São Paulo, sábado, 06 de julho de 2002

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Antes da revolução

O juiz de instrução suplente e o médico provincial partiram rumo à aldeia de Sirnia, para uma autópsia. No caminho, foram surpreendidos por uma nevasca, rodaram rumo por meio tempo e, em vez de chegarem ao meio-dia, como desejavam, só o fizeram ao fim da tarde, quando já estava escuro. Resolveram pernoitar na isbá do conselho local. Por acaso, nessa mesma isbá, havia também um cadáver, o agente de seguros Lesnítski, que três dias antes chegara a Sirnia e, depois de se instalar na isbá do conselho local e exigir que lhe trouxessem um samovar, matou-se com um tiro na cabeça, num gesto completamente inesperado para todos; e a circunstância de pôr fim à vida de um modo um tanto estranho, depois de ter pedido um samovar e de um lanche ter sido posto sobre a mesa, deu muito motivo para suspeitarem de um assassinato; era imprescindível uma autópsia.
Na ante-sala, o médico e o juiz sacudiram a neve dos ombros, bateram com os pés no chão e ao seu lado estava o velho Ilha Lochadin, o ajudante de polícia de aldeia, que os iluminava com um lampião de folha de flandres, erguido na sua mão. Havia um cheiro forte de querosene.
- Quem é você? - perguntou o médico.
- O puliça... - respondeu o ajudante de polícia.
Até no correio ele assinava assim: puliça.
- E onde estão as testemunhas?
- Pois é, foram tomar um pouco de chá, Sua Excelência.
À direita, havia um quarto arrumado e limpo, chamado "dos recém-chegados", ou quarto senhorial; à esquerda, o quarto de fundos, com uma grande estufa e, junto a ela, leitos de tábuas nuas. O médico e o juiz, e logo atrás o policial que sustinha o lampião acima da cabeça, entraram no quarto limpo. No chão, bem junto às pernas da mesa, estava estirado um corpo comprido e imóvel, coberto por um lençol branco. Sob a luz fraca do lampião, viam-se nitidamente, para fora do lençol, as galochas de borracha novinha, e tudo ali era ruim, lúgubre: a escuridão, as paredes, o silêncio, aquelas galochas e o corpo imóvel do defunto. Sobre a mesa, estava o samovar, já frio, havia muito tempo e, à sua volta, vários pacotes, na certa com o lanche.
- Matar-se com um tiro na sede do conselho local... Que coisa mais inconveniente! -exclamou o médico. - Quando uma pessoa tem vontade de meter uma bala na testa, é melhor que o faça na sua casa, ou em algum pardieiro.
Do jeito que estava, de chapéu, casaco de peles e botas de feltro, ele se deixou cair no banco; seu companheiro de viagem, o juiz de instrução, sentou-se à sua frente.


"(...) De nada adianta abrir a barriga desse patrão aí, é inútil (...)"

"É por isso que os velhos não gostam nem um pouco desta nossa "época nervosa" (...)"



