São Paulo, sábado, 06 de julho de 2002

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POLÊMICA

Não quero fazer parte dessa turma

CAETANO VELOSO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O projeto de lei nš 4.540 de 2001, de autoria da deputada Tânia Soares (PC do B-SE), que acaba de passar no Congresso, tem encontrado grande repercussão nos meios de comunicação porque trata de um assunto que atrai a opinião pública: a questão do controle do número de exemplares de obras artísticas e científicas postas no mercado, para efeito de arrecadação de direitos autorais.
Grande parte do estardalhaço em torno da matéria se deve à porção que, nessa história, cabe à música popular. Com efeito, são artistas da canção que têm liderado a campanha pela aprovação de tal projeto e são eles que têm aparecido como heróis da mídia, sempre em oposição aos executivos de gravadoras, que tendem a ser retratados como vilões. Por ter admitido que meu nome se incluísse entre os que pediam alguma ação legislativa referente à questão, terminei me surpreendendo como participante desse grupo heróico.
Confesso que, atendendo a um estímulo do meu colega Lobão, permiti a inclusão do meu nome, porque julguei se tratar de um pedido para pressionar os deputados no sentido de atentarem para o assunto. Tendo sido abordado entre uma excursão pela América do Sul e outra pela Europa (no meio da qual me encontro no momento), eu não sabia que estávamos já na véspera da aprovação desse projeto de lei, o qual, uma vez lido, revelou-se-me inoportuno, perigoso e, de resto, tecnicamente inaceitável.
Não assinaria embaixo do texto que o apresenta. Em primeiro lugar, não tenho como confirmar que "quantidades de CDs sempre além do que foi pactuado entre autor/intérprete e gravadoras são rotina de fraudes", como diz o texto da deputada. O mesmo texto assegura que "há empresas que respeitam os direitos autorais e os pagam de modo mais correto".
Ora, se alguém sabe que muitas empresas fraudam e umas poucas agem honestamente, deve chamar a polícia e acionar a Justiça contra as fraudadoras. A lei que se proporia aqui deveria capacitar os autores e intérpretes a verificar se há alguma fraude relativa aos números de exemplares. Como pode o texto do projeto afirmar que há fraude e ainda discriminar entre empresas honestas e fraudadoras se a questão justamente é criar meios de controlar isso?
É claro que não se trata da criação de uma lei genérica contra fraudes: isso seria absurdo. Mas a proposta que é apresentada para resolver o problema (na verdade, para "diminuir a fraude"!!!), "a numeração com a assinatura do autor ou intérprete em cada livro ou disco compacto", é já bastante absurda.
Como poderei eu, que tenho cerca de 600 canções, algumas gravadas diversas vezes por intérpretes diferentes, e que, como intérprete, tenho algumas dezenas de álbuns gravados e reeditados em CD, assinar todos os exemplares que vierem a ser comercializados contendo obras minhas?
Por outro lado, como posso estar seguro de que desaparecerá o risco de fraude com a numeração, se o projeto de lei parte do princípio de que o interesse das gravadoras e editoras é fraudar? Se se adulteram números de contabilidade de distribuição, por que não se encontrarão sempre meios de adulterar numerações?
Mas a deputada defende o procedimento, alegando que "nos EUA é aplicada a numeração e lá os autores recebem os seus direitos de forma lídima". Não é verdade que os discos sejam numerados nos EUA: é o que descobri pesquisando sobre o assunto. E surpreende que tal mostra de descrença na possibilidade de honestidade das empresas capitalistas vá buscar apoio na experiência norte-americana. Já não surpreende, no entanto, que seja mentindo sobre ela.
Toda essa argumentação só me veio à mente depois que li o projeto de lei. Mas fui lê-lo e procurar me informar um pouco melhor sobre o assunto porque, lendo as matérias dos jornais brasileiros, senti quão inoportuna foi a súbita chegada dessa velha questão ao legislativo: num momento em que a pirataria ameaça uma indústria do disco já tão enfraquecida pelo resfriamento do mercado e quando a questão dos direitos autorais passa por uma crise (fascinante) por causa das novas modalidades de reprodução digital e informática.
É o seguinte: David Bowie é considerado um radical por jovens rebeldes americanos porque celebra em entrevista o fato de que, graças à internet e ao MP3, o "autor" finalmente desaparecerá. Os rebeldes brasileiros apóiam o negócio ilegal da pirataria (que dá muito dinheiro a gente desonesta) e, ao mesmo tempo, se dizem defensores do autor, procurando dificultar e desacreditar a vida da indústria legal.
Como disse Rita Lee, não quero fazer parte dessa turma. Se minha assinatura teve algum peso nessa decisão, quero agora retirá-la de modo enfático, assinando individualmente um pedido ao presidente da República no sentido de que ele vete o projeto. Só assim poderemos transformar esse episódio inoportuno numa oportunidade de avançar no esclarecimento da questão que nos trouxe a ele.
Acabo de ler uma mensagem enviada por Beth Carvalho e Lobão, defendendo e explicando o projeto de Tânia Soares. Tanto Lobão quanto Beth são colegas que respeito e por quem tenho carinho. Foi aliás o carinho que tenho por meus colegas em geral que me levou a admitir sem mais perguntas a inclusão do meu nome nesse pleito da classe. Mas Lobão e Beth dizem que "o artista não vai assinar cada cópia, mas, sim, lotes"; ora, a lei entra em vigor em 120 dias e não prevê regulamentação. Assim, é à letra que se deverá interpretar a exigência de "numeração com assinatura do autor ou intérprete em cada livro ou disco compacto". Eles dizem também que "não haverá aumento no preço final do CD, pois a numeração custa centavos": centavos são centavos e não nada. E o que é que custa centavos? A numeração de milhões e milhões de discos?
Finalmente eles se referem com entusiasmo ao pioneirismo do Brasil na matéria: deveríamos nos orgulhar de ser o primeiro país do mundo a numerar seus discos e livros. Mas justamente através de um projeto de lei que afirma que tal procedimento é já estabelecido nos Estados Unidos? Não. Temo que esse projeto, que foi aprovado em tempo recorde pelo Senado, venha a ser um sintoma da mania brasileira de não dar certo. Toda essa deslumbrante tradição de sucesso da música popular no Brasil se deu também por causa da parceria saudável com a indústria multinacional, uma parceria que o pessoal do cinema tem tudo para invejar. Atacá-la agora, quando ela está mais fraca e ameaçada, é doentio. Reagir contra o ataque pode fazer surgirem alternativas que aumentem a confiança nas relações entre artistas e empresas produtoras.
E, aí sim, tudo de bom que surgir disso poderá ser creditado a Lobão e Beth, pois, sem a onda levantada por eles, nós todos não teríamos chegado a pensar tanto no assunto.


Caetano Veloso, 59, é cantor e compositor baiano



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