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Documentário revela as conexões da obra do surrealista com as teorias científicas do século 20
Dali atômico
MONICA G. SALOMONE
DO "PAÍS"
O ano está repleto de homenagens a Salvador Dalí pelo centenário de seu nascimento. Em meio à
avalanche, o documentário "Dimensió Dalí", que estréia neste
mês, chama a atenção para um aspecto menos conhecido do gênio.
Junto às suas excentricidades, palpita freqüentemente uma visionária paixão científica.
Em 1948, já famoso, Dalí e o fotógrafo norte-americano Phillipe
Halsman passaram um dia inteiro
trabalhando em uma única foto,
que deveria capturar a imagem de
Dalí dando um salto, e gatos no ar,
arremessados pelos assistentes.
Deveriam aparecer também, suspensos no ar, uma cadeira, dois
quadros de Dalí, um banquinho,
um cavalete e água, lançada ao ar
no momento preciso. Halsman
operava a câmera e revelava as fotos em um quarto escuro, e os demais consolavam os gatos. De
acordo com o relato do fotógrafo,
a imagem desejada, sob o título
"Dalí Atômico", custou 28 tentativas e seis cansativas horas de trabalho.
"Dalí Atômico" é um dos exemplos mais conhecidos da relação
entre Dalí e a ciência, mas não o
único. O documentário "Dimensió Dalí", que estréia no próximo
dia 15 no Fórum de Barcelona, explora essa faceta do artista, menos
conhecida do grande público. As
frases chocantes do personagem
Dalí ocultavam um intelectual
fascinado pelas descobertas científicas, que chegou a estabelecer
relações estreitas com alguns dos
matemáticos e físicos mais importantes do século passado.
Salvador Dalí nasceu em 11 de
maio de 1904. Exposições e eventos na Espanha, Estados Unidos,
Itália e Holanda celebram 2004
como o "Ano Dalí", por ocasião
de seu centenário. Mas poucos
desses eventos ressaltam que, aos
25 anos, Dalí já lia apaixonadamente textos científicos de alto nível, que consultava matemáticos
constantemente para muitas de
suas obras ou que convidou para
um jantar um dos descobridores
da estrutura em dupla hélice do
DNA, James Watson.
Watson conta no documentário
que foi visitar Dalí no hotel Regis,
onde ele vivia em Nova York, e
enviou ao quarto do artista um bilhete em que dizia "o segundo homem mais brilhante do mundo
deseja conhecer o primeiro". Dalí
desceu em dez minutos.
"Creio não ser exagero dizer
que a ciência era para Dalí uma
obsessão tão importante quanto
sua companheira, Gala", assinala
Joan Úbeda, produtor de "Dimensió Dalí". "Ele realmente tinha grande prazer em ler sobre
ciência e conversar com cientistas". O documentário é resultado
de anos de trabalho, boa parte dos
quais dedicados a investigações.
"Demo-nos conta de que Dalí
gostava muito de mentir e por isso decidimos que não podíamos
confiar em nada que não conseguíssemos comprovar", explica
Úbeda. "No final, descobrimos
que por trás do clown há um fator
muito importante que oferece outra perspectiva sobre o personagem. No caso de Dalí, o personagem é o inimigo. Ele dizia que o
câncer nos tornaria imortais, e as
pessoas entendiam a frase como
piada, quando na realidade ele estava se referindo a fatos científicos. Há 30 anos, Dalí já estava fascinado com o DNA".
Não se trata, porém, de mostrar
Dalí concentrado nas equações. O
artista é retratado, em lugar disso,
como alguém que buscava inspiração nas modernas idéias científicas. "No trabalho dele, há uma
mistura de discursos diferentes,
sobre a morfologia, biologia, física, psicanálise", explica o historiador da arte Gavin Parkinson, um
dos poucos que analisou o apreço
de Dalí pela física.
