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MÚSICA
Compositor identifica no "medo da vulgaridade" um sintoma do fosso social do país, defende o trânsito por repertórios culturais diferentes, critica a pretensão da USP e se diz um "liberal-anarquizante"
Caetano ataca novo apartheid
Eduardo Knapp
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O compositor Caetano Veloso em sessão de fotos para a Folha |
MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
Editor de Domingo
FERNANDO DE BARROS E SILVA
da Reportagem Local
Com mais de 1 milhão de cópias
do CD "Prenda Minha" vendidas,
Caetano Veloso mostra-se mais
uma vez disposto a enfrentar o
gosto do público que o acompanha desde os tempos do tropicalismo: a bandeira predileta do
compositor no momento é atacar
a tendência para o "apartheid social e cultural" que vê em curso
nos meios letrados do país.
"Os bem pensantes têm medo
de áreas que possam identificá-los com a vulgaridade", diz, reafirmando o interesse tropicalista
-estético e político- de transitar por repertórios diferentes.
Para Caetano, essa é "uma maneira de olhar o Brasil e querer enfrentar realmente a dificuldade
que o Brasil apresenta".
Analisando essa dificuldade, o
autor de "Verdade Tropical" avalia que há movimentos sugestivos
em curso no país, como a relativização do papel de "filtro" cultural
exercido pelo Rio, o deslocamento do eixo do Carnaval para a Bahia ou a crescente presença, "às
vezes opressiva", de São Paulo na
TV e na cultura de massas.
"É o Brasil se movimentando,
embora a gente possa também
achar que é a liquidação de tudo,
do sonho chamado Brasil", diz.
Identificado com o primeiro
mandato de Fernando Henrique
Cardoso, que o citou logo após ser
eleito, Caetano diz que não votou
nele em 98, que nunca teve ilusões
quanto à elite tucana paulista e relativiza o papel da USP. "A ambição da USP de ser o único lugar
onde se pode interpretar o Brasil
sempre pareceu chata, além de
evidentemente ingênua", afirma.
Leia a seguir a entrevista com
esse autodenominado "discípulo
de Marcuse" e "liberal anarquizante" sobre algumas das questões em debate hoje no país.
Folha - Com a versão de "Sozinho" você ficou mais popular,
vendeu pela primeira vez mais
de 1 milhão de discos, mas no
espetáculo que está em cartaz
você parece aproveitar o sucesso para "iniciar" essa audiência
nova num repertório que não é
o dela. Você "quebra" o show
em vários momentos, faz referências a temas que em princípio não estariam no horizonte
de seu novo público, como, por
exemplo, quando lê um trecho
de seu livro, "Verdade Tropical",
falando de Augusto de Campos
e da música atonal...
Caetano Veloso - Desde o tropicalismo esses deslocamentos de
níveis de repertório nos interessam. Na verdade, a base do tropicalismo foi isso. Quando me perguntam se o tropicalismo morreu
ou não morreu, eu sempre digo
que sim e que não. Morreu porque acabou o movimento. Não
morreu porque essa atitude básica veio, na verdade, se desenrolando mais amiudadamente e
com mais perícia com o passar
dos anos. Eu, pelo menos, nesse
sentido, me tornei mais tropicalista.
Folha - Essa atitude que você
atribui ao tropicalismo ainda é
uma maneira de ver o Brasil?
Caetano - É uma maneira de
olhar o Brasil e querer enfrentar
realmente a dificuldade que o
Brasil apresenta. E, no Brasil, infelizmente, você logo se depara com
uma tendência para o apartheid.
É uma tendência que se manifesta
no nosso ambiente, ou seja, no
ambiente dos letrados, dos mais
ou menos bem pensantes, dos
que lêem e escrevem em jornais,
vêem filmes ambiciosos e ouvem
boa música.
Folha - A que tipo de apartheid você está se referindo? Social?
