessora, Guta, a garota com poderes cósmicos, não emplacou. Quando a crise econômica aperta, uma chamada sobre caderneta de poupança pode vender mais que um "churrasco de vagina no rodízio do sexo".
Para quem vive de jornalismo, é fácil empolgar-se com o finado "NP": um jornal gauche, sem manuais nem compromisso com faturamento publicitário, autoproclamada "voz dos oprimidos", vítima várias vezes da censura, tocado por equipes aguerridas e que tinham liberdade de levar à capa um assunto que merecia apenas cinco linhas ou de escrever uma manchete de fazer inveja a publicitários premiados.
Quem não gostaria de, pelo menos uma vez na vida, jogar às favas a cobertura tradicional de uma F-1 e mandar Zé do Caixão entrevistar Michael Schumacher? Ou de trocar longos editoriais pela foto de um manifestante segurando cartaz com os dizeres "pau no cu do Collor"? Ou ainda fazer de um mendigo feio o símbolo sexual da cidade (o "Pelezão", seduzido por uma psicóloga enquanto esperava o sopão no Cetren)?
Com um objeto de pesquisa tão sedutor, os autores não resistiram: apaixonaram-se e sucumbiram a um romantismo que beira a ingenuidade em vários momentos. Não surpreende que Celso de Campos Jr., Denis Moreira, Giancarlo Lepiani e Maik Rene Lima tenham se rendido aos encantos.
Acompanhei de perto vários jornalistas talentosos que se mudaram relutantes para a redação do quinto andar (onde ficava o "NP") e, em pouco tempo, defendiam o jornal com uma convicção poucas vezes vista, por exemplo, na prestigiosa Folha.
O fascínio, porém, compromete o livro e dá à narrativa um tom lacrimoso que não faz jus ao esforço de pesquisa. Enquanto as gestões de Jean Mellé, fundador do jornal, e Ebrahim Ramadan (1972-90) são reverenciadas, o ocaso é identificado com o momento em que a direção da Folha decide impor novos dirigentes (e diretrizes) ao irmão pobre e rebelde.
A boa vontade dos autores parece ir diminuindo à medida que os editores da chamada "escola Folha" se sucedem. Mesmo fazendo ressalvas a coberturas de sucesso, como a morte do Mamonas Assassinas e o massacre do Carandiru, o tom geral é de desconfiança.
O episódio do fechamento do jornal é descrito como uma "emboscada" e uma "execução a sangue-frio". Baseados em sabe-se lá qual pesquisa, os autores decretam que, "se bem trabalhada, a flama do "NP" ainda tem potencial para conduzir o periódico mais uma vez ao topo do mercado editorial popular" e lamentam que ela esteja sepultada nas "catacumbas da Barão de Limeira".
Não se trata de negar as circunstâncias que envolveram o traumático fechamento do título -a redação sendo avisada somente depois da última edição, por exemplo-, mas de esperar alguma reflexão sobre o ocorrido. Nem ao menos se discute o argumento, presente no editorial de despedida do "NP", de que a proliferação dos programas populares de TV esvaziou o sentido desse tipo de jornalismo em papel.
Se, como dizem os autores, "aos velhos e fiéis leitores do "NP" a lembrança é tudo o que resta", vale a pena que essa história seja revista com menos comoção. Quem começa em jornalismo aprende logo que objetividade não existe. Mas isso não exime o jornalista da obrigação de tentar ser o mais isento possível. Mesmo quando o objeto é tão arrebatador quanto um "Notícias Populares".


Nada Mais que a Verdade    
Autor: Celso de Campos Jr., Denis Moreira, Giancarlo Lepiani, Maik Rene Lima
Editora: Carrenho Editorial
Quanto: R$ 32 (280 págs.)




Texto Anterior: "Ocas": Revista dá trabalho e voz a sem-teto
Próximo Texto: Polêmica: Não quero fazer parte dessa turma
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.