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ARTES PLÁSTICAS
EXPOSIÇÃO
Cidade alemã de Kassel abriga até setembro mostra de arte contemporânea considerada a maior do mundo
Documenta é plataforma da humanidade de hoje
IVO MESQUITA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Assim como havia na Bienal
de São Paulo, até pouco tempo, uma síndrome da Bienal de
53, aquela famosa por expor
Guernica, Picassos e outras tantas
estrelas, que na época eram apenas artistas em meio de carreira,
os curadores da Documenta também são incomodados pelas expectativas causadas pela síndrome da Documenta de 1972, obra e
mito de Harald Szeemann.
Não que a mostra alemã tenha
problemas de núcleo histórico como a Bienal paulista. Ao contrário, o seu compromisso reafirmado a cada nova edição é com a
produção artística contemporânea, o debate sobre ela, a sua difusão e circulação.
Aquela Documenta, no entanto,
representou o maior grau de realização desse compromisso que
uma mostra sazonal podia pretender, considerando os parâmetros e referências que orientavam
a crítica, o mercado, as instituições. Ela foi recebida como a mostra internacional mais renovadora e completa realizada até então,
reunindo artistas de quase todo o
hemisfério Norte ocidental, consagrando uma arte recém-criada,
relacionada com a cultura pop e a
política do final dos anos 60 e consolidando movimentos importantes como o minimalismo, a arte povera, a performance.
Considerada entre as dez mais
importantes na história das exposições, a Documenta 5 ficou conhecida pela harmoniosa articulação entre artistas e curador na
construção de um espaço afirmativo da arte, pleno do presente de
seu tempo.
Trinta anos depois, a Documenta 11 é outro grande momento na
história das exposições. Trata-se
de um dos projetos mais bem-sucedidos em termos de mostras e
programas que pretendem dar
conta das idéias e condições de
produção de visualidade no mundo globalizado. Ela é uma espécie
de coroamento, com uma exposição, das melhores idéias e discussões engendradas, na última década, pelos estudos e práticas
comparativas e interdisciplinares.
Para desenhar um mapa da arte
contemporânea em suas várias
formas e iniciativas, mostrando
como ela se articula numa relação
dialética com a cultura global como um todo, Okwui Enwezor e
seus curadores estenderam o
tempo da mostra, precedendo-a
por uma série de debates e reuniões de trabalho.
Chamadas de plataformas e realizadas em Viena, Nova Déli, Santa Lúcia e Lagos, esses encontros
serviram para a discussão de temas como a democracia (um trabalho em processo, como muitas
obras contemporâneas), justiça,
verdade, mestiçagem e reconciliação, dando início e orientando
uma discussão pública sobre o
processo de fazer a exposição, definir seus conteúdos, que são agora apresentados em Kassel, quinta
e última plataforma do projeto.
O resultado é uma fina exposição sobre as questões mais correntes no debate cultural contemporâneo pós-colonialismo, indústria cultural, políticas de identidade, ética e estética associada a
um olhar cuidadoso e cosmopolita sobre a produção artística e outras iniciativas que envolvem
imaginário, formas de representação e percepção do espaço, da
história e das relações culturais.
Não é objetivo da mostra criar
um panorama das nacionalidades
ou tradições locais, até porque a
Documenta mesma surgiu no circuito internacional como uma
crítica aos sistemas da diplomacia
cultural, que organizam bienais
como Veneza ou São Paulo.
Agora podemos ver um retrato
generoso e diversificado das práticas artísticas que conformam o
processo cultural, interdisciplinar
e transnacional, sem dar espaço
para estereótipos e leviandades
conceituais que povoam as estantes dos estudos culturais.
Não há ali nenhuma alteridade a
ser examinada, vista, percebida. É
tudo parte de um mesmo mundo,
diante de qualidades e aspirações
cada vez mais interdependentes e
confrontantes. A diferença não é
objeto de contemplação ideológica (multiculturalismos, minorias,
etnias), porque há um princípio
ético que assegura a visibilidade e
rege a distribuição dos trabalhos
nos espaços, sem hierarquia, onde todos estão confortáveis, obras
e espectadores.
Muito apropriadamente, por
exemplo, a curadoria separou
aqueles trabalhos cujos autores
não se consideram artistas, porque são sociólogos, antropólogos
ou filósofos, concentrando-os na
Documenta-Halle, transformada
numa biblioteca com numerosos
arquivos e dispositivos áudiovisuais sobre a questão da Palestina,
moradia popular no Brasil, violência contra mulheres, tradição
oral em comunidades esquimós,
entre outros tantos tópicos.
Ainda que articulada em torno
de uma agenda sobre as relações
entre arte-política-cultura, a exposição não impõe ao visitante
qualquer paradigma autoritário
de interpretação, mas este também não é deixado a reboque dos
ruídos, vibrações e cores que se
oferecem pelo caminho.
Embora não haja uma organização temática ou técnica para a distribuição das obras em cinco diferentes espaços, cada trabalho visto é o estímulo para ver o próximo, seja um vídeo, uma pintura,
uma instalação, porque é na sequência deles que se vai construindo o sentido final e totalizante do projeto: uma experiência
ampla da diversidade.
Sem fazer concessões no rigor
conceitual ou nas qualidades formais dos projetos, a Documenta
11 revela uma inesperada e desafiante plataforma da humanidade
contemporânea.
Avaliação:
Ivo Mesquita é curador independente e
professor visitante do Bard College, em
Nova York. Viajou a Kassel a serviço do
Museu de Arte Moderna de São Paulo.
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