Caetano - Social e cultural. Um
dos aspectos centrais da atitude
tropicalista é enfrentar esse problema. É transitar em repertórios
diferentes e tentar fazer com que a
sociedade se mova em relação a
eles. É também, na medida do
possível, tentar borrar eficazmente as linhas de demarcação entre
esses repertórios...
Folha - O resultado desse trânsito entre o alto e o baixo, o vulgar e o erudito etc. é interessante quando realizado por vocês.
O problema é quando o tropicalismo se dilui, quando esse princípio se propaga de uma maneira comercialista e vira uma
grande confusão...
Caetano - É difícil que isso não
aconteça. Aconteceu com a bossa
nova também. Mas o tropicalismo, nessa questão, diferentemente da bossa nova, criou um nó para si mesmo. No caso da bossa nova, basta o sujeito manter-se "puro" em relação às suas escolhas
estéticas, ao gosto, ao apuro da
harmonia, à intensidade da concentração, a tudo aquilo, enfim,
que João Gilberto faz. É um estilo
definido, fechado em si mesmo,
resolvido.
Já o tropicalismo é o oposto disso. E o tropicalismo começou justamente por revalorizar produtos
que são resultado desse processo
de diluição e degradação a que vocês se referem. Ou seja, resultados
tardios de décadas de degradação
são reabilitados pelo tropicalismo
como algo que tem interesse estético. Portanto, as próprias versões
degradadas do tropicalismo, as
vulgarizações comercializantes e
as más interpretações terminam
sendo, em larga medida, da mesma natureza de muitas coisas que
estavam no lixo, e os tropicalistas
trouxeram para a frente da cena.
Folha - Mas, naquele momento, no Brasil, isso correspondia a
uma atitude de combate pela liberdade criativa não apenas
contra o regime militar, mas
também contra o horizonte estético-político de alguns grupos
de esquerda. Hoje, essa captura
de coisas que são quase lixo pode soar simplesmente legitimação... Como no caso da axé music, por exemplo.
Caetano - Eu acho que em relação à axé há uma confusão desnecessária...
Folha - Você parece estar sempre imbuído de uma "missão
histórica": chamar a atenção para coisas duvidosas, que a gente
não sabe se é gosto pessoal ou
se é uma opção para provocar
ruído...
Caetano - É natural que essa
dúvida apareça, porque, como estava dizendo, o tropicalismo cria
esse nó para si mesmo. Mas eu
acho que isso é algo muito claro:
gosto de axé music por que é uma
coisa que eu diretamente consumo, com muito prazer, desde que
vem se desenrolando. Não se trata
absolutamente de escolher algo
incrivelmente vulgar e jogar na
cara das pessoas de uma maneira
"corajosa", entendeu? É sobretudo uma eleição natural de uma
coisa que faz parte da minha vida,
do meu gosto de diversão.
Folha - O Carnaval da Bahia?
Caetano - Sim. Eu acompanhei
passo a passo o desenvolvimento
da música do Carnaval da Bahia.
Todos os anos eu estou lá o verão
inteiro. Essas músicas faziam sucesso às vezes quatro anos antes
de chegar aqui. Agora vocês estão
mais atualizados: elas só demoram um ano... (risos) A axé corresponde 100% à tradição da música de Carnaval. Só que o pólo,
nesse sentido, deslocou-se do Rio
para a Bahia.
Folha - Você acha, então, que
existe um apartheid de setores
do sul do país contra a axé music e a Bahia?
Caetano - Não é contra a Bahia
e a axé music, é contra situações
de que algumas pessoas têm medo. Elas temem coisas que pertençam a uma área que possa identificá-las com os vulgares, com a
vulgaridade. Esse tipo de medo eu
não tenho, nunca tive.
É preciso entender que artistas
como a Daniela Mercury sempre
fizeram parte do Carnaval da Bahia. Os shows dela são profissionalíssimos, como os dos sertanejos, como é o show de Sandy & Júnior. São espetáculos inatacáveis
do ponto de vista profissional. É
como se fosse um show de Las Vegas! Por que vamos ser contra?
