São Paulo, sábado, 06 de julho de 2002

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ARTES PLÁSTICAS

EXPOSIÇÃO

Cidade alemã de Kassel abriga até setembro mostra de arte contemporânea considerada a maior do mundo

Documenta é plataforma da humanidade de hoje

IVO MESQUITA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Assim como havia na Bienal de São Paulo, até pouco tempo, uma síndrome da Bienal de 53, aquela famosa por expor Guernica, Picassos e outras tantas estrelas, que na época eram apenas artistas em meio de carreira, os curadores da Documenta também são incomodados pelas expectativas causadas pela síndrome da Documenta de 1972, obra e mito de Harald Szeemann.
Não que a mostra alemã tenha problemas de núcleo histórico como a Bienal paulista. Ao contrário, o seu compromisso reafirmado a cada nova edição é com a produção artística contemporânea, o debate sobre ela, a sua difusão e circulação.
Aquela Documenta, no entanto, representou o maior grau de realização desse compromisso que uma mostra sazonal podia pretender, considerando os parâmetros e referências que orientavam a crítica, o mercado, as instituições. Ela foi recebida como a mostra internacional mais renovadora e completa realizada até então, reunindo artistas de quase todo o hemisfério Norte ocidental, consagrando uma arte recém-criada, relacionada com a cultura pop e a política do final dos anos 60 e consolidando movimentos importantes como o minimalismo, a arte povera, a performance.
Considerada entre as dez mais importantes na história das exposições, a Documenta 5 ficou conhecida pela harmoniosa articulação entre artistas e curador na construção de um espaço afirmativo da arte, pleno do presente de seu tempo.
Trinta anos depois, a Documenta 11 é outro grande momento na história das exposições. Trata-se de um dos projetos mais bem-sucedidos em termos de mostras e programas que pretendem dar conta das idéias e condições de produção de visualidade no mundo globalizado. Ela é uma espécie de coroamento, com uma exposição, das melhores idéias e discussões engendradas, na última década, pelos estudos e práticas comparativas e interdisciplinares.
Para desenhar um mapa da arte contemporânea em suas várias formas e iniciativas, mostrando como ela se articula numa relação dialética com a cultura global como um todo, Okwui Enwezor e seus curadores estenderam o tempo da mostra, precedendo-a por uma série de debates e reuniões de trabalho.
Chamadas de plataformas e realizadas em Viena, Nova Déli, Santa Lúcia e Lagos, esses encontros serviram para a discussão de temas como a democracia (um trabalho em processo, como muitas obras contemporâneas), justiça, verdade, mestiçagem e reconciliação, dando início e orientando uma discussão pública sobre o processo de fazer a exposição, definir seus conteúdos, que são agora apresentados em Kassel, quinta e última plataforma do projeto.
O resultado é uma fina exposição sobre as questões mais correntes no debate cultural contemporâneo pós-colonialismo, indústria cultural, políticas de identidade, ética e estética associada a um olhar cuidadoso e cosmopolita sobre a produção artística e outras iniciativas que envolvem imaginário, formas de representação e percepção do espaço, da história e das relações culturais.
Não é objetivo da mostra criar um panorama das nacionalidades ou tradições locais, até porque a Documenta mesma surgiu no circuito internacional como uma crítica aos sistemas da diplomacia cultural, que organizam bienais como Veneza ou São Paulo.
Agora podemos ver um retrato generoso e diversificado das práticas artísticas que conformam o processo cultural, interdisciplinar e transnacional, sem dar espaço para estereótipos e leviandades conceituais que povoam as estantes dos estudos culturais.
Não há ali nenhuma alteridade a ser examinada, vista, percebida. É tudo parte de um mesmo mundo, diante de qualidades e aspirações cada vez mais interdependentes e confrontantes. A diferença não é objeto de contemplação ideológica (multiculturalismos, minorias, etnias), porque há um princípio ético que assegura a visibilidade e rege a distribuição dos trabalhos nos espaços, sem hierarquia, onde todos estão confortáveis, obras e espectadores.
Muito apropriadamente, por exemplo, a curadoria separou aqueles trabalhos cujos autores não se consideram artistas, porque são sociólogos, antropólogos ou filósofos, concentrando-os na Documenta-Halle, transformada numa biblioteca com numerosos arquivos e dispositivos áudiovisuais sobre a questão da Palestina, moradia popular no Brasil, violência contra mulheres, tradição oral em comunidades esquimós, entre outros tantos tópicos.
Ainda que articulada em torno de uma agenda sobre as relações entre arte-política-cultura, a exposição não impõe ao visitante qualquer paradigma autoritário de interpretação, mas este também não é deixado a reboque dos ruídos, vibrações e cores que se oferecem pelo caminho.
Embora não haja uma organização temática ou técnica para a distribuição das obras em cinco diferentes espaços, cada trabalho visto é o estímulo para ver o próximo, seja um vídeo, uma pintura, uma instalação, porque é na sequência deles que se vai construindo o sentido final e totalizante do projeto: uma experiência ampla da diversidade.
Sem fazer concessões no rigor conceitual ou nas qualidades formais dos projetos, a Documenta 11 revela uma inesperada e desafiante plataforma da humanidade contemporânea.


Avaliação:     

Ivo Mesquita é curador independente e professor visitante do Bard College, em Nova York. Viajou a Kassel a serviço do Museu de Arte Moderna de São Paulo.



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