São Paulo, Sexta-feira, 06 de Agosto de 1999
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MÚSICA
Compositor identifica no "medo da vulgaridade" um sintoma do fosso social do país, defende o trânsito por repertórios culturais diferentes, critica a pretensão da USP e se diz um "liberal-anarquizante"
Caetano ataca novo apartheid
Eduardo Knapp
O compositor Caetano Veloso em sessão de fotos para a Folha


MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
Editor de Domingo

FERNANDO DE BARROS E SILVA
da Reportagem Local

Com mais de 1 milhão de cópias do CD "Prenda Minha" vendidas, Caetano Veloso mostra-se mais uma vez disposto a enfrentar o gosto do público que o acompanha desde os tempos do tropicalismo: a bandeira predileta do compositor no momento é atacar a tendência para o "apartheid social e cultural" que vê em curso nos meios letrados do país.
"Os bem pensantes têm medo de áreas que possam identificá-los com a vulgaridade", diz, reafirmando o interesse tropicalista -estético e político- de transitar por repertórios diferentes.
Para Caetano, essa é "uma maneira de olhar o Brasil e querer enfrentar realmente a dificuldade que o Brasil apresenta".
Analisando essa dificuldade, o autor de "Verdade Tropical" avalia que há movimentos sugestivos em curso no país, como a relativização do papel de "filtro" cultural exercido pelo Rio, o deslocamento do eixo do Carnaval para a Bahia ou a crescente presença, "às vezes opressiva", de São Paulo na TV e na cultura de massas.
"É o Brasil se movimentando, embora a gente possa também achar que é a liquidação de tudo, do sonho chamado Brasil", diz.
Identificado com o primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso, que o citou logo após ser eleito, Caetano diz que não votou nele em 98, que nunca teve ilusões quanto à elite tucana paulista e relativiza o papel da USP. "A ambição da USP de ser o único lugar onde se pode interpretar o Brasil sempre pareceu chata, além de evidentemente ingênua", afirma.
Leia a seguir a entrevista com esse autodenominado "discípulo de Marcuse" e "liberal anarquizante" sobre algumas das questões em debate hoje no país.

Folha - Com a versão de "Sozinho" você ficou mais popular, vendeu pela primeira vez mais de 1 milhão de discos, mas no espetáculo que está em cartaz você parece aproveitar o sucesso para "iniciar" essa audiência nova num repertório que não é o dela. Você "quebra" o show em vários momentos, faz referências a temas que em princípio não estariam no horizonte de seu novo público, como, por exemplo, quando lê um trecho de seu livro, "Verdade Tropical", falando de Augusto de Campos e da música atonal...
Caetano Veloso -
Desde o tropicalismo esses deslocamentos de níveis de repertório nos interessam. Na verdade, a base do tropicalismo foi isso. Quando me perguntam se o tropicalismo morreu ou não morreu, eu sempre digo que sim e que não. Morreu porque acabou o movimento. Não morreu porque essa atitude básica veio, na verdade, se desenrolando mais amiudadamente e com mais perícia com o passar dos anos. Eu, pelo menos, nesse sentido, me tornei mais tropicalista.

Folha - Essa atitude que você atribui ao tropicalismo ainda é uma maneira de ver o Brasil?
Caetano -
É uma maneira de olhar o Brasil e querer enfrentar realmente a dificuldade que o Brasil apresenta. E, no Brasil, infelizmente, você logo se depara com uma tendência para o apartheid. É uma tendência que se manifesta no nosso ambiente, ou seja, no ambiente dos letrados, dos mais ou menos bem pensantes, dos que lêem e escrevem em jornais, vêem filmes ambiciosos e ouvem boa música.

Folha - A que tipo de apartheid você está se referindo? Social?
Caetano -
Social e cultural. Um dos aspectos centrais da atitude tropicalista é enfrentar esse problema. É transitar em repertórios diferentes e tentar fazer com que a sociedade se mova em relação a eles. É também, na medida do possível, tentar borrar eficazmente as linhas de demarcação entre esses repertórios...