Para matar o Brasil? Vamos ser a
favor do suicídio? Não entendo...
Folha - Bem, você pode não
estar a fim de que esse padrão
Las Vegas seja a nota dominante da média cultural brasileira.
Caetano - Mas eu não estou a
fim!
Folha - Tem gente que percebe isso de forma diferente...
Caetano - Pode perceber de diversas outras formas, mas você
não vai, de maneira nenhuma,
poder passar por cima de tudo o
que já falei. É uma música de Carnaval. Vocês acham que o povo é
burro? Que não sabe o que é música para brincar e o que não é? As
letras das marchinhas de Emilinha Borba eram igualmente ingênuas, tolas... Outro dia vi o Aldir
Blanc falando numa entrevista
que não dá para aguentar algumas músicas que vêm da Bahia,
que parecem coisa para débil
mental. Minha gente! Eu estou há
40 anos ouvindo "ala-la-ô-ôôô-ôôô", e todo mundo dizendo que
são os clássicos do Carnaval carioca! E agora eu tenho que ouvir
esse desaforo? Não dá!
Folha - Mais do que o Carnaval, talvez esteja havendo um
deslocamento para a Bahia da
representação emblemática do
Brasil -se é que o Brasil ainda
pode ser representado por um
emblema. Parece que a Bahia
está reivindicando e obtendo isso, de Antonio Carlos Magalhães à axé music, o que faz a
gente imaginar que estaria em
curso uma espécie de "imperialismo baiano" no país...
Caetano - Tomara! (risos)
Folha - No seu trabalho recente isso aparece de modo às vezes incômodo: é o samba carioca com a percussão baiana, é a
bossa nova com a percussão
baiana... É como se o Brasil inteiro tivesse que ser filtrado pela Bahia.
Caetano - Mas a bossa nova, como disse certa vez Tom Jobim,
respondendo a Paulo Francis, foi
inventada por um baiano às margens do rio São Francisco...
Folha - Sim, mas com um carioca compondo...
Caetano - Sim, o maior compositor, Antonio Carlos Jobim. Mas
foi ele mesmo quem disse essa
frase. Isso acaba essa conversa de
imperialismo baiano. Vocês têm
medo disso? A Bahia foi capital
antes, o samba veio da Bahia, o
Rio é como se fosse uma continuação. A Bahia sempre esteve ligada ao Brasil.
Folha - Sempre participou da
simbolização do Brasil, mas o
filtro era o Rio.
Caetano - É ainda. Mas não é só
isso: tudo, na verdade, era via Rio.
Era um filtro muito bom, e é bom
que ele exista. Mas houve um momento em que sentíamos esse filtro como opressor. O que aparecia do filtro eram justamente esses preconceitos, que são mantenedores do apartheid. Foi bom eu
falar em Paulo Francis porque ele
era o representante mais inteligente dessa turma, era como o
chefe que se arvorava em comandar o filtro... E ele no final acabou
explicitando que a questão era essa. Ou seja: aqui no Rio é que se
faz a seleção, aqui é que se tem
bom gosto, aqui é que temos informação do que é importante internacionalmente...
Eu também me alimento e gosto
muito do Rio. Mas acontece que o
Brasil tem que andar para a frente.
Vocês estão falando da Bahia, mas
São Paulo, por exemplo, em termos de cultura de massas, passou
a ter uma presença que não tinha.
Uma presença que pode ser sentida de forma igualmente opressiva...
Folha - Você fala do pagode e
do sertanejo?
Caetano - Sobretudo a televisão. A Globo está cada vez mais
paulista, porque o mercado é paulista. Depois que acaba a ditadura
e a hegemonia da Globo é relativizada, você começa a sentir a força
da audiência paulista impregnando o modo de ser das novelas, da
programação...
