São Paulo, Sexta-feira, 06 de Agosto de 1999
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Donjuanismo é mais que estereótipo psicológico

JOÃO BATISTA NATALI
da Reportagem Local

Por volta de 1620, o monge espanhol Gabriel Tellez (1584-1648), conhecido como Tirso de Molina, escrevia "O Convidado de Pedra", em que, pela primeira vez aparecia um personagem, Don Juan, que se tornaria antológico na dramaturgia ocidental.
Sobre ele, um levantamento feito na França, em 1975, revela terem sido escritas 267 peças ou novelas romantizadas e 70 óperas ou balés. No cinema, o primeiro "Don Juan" surgiu na Espanha, em 1906.
O "Don Giovanni" de Mozart é apenas uma das tentativas de dar um rosto preciso ao sedutor, morto por um fantasma do pai de uma de suas inúmeras vítimas.
O donjuanismo é bem mais que um estereótipo psicológico, um tipo de comportamento que ameaça a pureza da virgindade e o matrimônio monogâmico.
Por meio da literatura, ele se transformou em mito, em instrumento do conhecimento e em forma de cimentar a coesão social, compartilhada por culturas que impõem diferentes limites à sexualidade e à sedução.
Mas como todas elas o fazem, o donjuanismo possui um lastro de inegável universalidade. Identificá-lo e combatê-lo é limitar a regras precisas a expressão do desejo sexual.
Um dos lugares-comuns na interpretação do donjuanismo consiste em vê-lo como o oposto de uma preferência sexual exercida de forma obsessiva. A obsessão não passaria de sintoma de uma masculinidade frágil.
Tanto quanto no "século de ouro" espanhol, em que viveu Tirso de Molina, Don Juan é para o Ocidente um estorvo à legitimidade da linhagem. O marido da mulher seduzida perde a certeza da paternidade do herdeiro. E se o bastardo não chega a herdar bens materiais, sua existência põe em xeque a imaterialidade da honra.
O agente da sedução não pode permanecer impune. O Santo Ofício, invenção do cristianismo para normalizar comportamentos numa Espanha "liberada" de mouros e judeus, esmerou-se no enquadramento dos sedutores.
Mas há uma outra forma de punição, aquela que é exercida pela infalível providência divina, de densidade mítica incomparavelmente maior. É em suas malhas que finalmente cai Don Juan -ou Don Giovanni.
Na ópera, o desfecho é inverossímil. O sedutor convida para jantar a estátua do comendador a quem matou em duelo e cuja filha previamente seduziu. E a estátua, diante da impossibilidade de o criminoso se redimir de seus crimes, manda-o direto às profundezas do fogo eterno.
As virgens e as potencialmente adúlteras podem voltar a dormir tranquilas, mas só até que um novo Don Juan -indefinidamente revivido com novo rosto e outro nome- reinicie o ciclo perene e atemporal do desejo.



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