Folha - O resultado desse trânsito entre o alto e o baixo, o vulgar e o erudito etc. é interessante quando realizado por vocês. O problema é quando o tropicalismo se dilui, quando esse princípio se propaga de uma maneira comercialista e vira uma grande confusão...
Caetano -
É difícil que isso não aconteça. Aconteceu com a bossa nova também. Mas o tropicalismo, nessa questão, diferentemente da bossa nova, criou um nó para si mesmo. No caso da bossa nova, basta o sujeito manter-se "puro" em relação às suas escolhas estéticas, ao gosto, ao apuro da harmonia, à intensidade da concentração, a tudo aquilo, enfim, que João Gilberto faz. É um estilo definido, fechado em si mesmo, resolvido.
Já o tropicalismo é o oposto disso. E o tropicalismo começou justamente por revalorizar produtos que são resultado desse processo de diluição e degradação a que vocês se referem. Ou seja, resultados tardios de décadas de degradação são reabilitados pelo tropicalismo como algo que tem interesse estético. Portanto, as próprias versões degradadas do tropicalismo, as vulgarizações comercializantes e as más interpretações terminam sendo, em larga medida, da mesma natureza de muitas coisas que estavam no lixo, e os tropicalistas trouxeram para a frente da cena.

Folha - Mas, naquele momento, no Brasil, isso correspondia a uma atitude de combate pela liberdade criativa não apenas contra o regime militar, mas também contra o horizonte estético-político de alguns grupos de esquerda. Hoje, essa captura de coisas que são quase lixo pode soar simplesmente legitimação... Como no caso da axé music, por exemplo.
Caetano -
Eu acho que em relação à axé há uma confusão desnecessária...

Folha - Você parece estar sempre imbuído de uma "missão histórica": chamar a atenção para coisas duvidosas, que a gente não sabe se é gosto pessoal ou se é uma opção para provocar ruído...
Caetano -
É natural que essa dúvida apareça, porque, como estava dizendo, o tropicalismo cria esse nó para si mesmo. Mas eu acho que isso é algo muito claro: gosto de axé music por que é uma coisa que eu diretamente consumo, com muito prazer, desde que vem se desenrolando. Não se trata absolutamente de escolher algo incrivelmente vulgar e jogar na cara das pessoas de uma maneira "corajosa", entendeu? É sobretudo uma eleição natural de uma coisa que faz parte da minha vida, do meu gosto de diversão.

Folha - O Carnaval da Bahia?
Caetano -
Sim. Eu acompanhei passo a passo o desenvolvimento da música do Carnaval da Bahia. Todos os anos eu estou lá o verão inteiro. Essas músicas faziam sucesso às vezes quatro anos antes de chegar aqui. Agora vocês estão mais atualizados: elas só demoram um ano... (risos) A axé corresponde 100% à tradição da música de Carnaval. Só que o pólo, nesse sentido, deslocou-se do Rio para a Bahia.

Folha - Você acha, então, que existe um apartheid de setores do sul do país contra a axé music e a Bahia?
Caetano -
Não é contra a Bahia e a axé music, é contra situações de que algumas pessoas têm medo. Elas temem coisas que pertençam a uma área que possa identificá-las com os vulgares, com a vulgaridade. Esse tipo de medo eu não tenho, nunca tive.
É preciso entender que artistas como a Daniela Mercury sempre fizeram parte do Carnaval da Bahia. Os shows dela são profissionalíssimos, como os dos sertanejos, como é o show de Sandy & Júnior. São espetáculos inatacáveis do ponto de vista profissional. É como se fosse um show de Las Vegas! Por que vamos ser contra? Para matar o Brasil? Vamos ser a favor do suicídio? Não entendo...

Folha - Bem, você pode não estar a fim de que esse padrão Las Vegas seja a nota dominante da média cultural brasileira.
Caetano -
Mas eu não estou a fim!

Folha - Tem gente que percebe isso de forma diferente...
Caetano -
Pode perceber de diversas outras formas, mas você não vai, de maneira nenhuma, poder passar por cima de tudo o que já falei. É uma música de Carnaval. Vocês acham que o povo é burro? Que não sabe o que é música para brincar e o que não é? As letras das marchinhas de Emilinha Borba eram igualmente ingênuas, tolas... Outro dia vi o Aldir Blanc falando numa entrevista que não dá para aguentar algumas músicas que vêm da Bahia, que parecem coisa para débil mental. Minha gente! Eu estou há 40 anos ouvindo "ala-la-ô-ôôô-ôôô", e todo mundo dizendo que são os clássicos do Carnaval carioca! E agora eu tenho que ouvir esse desaforo? Não dá!