Folha - De uma maneira, aliás,
esquisitíssima...
Caetano - Muito mais esquisita
do que a axé music! Mas tudo isso
tem um aspecto saudável.
Folha - Qual seja?
Caetano - É ver o Brasil se movimentando, as regiões se mostrando. Há algo interessante na
atualidade brasileira. Essa relativização do Rio de Janeiro como
filtro do país, as presenças da Bahia, de Pernambuco, de Minas, de
São Paulo, umas com maior, outras com menor força, todas significando um abalo, às vezes ameaçador, às vezes difícil, mas que pode trazer esperanças. Isso faz
parte da necessidade de o país se
mover, como se as classes não
aceitassem mais a situação atual.
A gente pode também achar
que é uma liquidação de tudo,
simplesmente o fim de um antigo
sonho chamado Brasil... Mas eu
muitas vezes sinto isso como uma
passagem.
Folha - Por falar em passagem,
como você está vendo as últimas movimentações de Antonio
Carlos Magalhães?
Caetano - Eu sempre fui, sem
nenhum momento de oscilação,
opositor político do Antonio Carlos Magalhães na Bahia. Opositor
natural, mas sem inimizade, à
maneira baiana. O Antonio Carlos é um grande talento político.
Ele é desses que, quando quer fazer o negócio, o negócio é feito.
Mas ele representa uma coisa
que eu quero que a Bahia e o Brasil superem: a necessidade de uma
figura caudilhesca. Nesse sentido,
tal como é agora, não quero que a
Bahia seja o filtro do Brasil. A Bahia é um lugar atrasado, no sentido de que é um lugar que precisa
de um dono. Talvez outros lugares sejam assim, mas a Bahia está
funcionando muito bem nesse estágio, o que significa que ela ainda
está nesse estágio.
Folha - Como você vê a tentativa de ACM de assumir a dianteira do combate à miséria?
Caetano - Eu lembro que, ainda
no final do regime militar, durante a inauguração do aeroporto de
Salvador, o ministro da Aeronáutica soltou umas indiretas para o
Antonio Carlos. No dia seguinte,
ele foi para a televisão e atacou
fortemente o ministro e os militares. Eu pensei: se esse cara está falando isso, é porque o regime militar acabou mesmo!
Agora, fazem piada e restrições
técnicas à sua proposta de um imposto contra a pobreza. É claro
que há uma jogada nisso, mas ele
nunca bateu prego sem estopa.
Não quero discutir o lado técnico, não é esse o ponto. Se Antonio
Carlos está pegando esse assunto,
é porque o assunto está na agenda
da sociedade. Não se suporta mais
o tipo de distribuição de renda
que o Brasil sustenta.
Folha - Como você está vendo
a elite intelectual tucana no poder? O Fernando Henrique se
preparou durante 30 anos para
chegar lá, e, no final, o resultado pode ser uma grande decepção histórica, além do fracasso
de uma geração. Ou não?
Caetano - As coisas são feitas
com políticos que a sociedade pode produzir. Você não pode imaginar um político ideal, que seja
melhor do que a sociedade pode
produzir. As coisas que o Antonio
Carlos fez na Bahia recentemente
levam a Bahia a poder se livrar dele mais rápido. Getúlio Vargas fez
muito mais contra Getúlio Vargas
do que Fernando Henrique está
sendo capaz de fazer. Ele levou à
própria superação do que havia
nele de arcaico e de superável.
Porque ele era grande politicamente. No caso de Fernando Henrique, é o oposto.
"Às vezes parece que está havendo uma liquidação de tudo, o fim de um sonho chamado Brasil..."
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Folha - Afinal, você está decepcionado ou não?
Caetano - Eu não participo dessa decepção em relação à elite tucana porque nunca tive grandes
expectativas em relação a ela. Jamais. Eu acho até que o Fernando
Henrique está se saindo muito
bem. Votei nele na primeira eleição, mas não votei na reeleição,
embora seja a favor de reeleição.