O documentário mostra como
alguns dos mais famosos ícones
do trabalho de Dalí derivam desse
amálgama de conceitos científicos, digeridos de maneira muito
pessoal. A interpretação se aplica,
por exemplo, aos relógios derretidos de "A Persistência da Memória", pintado em 1931. Os especialistas sempre os interpretaram como um símbolo da irrelevância
do tempo para o pintor.
Os relógios foram inspirados
pela teoria da relatividade de
Einstein?
Em "Dimensió Dalí", Ilya Prigogine, Prêmio Nobel de química e
um dos pais da teoria do caos,
morto no ano passado, conta como fez essa pergunta a Dalí. Sabe-se que Einstein é uma influência
decisiva para o pintor. Como afirma Parkinson no documentário,
Dalí estava entusiasmado com a
teoria da relatividade porque "ela
poderia oferecer ao surrealismo a
noção de que o real não pode ser
reduzido simplesmente a um fluxo temporal unitário".
Mesmo assim, a resposta de Dalí a Prigogine é surpreendente: os
relógios não têm inspiração relativista; o que os inspirou foi a visão
de alguns pedaços de queijo camembert derretendo ao sol de
agosto, em 1931.
Talvez a semente que a relatividade plantou na mente de Dalí se
tenha alimentado de camembert
para terminar florescendo em
uma tarde de verão. O certo é que
as descobertas e teorias científicas
continuavam sua evolução particular na cabeça de Dalí, de onde
emergiam transformadas.
É isso que parece ter ocorrido
com a paranóia. Dalí conta em
uma das entrevistas recuperadas
para o documentário que foi visitar outro de seus ídolos, Sigmund
Freud, em Londres, em 1938. "E
uma cena terrível aconteceu ali,
porque eu mostrei a ele um quadro meu, "A Metamorfose de Narciso", que ele apreciou muito, e me
disse que agora compreendia coisas que não tinha entendido sobre
os surrealistas, a quem via como
bêbados e drogados, mas passaria
a encarar com mais respeito devido ao quadro. E eu lhe disse que o
quadro não me interessava e queria mesmo é que ele lesse minha
tese sobre a paranóia crítica. Ele
voltava sempre ao quadro, e eu
voltava sempre a insistir que lesse
minha tese científica."
O encontro, sempre segundo
Dalí, terminou com o pintor dando um soco na mesa, e Freud o
classificando como "estereótipo
de espanhol" e "fanático".
Depois do encontro, vieram a
Segunda Guerra Mundial e a
bomba atômica. Dalí, deslumbrado pelas poderosíssimas forças
em ação no interior do núcleo
atômico, cunhou a expressão
"misticismo nuclear". Não por
acaso, a inspiração de Halsman
para a sua famosa foto lhe ocorreu
um dia depois de ter discutido
com Dalí sobre sua obra "Leda
Atômica" uma das que aparecem
entre as imagens suspensas.
No quadro, concluído em 1949,
Dalí une a física nuclear ao mito
da ninfa Leda, possuída por Júpiter em forma de cisne. Aparentemente, Dalí foi assessorado pelo
matemático Matila Ghyka para
dispor os elementos de seu quadro para que ficassem inscritos
em uma estrela de cinco pontas,
figura geométrica construída com
base na proporção áurea, a qual
surge na definição de formas naturais e arquitetônicas.
Outra descoberta que estimulou
a imaginação de Dalí foi a do funcionamento do DNA. James Watson e Francis Crick revelaram em
1953 a estrutura em dupla hélice
da molécula da herança genética.
Com uma espécie de antecipação
visionária, Dalí dizia acreditar que
"da primeira molécula viva à última, a mais excremental, tudo se
transmite inelutavelmente, geneticamente". Apenas dez anos depois da descoberta de Watson e
Crick, Dalí pintou "Galacidalacidesoxyribonucleicacid".
Uma vez mais, o prolífico pintor
une ciência e outros elementos,
religiosos nesse caso. Para Dalí, "a
espiral dupla demonstra a existência de Deus". Watson, por sua
vez, discorda: "Ele interpretou
dessa forma; já eu entendo que a
dupla espiral quer dizer que Deus
não é necessário".
Tradução de Paulo Migliacci
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