Folha - Mais do que o Carnaval, talvez esteja havendo um deslocamento para a Bahia da representação emblemática do Brasil -se é que o Brasil ainda pode ser representado por um emblema. Parece que a Bahia está reivindicando e obtendo isso, de Antonio Carlos Magalhães à axé music, o que faz a gente imaginar que estaria em curso uma espécie de "imperialismo baiano" no país...
Caetano -
Tomara! (risos)

Folha - No seu trabalho recente isso aparece de modo às vezes incômodo: é o samba carioca com a percussão baiana, é a bossa nova com a percussão baiana... É como se o Brasil inteiro tivesse que ser filtrado pela Bahia.
Caetano -
Mas a bossa nova, como disse certa vez Tom Jobim, respondendo a Paulo Francis, foi inventada por um baiano às margens do rio São Francisco...

Folha - Sim, mas com um carioca compondo...
Caetano -
Sim, o maior compositor, Antonio Carlos Jobim. Mas foi ele mesmo quem disse essa frase. Isso acaba essa conversa de imperialismo baiano. Vocês têm medo disso? A Bahia foi capital antes, o samba veio da Bahia, o Rio é como se fosse uma continuação. A Bahia sempre esteve ligada ao Brasil.

Folha - Sempre participou da simbolização do Brasil, mas o filtro era o Rio.
Caetano -
É ainda. Mas não é só isso: tudo, na verdade, era via Rio. Era um filtro muito bom, e é bom que ele exista. Mas houve um momento em que sentíamos esse filtro como opressor. O que aparecia do filtro eram justamente esses preconceitos, que são mantenedores do apartheid. Foi bom eu falar em Paulo Francis porque ele era o representante mais inteligente dessa turma, era como o chefe que se arvorava em comandar o filtro... E ele no final acabou explicitando que a questão era essa. Ou seja: aqui no Rio é que se faz a seleção, aqui é que se tem bom gosto, aqui é que temos informação do que é importante internacionalmente...
Eu também me alimento e gosto muito do Rio. Mas acontece que o Brasil tem que andar para a frente. Vocês estão falando da Bahia, mas São Paulo, por exemplo, em termos de cultura de massas, passou a ter uma presença que não tinha. Uma presença que pode ser sentida de forma igualmente opressiva...

Folha - Você fala do pagode e do sertanejo?
Caetano -
Sobretudo a televisão. A Globo está cada vez mais paulista, porque o mercado é paulista. Depois que acaba a ditadura e a hegemonia da Globo é relativizada, você começa a sentir a força da audiência paulista impregnando o modo de ser das novelas, da programação...

Folha - De uma maneira, aliás, esquisitíssima...
Caetano -
Muito mais esquisita do que a axé music! Mas tudo isso tem um aspecto saudável.

Folha - Qual seja?
Caetano -
É ver o Brasil se movimentando, as regiões se mostrando. Há algo interessante na atualidade brasileira. Essa relativização do Rio de Janeiro como filtro do país, as presenças da Bahia, de Pernambuco, de Minas, de São Paulo, umas com maior, outras com menor força, todas significando um abalo, às vezes ameaçador, às vezes difícil, mas que pode trazer esperanças. Isso faz parte da necessidade de o país se mover, como se as classes não aceitassem mais a situação atual.
A gente pode também achar que é uma liquidação de tudo, simplesmente o fim de um antigo sonho chamado Brasil... Mas eu muitas vezes sinto isso como uma passagem.

Folha - Por falar em passagem, como você está vendo as últimas movimentações de Antonio Carlos Magalhães?
Caetano -
Eu sempre fui, sem nenhum momento de oscilação, opositor político do Antonio Carlos Magalhães na Bahia. Opositor natural, mas sem inimizade, à maneira baiana. O Antonio Carlos é um grande talento político. Ele é desses que, quando quer fazer o negócio, o negócio é feito.
Mas ele representa uma coisa que eu quero que a Bahia e o Brasil superem: a necessidade de uma figura caudilhesca. Nesse sentido, tal como é agora, não quero que a Bahia seja o filtro do Brasil. A Bahia é um lugar atrasado, no sentido de que é um lugar que precisa de um dono. Talvez outros lugares sejam assim, mas a Bahia está funcionando muito bem nesse estágio, o que significa que ela ainda está nesse estágio.

Folha - Como você vê a tentativa de ACM de assumir a dianteira do combate à miséria?
Caetano -
Eu lembro que, ainda no final do regime militar, durante a inauguração do aeroporto de Salvador, o ministro da Aeronáutica soltou umas indiretas para o Antonio Carlos. No dia seguinte, ele foi para a televisão e atacou fortemente o ministro e os militares. Eu pensei: se esse cara está falando isso, é porque o regime militar acabou mesmo!
Agora, fazem piada e restrições técnicas à sua proposta de um imposto contra a pobreza. É claro que há uma jogada nisso, mas ele nunca bateu prego sem estopa.
Não quero discutir o lado técnico, não é esse o ponto. Se Antonio Carlos está pegando esse assunto, é porque o assunto está na agenda da sociedade. Não se suporta mais o tipo de distribuição de renda que o Brasil sustenta.

