São Paulo, sábado, 06 de julho de 2002

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Autor descortina mundo latente

VADIM NIKITIN
ESPECIAL PARA A FOLHA

O leitor familiarizado com o Tchekov mestre da narrativa breve e leve talvez estranhe a extensão de "O Assassinato e Outras Histórias". Inéditos no Brasil, são contos ou quase novelas da sua última fase, em que o contista cedia lugar ao dramaturgo das peças longas. O idealizador e tradutor da coletânea é Rubens Figueiredo, o que já é garantia de fidelidade com imaginação.
A poética desse modo dilatado de narrar, Tchekov a esboça sob o signo do fracasso numa carta de 1888 ao seu amigo Alekséi S. Suvórin: "O início me sai cheio de promessas, como se eu estivesse começando um romance; o meio é espremido, tímido, e o final é uma espécie de fogos de artifício". Nessa mesma carta, atribui o mau acabamento, um estilo nascente, a pressões de prazo e dinheiro.
Como bom narrador russo, Tchekov teimava em moer no áspero e fantasiar ao mesmo tempo: neto de servo e filho de comerciante, começou a escrever para custear os estudos de medicina em Moscou. A vida inteira contracenou o médico e o literato.
A crítica russa censurava-lhe a falta de engajamento social e político no assunto e na estrutura, o que o levou, já célebre, a comparar os críticos a mutucas, "que impedem o cavalo de lavrar a terra". No fim da década de 1880, a revista "Pensamento Russo" listou-o entre "sacerdotes de uma literatura sem princípios".
Nesta coletânea, a província é uma espécie de sertão com neve, e o sertão é o mundo. Tudo aqui é provinciano, tanto as cidadezinhas de "O Professor de Letras" (1894) e "Iônitch" (1898) quanto os fundões rurais de "Os Mujiques" (1897) e "No Fundo do Barranco" (1900). Tudo aí é periférico, fora do centro.
Nikítin, o professor de letras, corteja Macha Chelestova, que aceita o seu pedido de casamento. A segunda parte do conto revela-se como subtexto mordaz: o idílio burguês era uma arapuca. Iônitch, protagonista do conto homônimo, nomeado médico da capital provincial de S., desafia o tédio da cidadezinha apaixonando-se por Ekatierina Ivanovna, a filha única da família local mais culta e animada. Ela o seduz e o recusa, o tempo passa, ele engorda, enriquece e se torna figura notória da cidadezinha. Não há idílio, mas a vida besta é a mesma, que podia ter sido e que não foi.
Para Lijin, o jovem juiz de instrução do conto "Em Serviço" (1899), que viaja a uma aldeia em função de uma autópsia, um suicídio ocorrido a mil verstas de Moscou, não vai deixar marcas na memória. Quem o recebe na aldeia é o ajudante de polícia Lochadin, velho que corre kafkianamente por entre tempestades de neve, dedicado à burocracia. Lochadin narra a Lijin a sua vida resignada, enquanto este só pensa em Moscou, "a Rússia autêntica".
Aliás, as casas-grandes das peças longas de Tchekov estão sempre cercadas por essa galeria de personagens, batendo à porta ou esperando alguma coisa na neve, e a sua ausência torna-as mais presentes, como os escravos em Machado de Assis. Nesse sentido, é exemplar o incêndio de "Os Mujiques": enquanto os mujiques bêbados tentam em vão apagar o fogo, do outro lado do rio surgem carroças de bombeiro, um estudante a cavalo e duas moças bonitas, falando francês. Os mujiques não são folclore: estão logo ali, do outro lado.
Mas colocá-los em cena causava polêmica. Para Liev Tolstoi, que via no campônio a salvação da Rússia, "Os Mujiques" era "um pecado contra o povo russo". Nikolai Tchikildiéiev, um lacaio do hotel moscovita Bazar Eslavo, adoece das pernas e entorna uma bandeja. É obrigado a se demitir e, na miséria, resolve voltar com mulher e filha para o ninho da aldeia natal, que se descortina como um vasto favelário de isbás (as casas camponesas típicas) regado a vodca. A mãe de Nikolai o chama de parasita, e o seu velho pai, como Firs, tem saudade do chicote: "No tempo da servidão era melhor. A gente comia livremente, o quanto a alma quisesse. E havia muita severidade." Contra qualquer regionalismo eslavófilo, romântico ou socialista, Tchekov dá voz a um mundo de homens, os mujiques, que desaprenderam a narrar e rezar. Entre esse mundo e a capital, a queda de uma bandeja.
"No Fundo do Barranco" fica Uklêievo, a aldeia onde o sacristão comeu todo o caviar num funeral. É o fim do mundo, mas tem três fábricas, e na administração distrital havia um telefone, que foi roído pelos insetos. Agora o foco está em Grigori Tsibúkin, o "rei" da aldeia, enriquecido com o comércio ilegal e a usura, em torno de quem pulula uma vida cigana prenhe de tragédia familiar.
No conto "O Assassinato" (1895), o desamparo da estação de Progónaia é o cenário para a discórdia dos primos Iákov e Matviei, o primeiro um fanático ortodoxo e o outro espicaçando-lhe o desejo de ser santo. O tema e a condução dos acontecimentos lembram Dostoiévski. Mas em vez de um mergulho na consciência do culpado o narrador lapida correlativos objetivos.
Essas duas histórias são as que talvez mais se apropriem da literatura oral russa, sempre presente, ao mesmo tempo as que mais se aproximam da novela, ou seja, de uma narrativa relativamente extensa cujo ponto de virada precipita o desfecho.
Tchekov confessava-se às vezes um romancista frustrado (embora os silêncios das suas peças guardem toda uma pequena "Comédia Humana"). Um pouco como "O Homem Célebre" machadiano, que sonhava sonatas e compunha polcas, quando tomava fôlego para um romance saía-lhe um conto. Gerou assim uma prosa inigualável. Explorou a violência latente de um mundo em que narrar se tornaria cada vez mais difícil. Nem foi outra a tônica que Rubens Figueiredo imprimiu à compilação. Afinal, em "O Assassinato e Outras Histórias", estamos às vésperas da Revolução Russa, e não sabemos ao certo o que é crepúsculo e o que é aurora.


Avaliação:     

Vadim Nikitin é diretor de teatro, dramaturgo e tradutor de "Um Bonde Chamado Desejo" e "O Jardim das Cerejeiras"



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