São Paulo, segunda-feira, 06 de setembro de 2004

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NELSON ASCHER

Barriga, pra que te quero?

Orgulho, inveja, luxúria, ira, avareza, preguiça e gula são os sete pecados capitais. Destes, só o sétimo segue provocando desaprovação coletiva e remorsos pessoais. O primeiro se tornou aceitável, sobretudo caso o pecador se orgulhe de não ter cedido ao derradeiro. O mesmo vale para o segundo, desde que incite seu perpetrador a emular aqueles capazes de resistir às tentações alimentares. O terceiro está entre os prêmios a que faz jus quem se satisfaça com saladas. O quarto, quando voltado pelo glutão contra si mesmo, possui lá seus méritos. O quinto, se exercido na seção de chocolates do supermercado, converteu-se numa virtude. Quanto ao sexto, se retém seu caráter pecaminoso, é porque acentua os malefícios da gula.
Os historiadores distinguem entre dois tipos de culturas: as da vergonha e as da culpa. Na Grécia homérica ou no Japão dos samurais, nada havia de pior do que a desonra pública, enquanto na civilização cristã, mesmo o mais secreto dos pensamentos impuros era testemunhado pela divindade, algo que levava o infrator a carregar-lhe as implicações na consciência até ser absolvido pela autoridade eclesiástica. A obesidade combina pioneiramente ambas as sanções, as sociais e as íntimas.
Pessoas que, após se torturarem voluntariamente nas academias com instrumentos que o fim da Inquisição parecera ter tornado obsoletos e a Anistia Internacional deveria ter proscrito, ou se submeterem a dietas que, de tão rigorosamente herbívoras, levariam ruminantes ortodoxos à loucura, constatam que, tão logo deduzam dois dígitos de seu peso, caixas de banco, guardas de trânsito e porteiros lhes sorriem, as flores desabrocham para elas e pombos as poupam de seus dejetos.
Já os que fracassam em tais empenhos, esses infelizes, além de se recriminarem por sua fraqueza, passam a ser vistos como gente sem caráter na qual não se pode confiar. Como o que separa adultos de crianças não é tanto a idade como o cálculo a longo prazo que ensina a adiar as recompensas, os comilões são estigmatizados por não abrirem mão da feijoada de hoje para conquistarem, no mês que vem, o buraco seguinte do lado certo do cinto.
Fatores biológicos e questões de saúde subjazem a tudo isso, se bem que não expliquem nem comportamentos individuais nem alterações históricas relativamente abruptas. Ocorre que eles se desenrolam naquilo que o francês Fernand Braudel chamava de "longa duração", ou seja, períodos contabilizados em milênios. Quando a comida era escassa e sua obtenção nem sempre garantida, os caçadores tribais, preparando-se para as estações nas quais os mamutes e mastodontes mudavam temporariamente de endereço, armavam-se de um pneu abdominal, o seguro de vida paleolítico que, longe de incômodo, cumpria a função de um estepe. De resto, quando a expectativa média de vida andava em torno dos 30 anos, quem iria se preocupar com os efeitos do colesterol na casa dos 50?
Mais tarde, um corpo feminino obeso e flácido demonstrava que sua portadora dispunha de um superávit calórico sem ter de arar os campos. E ainda recentemente, conforme narra o romancista russo Vassíli Aksiônov que, expulso da União Soviética, radicou-se nos EUA, os exilados que conhecera, embora mal chegando ao inferno capitalista atacassem predatoriamente guloseimas de cuja existência nem sequer haviam suspeitado, começavam, ao cabo de um ano, a contar calorias.
O fato é que, não obstante as jeremíadas apocalípticas da esquerda, nunca o planeta pôs à disposição de tantos uma tamanha quantidade, sem dúvida mal distribuída, de proteínas, lipídios e carboidratos. Tendo em vista a novidade da situação, não deixa de ser admirável quão rápido a espécie desenvolveu hábitos condizentes. Qualquer adaptação radical, no entanto, envolve esforço e sofrimento.
O mecanismo cultural que vem acionando e acelerando a adaptação acima é a moda. Esta, aliás, precede a indumentária, pois, antes que o Homo sapiens sapiens principiasse a se vestir com o que despira de outras espécies, ele já se cobria de desenhos, tatuagens e piercings variados. Há teorias segundo as quais certas diferenças entre grupos humanos, como a da pigmentação da pele, teriam sido induzidas menos por imposições ecológicas do que por uma prolongada seleção estética. Nas últimas décadas, a moda, reintroduzindo-se debaixo das vestes, regressou definitivamente ao corpo e, como seria de esperar nas circunstâncias, são as mulheres que estão na sua vanguarda. O que exemplifica melhor sua infiltração subcutânea do que um par de seios siliconados?
Se um número limitado de profissionais e interessados assiste a um desfile de moda para julgar as roupas apresentadas, o fascínio da maioria decorre do perfil longilíneo e anoréxico das manequins, os verdadeiros modelos ou protótipos dos futuros mutantes. E o ponto físico onde convergem as aspirações femininas de renascer esteticamente coincide com aquele que nos remete ao nascimento original: o umbigo. Este e sua periferia são o espelho no qual elas verificam seu eventual sucesso ou fracasso.
Uma barriga rigidamente reta virou causa e conseqüência da auto-estima feminina e, por extensão, humana. Exibi-la nada tem de erótico, porque o olhar masculino procura convexidades e concavidades, mas evidencia estoicismo, força de vontade, ambição e sorte. Talvez seja por isso que, suplantando orelhas e pescoços, pulsos, dedos e tornozelos, seu centro geométrico umbilical transformou-se no lugar onde as privilegiadas expõem hoje em dia sua jóia mais ostensiva.


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