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POLÊMICA
Não quero fazer parte dessa turma
CAETANO VELOSO
ESPECIAL PARA A FOLHA
O projeto de lei nš 4.540 de
2001, de autoria da deputada
Tânia Soares (PC do B-SE), que
acaba de passar no Congresso,
tem encontrado grande repercussão nos meios de comunicação
porque trata de um assunto que
atrai a opinião pública: a questão
do controle do número de exemplares de obras artísticas e científicas postas no mercado, para
efeito de arrecadação de direitos
autorais.
Grande parte do estardalhaço
em torno da matéria se deve à
porção que, nessa história, cabe à
música popular. Com efeito, são
artistas da canção que têm liderado a campanha pela aprovação de
tal projeto e são eles que têm aparecido como heróis da mídia,
sempre em oposição aos executivos de gravadoras, que tendem a
ser retratados como vilões. Por ter
admitido que meu nome se incluísse entre os que pediam alguma ação legislativa referente à
questão, terminei me surpreendendo como participante desse
grupo heróico.
Confesso que, atendendo a um
estímulo do meu colega Lobão,
permiti a inclusão do meu nome,
porque julguei se tratar de um pedido para pressionar os deputados no sentido de atentarem para
o assunto. Tendo sido abordado
entre uma excursão pela América
do Sul e outra pela Europa (no
meio da qual me encontro no momento), eu não sabia que estávamos já na véspera da aprovação
desse projeto de lei, o qual, uma
vez lido, revelou-se-me inoportuno, perigoso e, de resto, tecnicamente inaceitável.
Não assinaria embaixo do texto
que o apresenta. Em primeiro lugar, não tenho como confirmar
que "quantidades de CDs sempre
além do que foi pactuado entre
autor/intérprete e gravadoras são
rotina de fraudes", como diz o
texto da deputada. O mesmo texto assegura que "há empresas que
respeitam os direitos autorais e os
pagam de modo mais correto".
Ora, se alguém sabe que muitas
empresas fraudam e umas poucas
agem honestamente, deve chamar a polícia e acionar a Justiça
contra as fraudadoras. A lei que se
proporia aqui deveria capacitar os
autores e intérpretes a verificar se
há alguma fraude relativa aos números de exemplares. Como pode
o texto do projeto afirmar que há
fraude e ainda discriminar entre
empresas honestas e fraudadoras
se a questão justamente é criar
meios de controlar isso?
É claro que não se trata da criação de uma lei genérica contra
fraudes: isso seria absurdo. Mas a
proposta que é apresentada para
resolver o problema (na verdade,
para "diminuir a fraude"!!!), "a
numeração com a assinatura do
autor ou intérprete em cada livro
ou disco compacto", é já bastante
absurda.
Como poderei eu, que tenho
cerca de 600 canções, algumas
gravadas diversas vezes por intérpretes diferentes, e que, como intérprete, tenho algumas dezenas
de álbuns gravados e reeditados
em CD, assinar todos os exemplares que vierem a ser comercializados contendo obras minhas?
Por outro lado, como posso estar seguro de que desaparecerá o
risco de fraude com a numeração,
se o projeto de lei parte do princípio de que o interesse das gravadoras e editoras é fraudar? Se se
adulteram números de contabilidade de distribuição, por que não
se encontrarão sempre meios de
adulterar numerações?
Mas a deputada defende o procedimento, alegando que "nos
EUA é aplicada a numeração e lá
os autores recebem os seus direitos de forma lídima". Não é verdade que os discos sejam numerados nos EUA: é o que descobri
pesquisando sobre o assunto. E
surpreende que tal mostra de descrença na possibilidade de honestidade das empresas capitalistas
vá buscar apoio na experiência
norte-americana. Já não surpreende, no entanto, que seja
mentindo sobre ela.
Toda essa argumentação só me
veio à mente depois que li o projeto de lei. Mas fui lê-lo e procurar
me informar um pouco melhor
sobre o assunto porque, lendo as
matérias dos jornais brasileiros,
senti quão inoportuna foi a súbita
chegada dessa velha questão ao
legislativo: num momento em
que a pirataria ameaça uma indústria do disco já tão enfraquecida pelo resfriamento do mercado
e quando a questão dos direitos
autorais passa por uma crise (fascinante) por causa das novas modalidades de reprodução digital e
informática.
É o seguinte: David Bowie é considerado um radical por jovens
rebeldes americanos porque celebra em entrevista o fato de que,
graças à internet e ao MP3, o "autor" finalmente desaparecerá. Os
rebeldes brasileiros apóiam o negócio ilegal da pirataria (que dá
muito dinheiro a gente desonesta) e, ao mesmo tempo, se dizem
defensores do autor, procurando
dificultar e desacreditar a vida da
indústria legal.
Como disse Rita Lee, não quero
fazer parte dessa turma. Se minha
assinatura teve algum peso nessa
decisão, quero agora retirá-la de
modo enfático, assinando individualmente um pedido ao presidente da República no sentido de
que ele vete o projeto. Só assim
poderemos transformar esse episódio inoportuno numa oportunidade de avançar no esclarecimento da questão que nos trouxe
a ele.
Acabo de ler uma mensagem
enviada por Beth Carvalho e Lobão, defendendo e explicando o
projeto de Tânia Soares. Tanto
Lobão quanto Beth são colegas
que respeito e por quem tenho carinho. Foi aliás o carinho que tenho por meus colegas em geral
que me levou a admitir sem mais
perguntas a inclusão do meu nome nesse pleito da classe. Mas Lobão e Beth dizem que "o artista
não vai assinar cada cópia, mas,
sim, lotes"; ora, a lei entra em vigor em 120 dias e não prevê regulamentação. Assim, é à letra que
se deverá interpretar a exigência
de "numeração com assinatura
do autor ou intérprete em cada livro ou disco compacto". Eles dizem também que "não haverá aumento no preço final do CD, pois
a numeração custa centavos":
centavos são centavos e não nada.
E o que é que custa centavos? A
numeração de milhões e milhões
de discos?
Finalmente eles se referem com
entusiasmo ao pioneirismo do
Brasil na matéria: deveríamos nos
orgulhar de ser o primeiro país do
mundo a numerar seus discos e livros. Mas justamente através de
um projeto de lei que afirma que
tal procedimento é já estabelecido
nos Estados Unidos? Não. Temo
que esse projeto, que foi aprovado
em tempo recorde pelo Senado,
venha a ser um sintoma da mania
brasileira de não dar certo. Toda
essa deslumbrante tradição de sucesso da música popular no Brasil
se deu também por causa da parceria saudável com a indústria
multinacional, uma parceria que
o pessoal do cinema tem tudo para invejar. Atacá-la agora, quando
ela está mais fraca e ameaçada, é
doentio. Reagir contra o ataque
pode fazer surgirem alternativas
que aumentem a confiança nas
relações entre artistas e empresas
produtoras.
E, aí sim, tudo de bom que surgir disso poderá ser creditado a
Lobão e Beth, pois, sem a onda levantada por eles, nós todos não
teríamos chegado a pensar tanto
no assunto.
Caetano Veloso, 59, é cantor e compositor baiano
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