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NELSON ASCHER
Barriga, pra que te quero?
Orgulho, inveja, luxúria,
ira, avareza, preguiça e gula
são os sete pecados capitais. Destes, só o sétimo segue provocando
desaprovação coletiva e remorsos
pessoais. O primeiro se tornou
aceitável, sobretudo caso o pecador se orgulhe de não ter cedido ao
derradeiro. O mesmo vale para o
segundo, desde que incite seu perpetrador a emular aqueles capazes
de resistir às tentações alimentares. O terceiro está entre os prêmios a que faz jus quem se satisfaça com saladas. O quarto, quando
voltado pelo glutão contra si mesmo, possui lá seus méritos. O quinto, se exercido na seção de chocolates do supermercado, converteu-se
numa virtude. Quanto ao sexto, se
retém seu caráter pecaminoso, é
porque acentua os malefícios da
gula.
Os historiadores distinguem entre dois tipos de culturas: as da
vergonha e as da culpa. Na Grécia
homérica ou no Japão dos samurais, nada havia de pior do que a
desonra pública, enquanto na civilização cristã, mesmo o mais secreto dos pensamentos impuros
era testemunhado pela divindade,
algo que levava o infrator a carregar-lhe as implicações na consciência até ser absolvido pela autoridade eclesiástica. A obesidade
combina pioneiramente ambas as
sanções, as sociais e as íntimas.
Pessoas que, após se torturarem
voluntariamente nas academias
com instrumentos que o fim da Inquisição parecera ter tornado obsoletos e a Anistia Internacional
deveria ter proscrito, ou se submeterem a dietas que, de tão rigorosamente herbívoras, levariam ruminantes ortodoxos à loucura,
constatam que, tão logo deduzam
dois dígitos de seu peso, caixas de
banco, guardas de trânsito e porteiros lhes sorriem, as flores desabrocham para elas e pombos as
poupam de seus dejetos.
Já os que fracassam em tais empenhos, esses infelizes, além de se
recriminarem por sua fraqueza,
passam a ser vistos como gente
sem caráter na qual não se pode
confiar. Como o que separa adultos de crianças não é tanto a idade
como o cálculo a longo prazo que
ensina a adiar as recompensas, os
comilões são estigmatizados por
não abrirem mão da feijoada de
hoje para conquistarem, no mês
que vem, o buraco seguinte do lado certo do cinto.
Fatores biológicos e questões de
saúde subjazem a tudo isso, se bem
que não expliquem nem comportamentos individuais nem alterações históricas relativamente
abruptas. Ocorre que eles se desenrolam naquilo que o francês Fernand Braudel chamava de "longa
duração", ou seja, períodos contabilizados em milênios. Quando a
comida era escassa e sua obtenção
nem sempre garantida, os caçadores tribais, preparando-se para as
estações nas quais os mamutes e
mastodontes mudavam temporariamente de endereço, armavam-se de um pneu abdominal, o seguro de vida paleolítico que, longe de
incômodo, cumpria a função de
um estepe. De resto, quando a expectativa média de vida andava
em torno dos 30 anos, quem iria se
preocupar com os efeitos do colesterol na casa dos 50?
Mais tarde, um corpo feminino
obeso e flácido demonstrava que
sua portadora dispunha de um superávit calórico sem ter de arar os
campos. E ainda recentemente,
conforme narra o romancista russo Vassíli Aksiônov que, expulso
da União Soviética, radicou-se nos
EUA, os exilados que conhecera,
embora mal chegando ao inferno
capitalista atacassem predatoriamente guloseimas de cuja existência nem sequer haviam suspeitado, começavam, ao cabo de um
ano, a contar calorias.
O fato é que, não obstante as jeremíadas apocalípticas da esquerda, nunca o planeta pôs à disposição de tantos uma tamanha
quantidade, sem dúvida mal distribuída, de proteínas, lipídios e
carboidratos. Tendo em vista a
novidade da situação, não deixa
de ser admirável quão rápido a espécie desenvolveu hábitos condizentes. Qualquer adaptação radical, no entanto, envolve esforço e
sofrimento.
O mecanismo cultural que vem
acionando e acelerando a adaptação acima é a moda. Esta, aliás,
precede a indumentária, pois, antes que o Homo sapiens sapiens
principiasse a se vestir com o que
despira de outras espécies, ele já se
cobria de desenhos, tatuagens e
piercings variados. Há teorias segundo as quais certas diferenças
entre grupos humanos, como a da
pigmentação da pele, teriam sido
induzidas menos por imposições
ecológicas do que por uma prolongada seleção estética. Nas últimas
décadas, a moda, reintroduzindo-se debaixo das vestes, regressou definitivamente ao corpo e,
como seria de esperar nas circunstâncias, são as mulheres que estão
na sua vanguarda. O que exemplifica melhor sua infiltração subcutânea do que um par de seios
siliconados?
Se um número limitado de profissionais e interessados assiste a
um desfile de moda para julgar as
roupas apresentadas, o fascínio
da maioria decorre do perfil longilíneo e anoréxico das manequins, os verdadeiros modelos ou
protótipos dos futuros mutantes.
E o ponto físico onde convergem
as aspirações femininas de renascer esteticamente coincide com
aquele que nos remete ao nascimento original: o umbigo. Este e
sua periferia são o espelho no
qual elas verificam seu eventual
sucesso ou fracasso.
Uma barriga rigidamente reta
virou causa e conseqüência da
auto-estima feminina e, por extensão, humana. Exibi-la nada
tem de erótico, porque o olhar
masculino procura convexidades
e concavidades, mas evidencia estoicismo, força de vontade, ambição e sorte. Talvez seja por isso
que, suplantando orelhas e pescoços, pulsos, dedos e tornozelos, seu
centro geométrico umbilical
transformou-se no lugar onde as
privilegiadas expõem hoje em dia
sua jóia mais ostensiva.
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