São Paulo, segunda-feira, 06 de setembro de 2004

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Documentário revela as conexões da obra do surrealista com as teorias científicas do século 20

Dali atômico

MONICA G. SALOMONE
DO "PAÍS"

O ano está repleto de homenagens a Salvador Dalí pelo centenário de seu nascimento. Em meio à avalanche, o documentário "Dimensió Dalí", que estréia neste mês, chama a atenção para um aspecto menos conhecido do gênio. Junto às suas excentricidades, palpita freqüentemente uma visionária paixão científica.
Em 1948, já famoso, Dalí e o fotógrafo norte-americano Phillipe Halsman passaram um dia inteiro trabalhando em uma única foto, que deveria capturar a imagem de Dalí dando um salto, e gatos no ar, arremessados pelos assistentes. Deveriam aparecer também, suspensos no ar, uma cadeira, dois quadros de Dalí, um banquinho, um cavalete e água, lançada ao ar no momento preciso. Halsman operava a câmera e revelava as fotos em um quarto escuro, e os demais consolavam os gatos. De acordo com o relato do fotógrafo, a imagem desejada, sob o título "Dalí Atômico", custou 28 tentativas e seis cansativas horas de trabalho.
"Dalí Atômico" é um dos exemplos mais conhecidos da relação entre Dalí e a ciência, mas não o único. O documentário "Dimensió Dalí", que estréia no próximo dia 15 no Fórum de Barcelona, explora essa faceta do artista, menos conhecida do grande público. As frases chocantes do personagem Dalí ocultavam um intelectual fascinado pelas descobertas científicas, que chegou a estabelecer relações estreitas com alguns dos matemáticos e físicos mais importantes do século passado.
Salvador Dalí nasceu em 11 de maio de 1904. Exposições e eventos na Espanha, Estados Unidos, Itália e Holanda celebram 2004 como o "Ano Dalí", por ocasião de seu centenário. Mas poucos desses eventos ressaltam que, aos 25 anos, Dalí já lia apaixonadamente textos científicos de alto nível, que consultava matemáticos constantemente para muitas de suas obras ou que convidou para um jantar um dos descobridores da estrutura em dupla hélice do DNA, James Watson.
Watson conta no documentário que foi visitar Dalí no hotel Regis, onde ele vivia em Nova York, e enviou ao quarto do artista um bilhete em que dizia "o segundo homem mais brilhante do mundo deseja conhecer o primeiro". Dalí desceu em dez minutos.
"Creio não ser exagero dizer que a ciência era para Dalí uma obsessão tão importante quanto sua companheira, Gala", assinala Joan Úbeda, produtor de "Dimensió Dalí". "Ele realmente tinha grande prazer em ler sobre ciência e conversar com cientistas". O documentário é resultado de anos de trabalho, boa parte dos quais dedicados a investigações.
"Demo-nos conta de que Dalí gostava muito de mentir e por isso decidimos que não podíamos confiar em nada que não conseguíssemos comprovar", explica Úbeda. "No final, descobrimos que por trás do clown há um fator muito importante que oferece outra perspectiva sobre o personagem. No caso de Dalí, o personagem é o inimigo. Ele dizia que o câncer nos tornaria imortais, e as pessoas entendiam a frase como piada, quando na realidade ele estava se referindo a fatos científicos. Há 30 anos, Dalí já estava fascinado com o DNA".
Não se trata, porém, de mostrar Dalí concentrado nas equações. O artista é retratado, em lugar disso, como alguém que buscava inspiração nas modernas idéias científicas. "No trabalho dele, há uma mistura de discursos diferentes, sobre a morfologia, biologia, física, psicanálise", explica o historiador da arte Gavin Parkinson, um dos poucos que analisou o apreço de Dalí pela física.