Porém acho que, para as minhas
expectativas, tá indo, tá dando...
Parece até que eu estou posando
de bacana diante de vocês. Mas
acho que muita gente que não é de
São Paulo teve mais facilidade de
sentir isso do que as pessoas daqui. A ambição da USP de ser o
único lugar onde se pode interpretar o Brasil sempre pareceu
chata, além de evidentemente ingênua -apesar do nível intelectual que se desenvolveu ali e da
importância que tem a USP.
Folha - Até parece que o político FHC nunca lhe impressionou.
Caetano - O histórico político
do Fernando Henrique não apontava para um grande político, um
homem de força.
Folha - Ele não era exatamente
um "animal político"...
Caetano - Ele não é um animal
político. Aliás, ele não é um animal, falta um pouco de animalidade a ele, com toda a conotação
que a palavra tem hoje.
Folha - Você ficou muito irritado com a tentativa, entre outros
da própria Folha, de associar
sua imagem ao ciclo FHC.
Caetano - É. Eu sou visceralmente contra uma frase que o
Fernando Henrique disse no livro
de entrevista com o Mário Soares,
referindo-se aos Estados Unidos:
"Nós queremos ser como eles".
Isso para mim é profundamente
antitropicalista, é o oposto do que
eu penso e sempre pensei.
Ser como eles é justamente o
que eu não quero. Pelo contrário,
me interessa causar uma outra
coisa, criar uma outra coisa
-que as nossas dificuldades e as
nossas originalidades contribuam
para que aconteça algo diferente.
Eu não acredito no que está aí! Eu
sou herdeiro de Marcuse! Eu não
acredito nesse negócio! Tá por fora quem pensa que eu acredito
nisso! Pode parecer estranho dizer isso porque, de fato, sou um liberal. Mas sou liberal radical.
Folha - Isso existe no Brasil?
Caetano - Os liberais brasileiros
no fundo terminam concordando
com o Partido Republicano norte-americano. Ficam contra o
aborto, contra o homossexualismo, contra a maconha, contra a
mudança do apartheid social. É
sempre aquele tom de gente que
escreve carta para redação de jornal dizendo (imita voz de pessoa
boçal resmungando): "Esses grupos de direitos humanos só defendem bandidos. E o cidadão de
bem?". Eu não gosto nada desse
negócio. Eu não tô nessa, embora
seja um cara do entretenimento,
um músico popular. Eu não sou
conformista. Não me identifico
com esse status. Sou liberal-anarquizante, se a gente quiser dar nome europeu a essa história toda.
Folha - Voltando ao Fernando
Henrique, você se sentiu pouco
à vontade com o fato de ele ter
citado seu nome logo na primeira entrevista depois de eleito?
Caetano - Fiquei um pouco surpreso. Achei que foi um gesto de
populismo sofisticado. Mas ele é
um sujeito muito simpático, muito educado, dona Ruth é muito
bacana. Eu estive no Palácio do
Alvorada. Ficou lindo depois que
eles entraram. Essas coisas têm
grande valor simbólico, e eu não
vejo ressaltadas pela imprensa.
Vocês têm medo de parecer simpáticos, de parecer que estão elogiando o governante.
Folha - O que você falou do liberalismo brasileiro, que tem
traços paternalistas, faz lembrar
uma observação do historiador
Fernando Novais a respeito de
"Raízes do Brasil", do Sergio
Buarque de Holanda. Ele diz que
o Sergio Buarque escreveu o livro pensando no seguinte: essa
é a nossa herança até aqui, o
que é que a gente vai fazer dela
daqui para a frente? Como é que
a gente vai matar o homem cordial, o pessoalismo brasileiro?
Caetano - É muito interessante
isso. É o contrário do Gilberto
Freyre, que olhava com certa ternura para o período colonial. O
Sergio Buarque estava olhando
mais para frente, nesse sentido.
