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Donjuanismo é mais que estereótipo psicológico
JOÃO BATISTA NATALI
da Reportagem Local
Por volta de 1620, o monge espanhol Gabriel Tellez (1584-1648), conhecido como Tirso de
Molina, escrevia "O Convidado
de Pedra", em que, pela primeira
vez aparecia um personagem,
Don Juan, que se tornaria antológico na dramaturgia ocidental.
Sobre ele, um levantamento feito na França, em 1975, revela terem sido escritas 267 peças ou novelas romantizadas e 70 óperas ou
balés. No cinema, o primeiro
"Don Juan" surgiu na Espanha,
em 1906.
O "Don Giovanni" de Mozart é
apenas uma das tentativas de dar
um rosto preciso ao sedutor,
morto por um fantasma do pai de
uma de suas inúmeras vítimas.
O donjuanismo é bem mais que
um estereótipo psicológico, um
tipo de comportamento que
ameaça a pureza da virgindade e o
matrimônio monogâmico.
Por meio da literatura, ele se
transformou em mito, em instrumento do conhecimento e em
forma de cimentar a coesão social, compartilhada por culturas
que impõem diferentes limites à
sexualidade e à sedução.
Mas como todas elas o fazem, o
donjuanismo possui um lastro de
inegável universalidade. Identificá-lo e combatê-lo é limitar a regras precisas a expressão do desejo sexual.
Um dos lugares-comuns na interpretação do donjuanismo consiste em vê-lo como o oposto de
uma preferência sexual exercida
de forma obsessiva. A obsessão
não passaria de sintoma de uma
masculinidade frágil.
Tanto quanto no "século de ouro" espanhol, em que viveu Tirso
de Molina, Don Juan é para o Ocidente um estorvo à legitimidade
da linhagem. O marido da mulher
seduzida perde a certeza da paternidade do herdeiro. E se o bastardo não chega a herdar bens materiais, sua existência põe em xeque
a imaterialidade da honra.
O agente da sedução não pode
permanecer impune. O Santo Ofício, invenção do cristianismo para normalizar comportamentos
numa Espanha "liberada" de
mouros e judeus, esmerou-se no
enquadramento dos sedutores.
Mas há uma outra forma de punição, aquela que é exercida pela
infalível providência divina, de
densidade mítica incomparavelmente maior. É em suas malhas
que finalmente cai Don Juan
-ou Don Giovanni.
Na ópera, o desfecho é inverossímil. O sedutor convida para jantar a estátua do comendador a
quem matou em duelo e cuja filha
previamente seduziu. E a estátua,
diante da impossibilidade de o
criminoso se redimir de seus crimes, manda-o direto às profundezas do fogo eterno.
As virgens e as potencialmente
adúlteras podem voltar a dormir
tranquilas, mas só até que um novo Don Juan -indefinidamente
revivido com novo rosto e outro
nome- reinicie o ciclo perene e
atemporal do desejo.
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