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Autor descortina mundo latente
VADIM NIKITIN
ESPECIAL PARA A FOLHA
O leitor familiarizado com
o Tchekov mestre da narrativa breve e leve talvez estranhe a
extensão de "O Assassinato e Outras Histórias". Inéditos no Brasil,
são contos ou quase novelas da
sua última fase, em que o contista
cedia lugar ao dramaturgo das peças longas. O idealizador e tradutor da coletânea é Rubens Figueiredo, o que já é garantia de fidelidade com imaginação.
A poética desse modo dilatado
de narrar, Tchekov a esboça sob o
signo do fracasso numa carta de
1888 ao seu amigo Alekséi S. Suvórin: "O início me sai cheio de
promessas, como se eu estivesse
começando um romance; o meio
é espremido, tímido, e o final é
uma espécie de fogos de artifício".
Nessa mesma carta, atribui o mau
acabamento, um estilo nascente, a
pressões de prazo e dinheiro.
Como bom narrador russo,
Tchekov teimava em moer no áspero e fantasiar ao mesmo tempo:
neto de servo e filho de comerciante, começou a escrever para
custear os estudos de medicina
em Moscou. A vida inteira contracenou o médico e o literato.
A crítica russa censurava-lhe a
falta de engajamento social e político no assunto e na estrutura, o
que o levou, já célebre, a comparar os críticos a mutucas, "que impedem o cavalo de lavrar a terra".
No fim da década de 1880, a revista "Pensamento Russo" listou-o
entre "sacerdotes de uma literatura sem princípios".
Nesta coletânea, a província é
uma espécie de sertão com neve, e
o sertão é o mundo. Tudo aqui é
provinciano, tanto as cidadezinhas de "O Professor de Letras"
(1894) e "Iônitch" (1898) quanto
os fundões rurais de "Os Mujiques" (1897) e "No Fundo do Barranco" (1900). Tudo aí é periférico, fora do centro.
Nikítin, o professor de letras,
corteja Macha Chelestova, que
aceita o seu pedido de casamento.
A segunda parte do conto revela-se como subtexto mordaz: o idílio
burguês era uma arapuca. Iônitch, protagonista do conto homônimo, nomeado médico da capital provincial de S., desafia o tédio da cidadezinha apaixonando-se por Ekatierina Ivanovna, a filha
única da família local mais culta e
animada. Ela o seduz e o recusa, o
tempo passa, ele engorda, enriquece e se torna figura notória da
cidadezinha. Não há idílio, mas a
vida besta é a mesma, que podia
ter sido e que não foi.
Para Lijin, o jovem juiz de instrução do conto "Em Serviço"
(1899), que viaja a uma aldeia em
função de uma autópsia, um suicídio ocorrido a mil verstas de
Moscou, não vai deixar marcas na
memória. Quem o recebe na aldeia é o ajudante de polícia Lochadin, velho que corre kafkianamente por entre tempestades de
neve, dedicado à burocracia. Lochadin narra a Lijin a sua vida resignada, enquanto este só pensa
em Moscou, "a Rússia autêntica".
Aliás, as casas-grandes das peças longas de Tchekov estão sempre cercadas por essa galeria de
personagens, batendo à porta ou
esperando alguma coisa na neve,
e a sua ausência torna-as mais
presentes, como os escravos em
Machado de Assis. Nesse sentido,
é exemplar o incêndio de "Os Mujiques": enquanto os mujiques bêbados tentam em vão apagar o fogo, do outro lado do rio surgem
carroças de bombeiro, um estudante a cavalo e duas moças bonitas, falando francês. Os mujiques
não são folclore: estão logo ali, do
outro lado.
Mas colocá-los em cena causava
polêmica. Para Liev Tolstoi, que
via no campônio a salvação da
Rússia, "Os Mujiques" era "um
pecado contra o povo russo". Nikolai Tchikildiéiev, um lacaio do
hotel moscovita Bazar Eslavo,
adoece das pernas e entorna uma
bandeja. É obrigado a se demitir e,
na miséria, resolve voltar com
mulher e filha para o ninho da aldeia natal, que se descortina como
um vasto favelário de isbás (as casas camponesas típicas) regado a
vodca. A mãe de Nikolai o chama
de parasita, e o seu velho pai, como Firs, tem saudade do chicote:
"No tempo da servidão era melhor. A gente comia livremente, o
quanto a alma quisesse. E havia
muita severidade." Contra qualquer regionalismo eslavófilo, romântico ou socialista, Tchekov dá
voz a um mundo de homens, os
mujiques, que desaprenderam a
narrar e rezar. Entre esse mundo e
a capital, a queda de uma bandeja.
"No Fundo do Barranco" fica
Uklêievo, a aldeia onde o sacristão
comeu todo o caviar num funeral.
É o fim do mundo, mas tem três
fábricas, e na administração distrital havia um telefone, que foi
roído pelos insetos. Agora o foco
está em Grigori Tsibúkin, o "rei"
da aldeia, enriquecido com o comércio ilegal e a usura, em torno
de quem pulula uma vida cigana
prenhe de tragédia familiar.
No conto "O Assassinato"
(1895), o desamparo da estação de
Progónaia é o cenário para a discórdia dos primos Iákov e Matviei, o primeiro um fanático ortodoxo e o outro espicaçando-lhe o
desejo de ser santo. O tema e a
condução dos acontecimentos
lembram Dostoiévski. Mas em
vez de um mergulho na consciência do culpado o narrador lapida
correlativos objetivos.
Essas duas histórias são as que
talvez mais se apropriem da literatura oral russa, sempre presente, ao mesmo tempo as que mais
se aproximam da novela, ou seja,
de uma narrativa relativamente
extensa cujo ponto de virada precipita o desfecho.
Tchekov confessava-se às vezes
um romancista frustrado (embora os silêncios das suas peças
guardem toda uma pequena "Comédia Humana"). Um pouco como "O Homem Célebre" machadiano, que sonhava sonatas e
compunha polcas, quando tomava fôlego para um romance saía-lhe um conto. Gerou assim uma
prosa inigualável. Explorou a violência latente de um mundo em
que narrar se tornaria cada vez
mais difícil. Nem foi outra a tônica que Rubens Figueiredo imprimiu à compilação. Afinal, em "O
Assassinato e Outras Histórias",
estamos às vésperas da Revolução
Russa, e não sabemos ao certo o
que é crepúsculo e o que é aurora.
Avaliação:
Vadim Nikitin é diretor de teatro, dramaturgo e tradutor de "Um Bonde Chamado Desejo" e "O Jardim das Cerejeiras"
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