Folha - Como você está vendo a elite intelectual tucana no poder? O Fernando Henrique se preparou durante 30 anos para chegar lá, e, no final, o resultado pode ser uma grande decepção histórica, além do fracasso de uma geração. Ou não?
Caetano -
As coisas são feitas com políticos que a sociedade pode produzir. Você não pode imaginar um político ideal, que seja melhor do que a sociedade pode produzir. As coisas que o Antonio Carlos fez na Bahia recentemente levam a Bahia a poder se livrar dele mais rápido. Getúlio Vargas fez muito mais contra Getúlio Vargas do que Fernando Henrique está sendo capaz de fazer. Ele levou à própria superação do que havia nele de arcaico e de superável. Porque ele era grande politicamente. No caso de Fernando Henrique, é o oposto.


"Às vezes parece que está havendo uma liquidação de tudo, o fim de um sonho chamado Brasil..."


Folha - Afinal, você está decepcionado ou não?
Caetano -
Eu não participo dessa decepção em relação à elite tucana porque nunca tive grandes expectativas em relação a ela. Jamais. Eu acho até que o Fernando Henrique está se saindo muito bem. Votei nele na primeira eleição, mas não votei na reeleição, embora seja a favor de reeleição. Porém acho que, para as minhas expectativas, tá indo, tá dando...
Parece até que eu estou posando de bacana diante de vocês. Mas acho que muita gente que não é de São Paulo teve mais facilidade de sentir isso do que as pessoas daqui. A ambição da USP de ser o único lugar onde se pode interpretar o Brasil sempre pareceu chata, além de evidentemente ingênua -apesar do nível intelectual que se desenvolveu ali e da importância que tem a USP.

Folha - Até parece que o político FHC nunca lhe impressionou.
Caetano -
O histórico político do Fernando Henrique não apontava para um grande político, um homem de força.

Folha - Ele não era exatamente um "animal político"...
Caetano -
Ele não é um animal político. Aliás, ele não é um animal, falta um pouco de animalidade a ele, com toda a conotação que a palavra tem hoje.

Folha - Você ficou muito irritado com a tentativa, entre outros da própria Folha, de associar sua imagem ao ciclo FHC.
Caetano -
É. Eu sou visceralmente contra uma frase que o Fernando Henrique disse no livro de entrevista com o Mário Soares, referindo-se aos Estados Unidos: "Nós queremos ser como eles". Isso para mim é profundamente antitropicalista, é o oposto do que eu penso e sempre pensei.
Ser como eles é justamente o que eu não quero. Pelo contrário, me interessa causar uma outra coisa, criar uma outra coisa -que as nossas dificuldades e as nossas originalidades contribuam para que aconteça algo diferente. Eu não acredito no que está aí! Eu sou herdeiro de Marcuse! Eu não acredito nesse negócio! Tá por fora quem pensa que eu acredito nisso! Pode parecer estranho dizer isso porque, de fato, sou um liberal. Mas sou liberal radical.

Folha - Isso existe no Brasil?
Caetano -
Os liberais brasileiros no fundo terminam concordando com o Partido Republicano norte-americano. Ficam contra o aborto, contra o homossexualismo, contra a maconha, contra a mudança do apartheid social. É sempre aquele tom de gente que escreve carta para redação de jornal dizendo (imita voz de pessoa boçal resmungando): "Esses grupos de direitos humanos só defendem bandidos. E o cidadão de bem?". Eu não gosto nada desse negócio. Eu não tô nessa, embora seja um cara do entretenimento, um músico popular. Eu não sou conformista. Não me identifico com esse status. Sou liberal-anarquizante, se a gente quiser dar nome europeu a essa história toda.

Folha - Voltando ao Fernando Henrique, você se sentiu pouco à vontade com o fato de ele ter citado seu nome logo na primeira entrevista depois de eleito?
Caetano -
Fiquei um pouco surpreso. Achei que foi um gesto de populismo sofisticado. Mas ele é um sujeito muito simpático, muito educado, dona Ruth é muito bacana. Eu estive no Palácio do Alvorada. Ficou lindo depois que eles entraram. Essas coisas têm grande valor simbólico, e eu não vejo ressaltadas pela imprensa. Vocês têm medo de parecer simpáticos, de parecer que estão elogiando o governante.

