São Paulo, Sexta-feira, 06 de Agosto de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CARLOS HEITOR CONY
Duas epístolas sobre o amor via Internet



"Sei que pode parecer presunção, mas há algumas semanas caiu em minhas mãos uma crônica de sua autoria, intitulada "Vizinhos e Internautas", e confesso-lhe não me contive em lhe escrever para registrar minha discordância. Minha e de uma pessoa muito especial, que conheci há pouco mais de dois meses."
Recebo duas cartas com o mesmo assunto. São de dois internautas, ela e ela, que se conheceram, namoraram e se amam via eletrônica. Acredito que tenham chegado às vias de fato. Merecem.
As duas cartas merecem também transcrição, pois revelam, ao menos para mim, o quanto pode a comunicabilidade humana. Os dois usaram pseudônimos, creio que apropriados. Começo pela carta do homem:
"Não discordamos de tudo que o senhor coloca. Realmente a sociedade moderna e todos os avanços sociais e tecnológicos que advirão dela ajudaram o homem a se isolar cada vez mais. A interatividade (palavra de ordem nas grandes redes televisivas) realmente existe, principalmente no que se refere aos "chats" ou salas de conversação.
"É bem verdade que muita besteira se escuta e no mais das vezes pouca coisa se aproveita, mas é sempre um contato humano. (...) Foi exatamente em um desses "chats" que eu a conheci. Sei também que desses encontros nasceu um relacionamento forte e honesto, uma amizade que rapidamente evoluiu para algo mais, até a vir a se transformar em um namoro e uma necessidade imensa de sairmos do virtual e passarmos para o real.
"Não trocamos "fotos na primeira carta", mas essa necessidade surgiu naturalmente. Precisávamos nos conhecer ou nos certificar de que aquilo que desejávamos não era o conhecimento e sim o reconhecimento, um do outro. Sim... reconhecimento, pois já nos conhecíamos. Conhecemo-nos por meio de nossos contatos no mundo virtual. Pela nossa franqueza. Por meio do preenchimento de nossas necessidades mais básicas e de coincidências, tão precisas quanto absurdas, para pessoas que vivem a mais de 600 km de distância, uma da outra.
"O que será de nós? Só o futuro poderá responder. Mas uma certeza trago comigo: hoje não sei viver sem a presença física ou virtual desta pessoa. (Assinado): Diego Rivera."
A outra carta é o "outro lado" que muito se usa hoje em dia em reportagens polêmicas. A rigor, é "do mesmo lado" e quem a assina é Frida K/Anais Nin:
"Li seu artigo sobre a aversão que o mundo do ciberespaço lhe causa. Não o critico em suas considerações sobre o básico de as relações humanas estarem perdidas sob a desculpa da violência, excesso de trabalho e outros.
"A "net" não é melhor nem pior que o jornal ou a roda, é apenas mais uma invenção e pode ser usada para o bem ou o mal. Depende de nosso livro arbítrio.
"Outro ponto que quero colocar é a possibilidade de um novo tipo de encontro amoroso, e esse sim redentor e que sempre interessou a humanidade, que hoje pode ser desenvolvido na "net". Aliás em qualquer canal de comunicação.
"Como a sua filha que encontrou um irlandês de cara honesta, vivo hoje uma relação amorosa que começou pelos caminhos tortuosos da "net". Pois imagino fios conduzindo luz de maneira tortuosa.
"É o amor que foi descoberto e está sendo lapidado nos caminhos da linha telefônica e por meio dos provedores ... Frio? Não, pois eu sei do calor que as palavras de carinho do meu namorado produz na minha alma. Não imagino qual será o desfecho dessa nossa pequena novela, mas hoje a importância desse contato de 600 km de distância é tão importante e vital que não saberia como viver sem ele.
"Não quero falar sobre as vantagens de se estar amando, o senhor deve saber disso tanto ou melhor que eu, mas gostaria de lhe chamar a atenção, não dos preços dos melões da Espanha, mas dos encontros da alma, que desde tempos antigos o homem busca com desespero para transformar sua vida mesquinha em algo que nos aproxime de nossas irmãs. As estrelas. Afinal todos temos muitas coisas pra falar. Um grande abraço."
É com inveja que leio as duas cartas, vindas de lugares distantes entre si, mas com o mesmo sentido, expressando o mesmo sentimento. Diego Rivera e Frida K/Anais Nin estão numa boa, curtindo um amor que não tem o "outro lado", os abrolhos que nascem entre os amantes que se conheceram pela voz, pelo olhar, pela carne - que tem fama de fraca.
Já a carne iluminada que surge na telinha é parecida com as ladeiras de Portugal, que só têm o lado para descer. Pode ser comparada também às rosas sem espinhos dos poetas. Só apresenta o lado assombroso do amor. Quando a coisa se complica e dói além da conta, basta apertar a teclinha que deleta tudo.



Texto Anterior: O cinema de sombras de Lotte Reiniger está no Unibanco
Próximo Texto: Cinema - "Laura, A Voz de uma Estrela": Atores premiados são trunfo de musical
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.