Mas há uma coisa essencial no
Gilberto Freyre: ele sedimentou
intelectualmente a virada da interpretação da questão racial no
Brasil. É claro que o Fernando Henrique, como todo mundo da
USP, era inimigo do Gilberto
Freyre. São bem-pensantes.
Mas, quando ele diz que, com a
vivência política, passou a entender mais Gilberto Freyre, isso
enriquece a figura dele. O Gilberto
Freyre deu lastro firme para o mito da democracia racial, que eu
acho o nosso mais importante mito de nacionalidade. Também o
nosso mais belo mito de nacionalidade -e não há nacionalidade
sem mito.
Folha - Quando você escreveu
o livro, deve ter pensado em alguns interlocutores. Quais foram eles?
Caetano - Alguns um pouco,
mas eu escrevi o livro muito mais
contra o Paulo Francis. Fiquei
muito mal quando ele morreu. Eu
estava terminando o livro, já
exausto, quando soube da morte
dele e me senti muito mal.
Folha - O livro soa, em certo
sentido, autoconsagratório, um
pouco como a autobiografia do
Roberto Campos, "Lanterna na
Popa"...
Caetano - Isso é uma coisa que o
livro não poderia deixar de ter,
dado o histórico da sua gênese. Eu
apostava nisso que está acontecendo agora, no interesse pelo
tropicalismo, nesse diálogo com
os criadores estrangeiros.
Folha - O livro reaviva o tropicalismo, mas o fato é que o ambiente histórico mudou. Havia
questões em jogo naquele momento, mas os conflitos foram
desarmados. Será que o tropicalismo não se tornou só mais
uma preferência estética?
Caetano - Para mim, ainda há
questões em jogo. Na minha visão
tropicalista, esse desarme já estava presente. O tropicalismo já se
punha como quem aposta no desarme ideológico. Por isso é que o
tropicalismo foi trans-ideológico
e teve problemas com várias áreas
mais definidas ideologicamente,
da direita e da esquerda.
Folha - Você e Chico Buarque
são dois músicos, mas também
são intelectuais. Por que o Brasil
acabou gerando na música popular essas duas figuras, tão diferentes, mas tão parecidas?
Caetano - Acho que é o contrário, que a música brasileira atraiu
pessoas que em outro lugar iriam
fazer outra coisa. A música popular aqui é muito forte. Por outro
lado, a cultura erudita é muito incipiente. O Brasil é um lugar ao
mesmo tempo insuficiente e
exorbitante.
Folha - Ultimamente, você parece ter com o Chico um excesso
de zelo, um cuidado especial. É
diplomacia em relação ao que
ele pudesse achar do livro?
Caetano - Não, a diplomacia já
estava feita. Eu fiquei maravilhado quando saiu finalmente o último disco dele, porque o que tem
de parecido com o show de Chico
na música "Livros" e um pouco
nos ""Passistas" são coisas que ele
fazia antigamente, com as quais as
músicas novas dele não parecem
nada. Aliás, em relação ao Chico,
a Folha pagou um mico terrível.
Mandou um sujeito escrever e publicou o texto em que ele dizia que
não tinha ouvido o disco do Chico
e não precisava ouvir.
Eu não devo me meter em jornalismo, seria um péssimo editor
de jornal, mas aquele tom que começou na Ilustrada e que vem
das publicações de música de
Londres não dá. A imprensa inglesa é uma das piores do mundo.
A mais suja do mundo. Mas, mesmo lá, não é no "Times" que as
pessoas escrevem essas coisas. É
naqueles tablóides de lixo. Ninguém vai encontrar isso no "New
York Times". Esse estilo que a
Ilustrada comprou e que se disseminou pela imprensa brasileira é
uma vergonha. Como é que isso é
mantido pela grande imprensa
brasileira?
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