- Esses histéricos e neurastênicos são uns grandes egoístas -prosseguiu o médico, com amargura. - Quando um neurastênico dorme com a gente no mesmo quarto, faz as bolhas do jornal farfalharem; quando almoça com a gente, fica brigando com a esposa, sem se acanhar com a nossa presença; e quando sente vontade de meter uma bala na cabeça, ele se mata numa aldeia do interior, na isbá do conselho local, só para nos dar mais trabalho. Esses senhores, em todas as situações da vida, pensam apenas em si. Só em si mesmos! É por isso que os velhos não gostam nem um pouco desta nossa "época nervosa".
- Os velhos não gostam mesmo de nada -disse o juiz de instrução, bocejando. - Mostre, então, aos velhos a diferença entre os suicídios do passado e os do presente. No passado, um homem dito honesto se matava com um tiro na cabeça por ter malbaratado o dinheiro público; no presente, ele se mata porque a vida é maçante, sem graça... Qual o melhor?
- A vida é maçante e sem graça, mas, o senhor há de convir, uma pessoa pode muito bem se matar em outro lugar que não a isbá do conselho local.
- Ah, que tristeza -exclamou o ajudante de polícia. - Que tristeza, que suplício. O povo está muito agitado, Sua Excelência, as pessoas já não dormem há três noites. A criançada chora. É preciso ordenhar as vacas, mas as mulheres não vão ao estábulo porque têm medo... Esse patrão morto pode aparecer de repente, no escuro. Todo mundo sabe como as mulheres são bobas, só que os mujiques também estão com medo. De noite, não passam na frente da isbá sozinhos, só em bandos. E as testemunhas também...
O doutor Startchenko, homem de meia-idade, de barba escura, óculos, e o juiz de instrução Lijin, louro, ainda moço, formado havia apenas dois anos e que mais parecia um estudante do que um funcionário público, permaneceram calados, pensativos. O atraso na viagem os aborrecia. Agora teriam de esperar até amanhecer, teriam de pernoitar ali, e ainda nem eram seis horas, previram uma noite longa, uma madrugada longa e escura, o tédio, o desconforto das camas, as baratas, o frio matutino; e, escutando a tempestade que uivava na chaminé e no sótão, os dois se puseram a pensar como nada disso se parecia com a vida que desejavam e que haviam sonhado, em outros tempos, pensaram como estavam distantes de seus colegas, que agora, na cidade, caminhavam por ruas iluminadas, sem ter de se preocupar com o mau tempo, ou se preparavam para ir ao teatro, ou estavam sentados em um confortável gabinete de leitura e liam um livro. Ah, pagariam qualquer coisa para poderem apenas passear pela avenida Nevski, ou pela Petrovka, em Moscou, ouvir uma canção decente, ficar sentados uma ou duas horas num restaurante...
- Uu-uu-uu! - cantava a tempestade no sótão e, lá fora, alguma coisa batia raivosamente, talvez a tabuleta da isbá do conselho local.
- Uu-uu-uu!
- O senhor faça o que quiser, quanto a mim, não gostaria de ficar aqui - disse Startchenko, levantando-se. - Ainda não são seis horas, é cedo para dormir, vou procurar outro lugar. Não longe daqui, mora Von Taunits, são ao todo três verstas, de Sirnia. Vou à casa dele e pernoitarei lá. Ajudante de polícia, vá dizer ao cocheiro para não desatrelar os cavalos. E o senhor? - perguntou para Lijin.
- Não sei. Acho que vou dormir.
O médico se agasalhou no casaco de peles e saiu. Ouviram-se as palavras que dirigiu ao cocheiro e o tremor dos guizos nos cavalos enregelados. Partiram.
- Patrão, não convém que você passe a noite aqui - disse o ajudante de polícia-, fique no outro aposento. Não é limpo, mas só por uma noite não tem importância. Vou agora pegar o samovar do mujique, esquento, depois disso vou trazer feno para Sua Excelência dormir com Deus.
Pouco depois, o juiz sentou-se à mesa no quarto dos fundos e tomou chá, enquanto o ajudante de polícia Lochadin, de pé, junto à porta, falava. Era um velho com mais de 60 anos, de pequena estatura, muito magro, curvado, cabelo branco, um sorriso ingênuo no rosto, olhos lacrimosos, e não parava de estalar os lábios, como se chupasse uma bala. Vestia uma peliça curta, botas de feltro e não largava a bengala. Era evidente que a juventude do juiz de instrução lhe dava pena e, na certa, por isso, não o tratava de "o senhor", mas de "você".
- O suboficial Fiodor Makaritch mandou avisar quando chegasse o comissário ou o juiz de instrução - disse ele. - Então quer dizer que agora eu preciso ir lá... Até o distrito, são quatro verstas e, com a nevasca, com a neve amontoada, é um horror, talvez eu não chegue lá antes de meia-noite. Olhe como o vento zune.
- Não tenho nenhuma necessidade do suboficial - respondeu Lijin.
- Não há nada para fazer aqui.
Fitou o velho com curiosidade e perguntou:
- Diga, vovô, há quantos anos você é ajudante de polícia?
- Quanto anos? Ah, já tem uns 30 anos. Comecei cinco anos depois da emancipação, e assim dá para calcular. Desde esse tempo, não parei nem um dia. Para os outros pode ser feriado, mas eu nunca paro. É a Semana Santa, os sinos da igreja tocam, é a ressurreição de Cristo, mas eu vou e volto com a minha sacola, sem parar. Vou à tesouraria, ao correio, à casa do comissário, do chefe do distrito, do cobrador de impostos, vou à câmara, à casa dos patrões, dos mujiques, de todos os fiéis cristão ortodoxos. Levo as encomendas postais, as notificações, as guias de impostos, as cartas, tudo quanto é papel e boletim, enfim, meu bom patrão, e agora vieram essas folhas para anotar as cifras, folhas amarelas, brancas, vermelhas, e todos os patrões e os padres, e todos os mujiques ricos são obrigados a registrar umas dez vezes por ano quanto semearam e colheram, quantos quilos ou arrobas de centeio, quanta aveia, quanto feno, e ainda como está o tempo e se há insetos. Naturalmente, as pessoas escrevem o que bem entendem, só por formalidade, mas eu vou lá e distribuo as fichas e depois volto e recolho tudo de novo. Veja só, por exemplo, de nada adianta abrir a barriga desse patrão aí, é inútil, você mesmo sabe disso, só vai servir para emporcalhar as mãos, mesmo assim você se deu ao trabalho. Sua Excelência viajou até aqui só por uma formalidade; não vai fazer nada de importante por aqui. Há trinta anos que ando para lá e para cá só por formalidade. No verão, tudo bem, faz calor, é seco, mas no inverno ou no outono, não tem graça nenhuma. Aconteceu de eu quase me afogar e me congelar, já me aconteceu de tudo. E gente ruim já roubou minha bolsa, na floresta, me encheram de pancada, e ainda fui levado a julgamento...
- Por que foi levado a julgamento?
- Por causa de uma falcatrua.
- E que falcatrua foi essa?
- Bem, o escrivão Khrissanf Grigoriev vendeu ao empreiteiro umas tábuas que eram de outra pessoa, pois é, passou o sujeito para trás. Eu fui envolvido nesse negócio, me mandaram pegar vodca na taberna; mas o escrivão não dividiu nada comigo, não me ofereceu nem um copinho, mas por causa da minha pobreza, da minha aparência, sabe, de homem que não merece confiança, que não vale nada levaram os dois a julgamento; ele foi para a prisão e eu, graças a Deus, fui absolvido com toda a justiça. No tribunal, leram um papel que dizia isso (...)



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