Folha - O que você falou do liberalismo brasileiro, que tem traços paternalistas, faz lembrar uma observação do historiador Fernando Novais a respeito de "Raízes do Brasil", do Sergio Buarque de Holanda. Ele diz que o Sergio Buarque escreveu o livro pensando no seguinte: essa é a nossa herança até aqui, o que é que a gente vai fazer dela daqui para a frente? Como é que a gente vai matar o homem cordial, o pessoalismo brasileiro?
Caetano -
É muito interessante isso. É o contrário do Gilberto Freyre, que olhava com certa ternura para o período colonial. O Sergio Buarque estava olhando mais para frente, nesse sentido. Mas há uma coisa essencial no Gilberto Freyre: ele sedimentou intelectualmente a virada da interpretação da questão racial no Brasil. É claro que o Fernando Henrique, como todo mundo da USP, era inimigo do Gilberto Freyre. São bem-pensantes.
Mas, quando ele diz que, com a vivência política, passou a entender mais Gilberto Freyre, isso enriquece a figura dele. O Gilberto Freyre deu lastro firme para o mito da democracia racial, que eu acho o nosso mais importante mito de nacionalidade. Também o nosso mais belo mito de nacionalidade -e não há nacionalidade sem mito.

Folha - Quando você escreveu o livro, deve ter pensado em alguns interlocutores. Quais foram eles?
Caetano
- Alguns um pouco, mas eu escrevi o livro muito mais contra o Paulo Francis. Fiquei muito mal quando ele morreu. Eu estava terminando o livro, já exausto, quando soube da morte dele e me senti muito mal.

Folha - O livro soa, em certo sentido, autoconsagratório, um pouco como a autobiografia do Roberto Campos, "Lanterna na Popa"...
Caetano
- Isso é uma coisa que o livro não poderia deixar de ter, dado o histórico da sua gênese. Eu apostava nisso que está acontecendo agora, no interesse pelo tropicalismo, nesse diálogo com os criadores estrangeiros.

Folha - O livro reaviva o tropicalismo, mas o fato é que o ambiente histórico mudou. Havia questões em jogo naquele momento, mas os conflitos foram desarmados. Será que o tropicalismo não se tornou só mais uma preferência estética?
Caetano
- Para mim, ainda há questões em jogo. Na minha visão tropicalista, esse desarme já estava presente. O tropicalismo já se punha como quem aposta no desarme ideológico. Por isso é que o tropicalismo foi trans-ideológico e teve problemas com várias áreas mais definidas ideologicamente, da direita e da esquerda.

Folha - Você e Chico Buarque são dois músicos, mas também são intelectuais. Por que o Brasil acabou gerando na música popular essas duas figuras, tão diferentes, mas tão parecidas?
Caetano
- Acho que é o contrário, que a música brasileira atraiu pessoas que em outro lugar iriam fazer outra coisa. A música popular aqui é muito forte. Por outro lado, a cultura erudita é muito incipiente. O Brasil é um lugar ao mesmo tempo insuficiente e exorbitante.

Folha - Ultimamente, você parece ter com o Chico um excesso de zelo, um cuidado especial. É diplomacia em relação ao que ele pudesse achar do livro?
Caetano -
Não, a diplomacia já estava feita. Eu fiquei maravilhado quando saiu finalmente o último disco dele, porque o que tem de parecido com o show de Chico na música "Livros" e um pouco nos ""Passistas" são coisas que ele fazia antigamente, com as quais as músicas novas dele não parecem nada. Aliás, em relação ao Chico, a Folha pagou um mico terrível. Mandou um sujeito escrever e publicou o texto em que ele dizia que não tinha ouvido o disco do Chico e não precisava ouvir.
Eu não devo me meter em jornalismo, seria um péssimo editor de jornal, mas aquele tom que começou na Ilustrada e que vem das publicações de música de Londres não dá. A imprensa inglesa é uma das piores do mundo. A mais suja do mundo. Mas, mesmo lá, não é no "Times" que as pessoas escrevem essas coisas. É naqueles tablóides de lixo. Ninguém vai encontrar isso no "New York Times". Esse estilo que a Ilustrada comprou e que se disseminou pela imprensa brasileira é uma vergonha. Como é que isso é mantido pela grande imprensa brasileira?


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