O documentário mostra como alguns dos mais famosos ícones do trabalho de Dalí derivam desse amálgama de conceitos científicos, digeridos de maneira muito pessoal. A interpretação se aplica, por exemplo, aos relógios derretidos de "A Persistência da Memória", pintado em 1931. Os especialistas sempre os interpretaram como um símbolo da irrelevância do tempo para o pintor.
Os relógios foram inspirados pela teoria da relatividade de Einstein?
Em "Dimensió Dalí", Ilya Prigogine, Prêmio Nobel de química e um dos pais da teoria do caos, morto no ano passado, conta como fez essa pergunta a Dalí. Sabe-se que Einstein é uma influência decisiva para o pintor. Como afirma Parkinson no documentário, Dalí estava entusiasmado com a teoria da relatividade porque "ela poderia oferecer ao surrealismo a noção de que o real não pode ser reduzido simplesmente a um fluxo temporal unitário".
Mesmo assim, a resposta de Dalí a Prigogine é surpreendente: os relógios não têm inspiração relativista; o que os inspirou foi a visão de alguns pedaços de queijo camembert derretendo ao sol de agosto, em 1931.
Talvez a semente que a relatividade plantou na mente de Dalí se tenha alimentado de camembert para terminar florescendo em uma tarde de verão. O certo é que as descobertas e teorias científicas continuavam sua evolução particular na cabeça de Dalí, de onde emergiam transformadas.
É isso que parece ter ocorrido com a paranóia. Dalí conta em uma das entrevistas recuperadas para o documentário que foi visitar outro de seus ídolos, Sigmund Freud, em Londres, em 1938. "E uma cena terrível aconteceu ali, porque eu mostrei a ele um quadro meu, "A Metamorfose de Narciso", que ele apreciou muito, e me disse que agora compreendia coisas que não tinha entendido sobre os surrealistas, a quem via como bêbados e drogados, mas passaria a encarar com mais respeito devido ao quadro. E eu lhe disse que o quadro não me interessava e queria mesmo é que ele lesse minha tese sobre a paranóia crítica. Ele voltava sempre ao quadro, e eu voltava sempre a insistir que lesse minha tese científica."
O encontro, sempre segundo Dalí, terminou com o pintor dando um soco na mesa, e Freud o classificando como "estereótipo de espanhol" e "fanático".
Depois do encontro, vieram a Segunda Guerra Mundial e a bomba atômica. Dalí, deslumbrado pelas poderosíssimas forças em ação no interior do núcleo atômico, cunhou a expressão "misticismo nuclear". Não por acaso, a inspiração de Halsman para a sua famosa foto lhe ocorreu um dia depois de ter discutido com Dalí sobre sua obra "Leda Atômica" uma das que aparecem entre as imagens suspensas.
No quadro, concluído em 1949, Dalí une a física nuclear ao mito da ninfa Leda, possuída por Júpiter em forma de cisne. Aparentemente, Dalí foi assessorado pelo matemático Matila Ghyka para dispor os elementos de seu quadro para que ficassem inscritos em uma estrela de cinco pontas, figura geométrica construída com base na proporção áurea, a qual surge na definição de formas naturais e arquitetônicas.
Outra descoberta que estimulou a imaginação de Dalí foi a do funcionamento do DNA. James Watson e Francis Crick revelaram em 1953 a estrutura em dupla hélice da molécula da herança genética. Com uma espécie de antecipação visionária, Dalí dizia acreditar que "da primeira molécula viva à última, a mais excremental, tudo se transmite inelutavelmente, geneticamente". Apenas dez anos depois da descoberta de Watson e Crick, Dalí pintou "Galacidalacidesoxyribonucleicacid".
Uma vez mais, o prolífico pintor une ciência e outros elementos, religiosos nesse caso. Para Dalí, "a espiral dupla demonstra a existência de Deus". Watson, por sua vez, discorda: "Ele interpretou dessa forma; já eu entendo que a dupla espiral quer dizer que Deus não é necessário".


Tradução de Paulo Migliacci


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