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CARLOS HEITOR CONY
Duas epístolas sobre o amor via Internet
"Sei que pode parecer presunção, mas há algumas semanas
caiu em minhas mãos uma crônica de sua autoria, intitulada "Vizinhos e Internautas", e confesso-lhe não me contive em lhe escrever
para registrar minha discordância. Minha e de uma pessoa muito
especial, que conheci há pouco
mais de dois meses."
Recebo duas cartas com o mesmo assunto. São de dois internautas, ela e ela, que se conheceram,
namoraram e se amam via eletrônica. Acredito que tenham chegado às vias de fato. Merecem.
As duas cartas merecem também transcrição, pois revelam, ao
menos para mim, o quanto pode a
comunicabilidade humana. Os
dois usaram pseudônimos, creio
que apropriados. Começo pela
carta do homem:
"Não discordamos de tudo que
o senhor coloca. Realmente a sociedade moderna e todos os avanços sociais e tecnológicos que advirão dela ajudaram o homem a
se isolar cada vez mais. A interatividade (palavra de ordem nas
grandes redes televisivas) realmente existe, principalmente no
que se refere aos "chats" ou salas de
conversação.
"É bem verdade que muita besteira se escuta e no mais das vezes
pouca coisa se aproveita, mas é
sempre um contato humano. (...)
Foi exatamente em um desses
"chats" que eu a conheci. Sei também que desses encontros nasceu
um relacionamento forte e honesto, uma amizade que rapidamente evoluiu para algo mais, até a
vir a se transformar em um namoro e uma necessidade imensa
de sairmos do virtual e passarmos
para o real.
"Não trocamos "fotos na primeira carta", mas essa necessidade
surgiu naturalmente. Precisávamos nos conhecer ou nos certificar
de que aquilo que desejávamos
não era o conhecimento e sim o
reconhecimento, um do outro.
Sim... reconhecimento, pois já nos
conhecíamos. Conhecemo-nos
por meio de nossos contatos no
mundo virtual. Pela nossa franqueza. Por meio do preenchimento de nossas necessidades mais
básicas e de coincidências, tão
precisas quanto absurdas, para
pessoas que vivem a mais de 600
km de distância, uma da outra.
"O que será de nós? Só o futuro
poderá responder. Mas uma certeza trago comigo: hoje não sei viver sem a presença física ou virtual desta pessoa. (Assinado):
Diego Rivera."
A outra carta é o "outro lado"
que muito se usa hoje em dia em
reportagens polêmicas. A rigor, é
"do mesmo lado" e quem a assina
é Frida K/Anais Nin:
"Li seu artigo sobre a aversão
que o mundo do ciberespaço lhe
causa. Não o critico em suas considerações sobre o básico de as relações humanas estarem perdidas
sob a desculpa da violência, excesso de trabalho e outros.
"A "net" não é melhor nem pior
que o jornal ou a roda, é apenas
mais uma invenção e pode ser
usada para o bem ou o mal. Depende de nosso livro arbítrio.
"Outro ponto que quero colocar
é a possibilidade de um novo tipo
de encontro amoroso, e esse sim
redentor e que sempre interessou
a humanidade, que hoje pode ser
desenvolvido na "net". Aliás em
qualquer canal de comunicação.
"Como a sua filha que encontrou um irlandês de cara honesta,
vivo hoje uma relação amorosa
que começou pelos caminhos tortuosos da "net". Pois imagino fios
conduzindo luz de maneira tortuosa.
"É o amor que foi descoberto e
está sendo lapidado nos caminhos
da linha telefônica e por meio dos
provedores ... Frio? Não, pois eu
sei do calor que as palavras de carinho do meu namorado produz
na minha alma. Não imagino
qual será o desfecho dessa nossa
pequena novela, mas hoje a importância desse contato de 600 km
de distância é tão importante e vital que não saberia como viver
sem ele.
"Não quero falar sobre as vantagens de se estar amando, o senhor deve saber disso tanto ou
melhor que eu, mas gostaria de
lhe chamar a atenção, não dos
preços dos melões da Espanha,
mas dos encontros da alma, que
desde tempos antigos o homem
busca com desespero para transformar sua vida mesquinha em
algo que nos aproxime de nossas
irmãs. As estrelas. Afinal todos temos muitas coisas pra falar. Um
grande abraço."
É com inveja que leio as duas
cartas, vindas de lugares distantes
entre si, mas com o mesmo sentido, expressando o mesmo sentimento. Diego Rivera e Frida K/Anais Nin estão numa boa, curtindo um amor que não tem o "outro
lado", os abrolhos que nascem entre os amantes que se conheceram
pela voz, pelo olhar, pela carne -
que tem fama de fraca.
Já a carne iluminada que surge
na telinha é parecida com as ladeiras de Portugal, que só têm o
lado para descer. Pode ser comparada também às rosas sem espinhos dos poetas. Só apresenta o
lado assombroso do amor. Quando a coisa se complica e dói além
da conta, basta apertar a teclinha
que deleta tudo.
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