São Paulo, terça-feira, 06 de setembro de 2005

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CINEMA

Diretor filma longa-metragem sobre médico legista na capital federal e tem retrospectiva de sua obra em São Paulo

Nelson Pereira faz a autópsia de Brasília

SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL

Há que ser gênio ou estúpido para dizer do próprio filme: "Não há nenhuma novidade".
Neste caso, é um gênio do cinema, Nelson Pereira dos Santos, 76, quem chancela com o carimbo da continuidade seu longa em produção, "Brasília 18%", o seu 20º.
Quase todos os títulos anteriores do diretor estão em retrospectiva que começa hoje, em São Paulo.
A trama do novo filme envolve um legista que se apaixona por suposta vítima de assassinato, durante a autópsia. Seu laudo definirá se a mulher (que agora ama) é de fato a que morreu.
Com esse mote, lembra o diretor, "o cinema americano fez "Laura" (1944), de Otto Preminger". Porém, "Brasília 18%", ambientado no Distrito Federal, tem a novidade de incluir a política brasileira, sua crise atual e a exegese de seus representantes na história, sempre com a ressalva de que "qualquer semelhança é pura coincidência".
As filmagens ocorrem também no Rio de Janeiro. Num bar da cidade, na noite de sexta passada, envolvido por sua equipe, o diretor atendeu a Folha.
"Cinema tem uma prática: quando o dia é muito bom, a gente o fecha com uma happy hour, para comemorar. Quando o dia não é bom, a gente faz a mesma coisa, para esquecer."
Aquele tinha sido um dia bom. "Estou muito feliz, porque filmei, mas um pouco culpado, porque fiz a [atriz] Malu [Mader] esperar duas horas até a luz ficar pronta, para filmar um plano. Cinema ainda é muito capenga." Palavra de gentleman.

 

Folha - Como está sendo fazer um filme sobre um médico legista em Brasília neste momento?
Nelson Pereira dos Santos -
Não esperava tanto, tanta matéria-prima.

Folha - Cadáveres?
Santos -
Ainda bem que ainda estou em plena produção. Tenho condições de atualizar o enredo. Não sei se, na época do lançamento, no ano que vem, ele poderá ser considerado obsoleto. A velocidade dos fatos relacionados com o "plot" é tão grande que não dá para acompanhar.

Folha - O filme será uma crônica ou uma crítica da crise atual?
Santos -
Todas as grandes questões da política estão lá como background de uma grande história de amor. Elas poderão ser mencionadas, mas sempre com aquela idéia de que qualquer semelhança é pura coincidência.

Folha - O que houve com o documentário sobre os cem primeiros dias do governo Lula da Silva que o sr. dirigiria para a TV francesa?
Santos -
Ele morreu antes.

Folha - Quem?
Santos -
Era uma encomenda do canal francês Arte. Aquela coisa de francês, de fazer os cem dias de Napoleão. O projeto não prosseguiu, por problemas de produção. Não pudemos filmar os cem dias e teríamos de fazer outro roteiro. Foi muita complicação no meio do caminho, e eu desisti.

Folha - Sente-se arrependido ou aliviado de não haver feito o documentário?
Santos -
Ai... pois é. Não sei, porque a idéia do projeto tinha um afastamento que suportaria qualquer caminho que a realidade tivesse seguido.
Era uma visão muito mais afastada, sobre o que hoje, num país como o nosso, significa o voto popular, um candidato de origem popular e a relação disso com o poder tradicionalmente nas mãos daquilo que se chamaria elite.
Estão usando essa palavra [elite], mas não é isso. Prefiro ficar com Sérgio Buarque de Hollanda, que trata das relações oligárquicas originadas pela família patriarcal.

Folha - O sr. se sente um gênio do cinema, como apontam os críticos?
Santos -
Eu não (risos). O maior prazer que tenho na vida, não o único, mas um dos muitos maiores prazeres, é filmar.

Folha - Olhando sua obra em retrospectiva, como a avalia?
Santos -
Acho que ela tem a idéia de fazer do cinema uma forma de conhecimento do ser brasileiro.
Olhando tudo o que fiz até agora, há sempre essa preocupação em colocar na tela o comportamento do homem brasileiro na vida. Mas numa boa, para poder inclusive familiarizar esse comportamento com o brasileiro que está vendo o filme e que, muitas vezes, pensa que o comportamento deve ser imitado, não vivido.

Folha - Buscar a comunicação com o público é um imperativo do cinema?
Santos -
Acho que sim, mas o conceito de público tem de ser pensado. Não é absoluto. Qualquer filme tem sua possibilidade de público, para o qual foi dirigido ou o que poderá aceitá-lo.
A idéia de público como um dado único é errada. Evidentemente, quem faz um filme está querendo se comunicar. E, no cinema, o interlocutor é coletivo. Sempre trabalhei para que o maior número de pessoas possa entender e curtir meu filme, ter algum ganho vendo-o. Mas o progresso das idéias mercadológicas no cinema faz parecer que há um público disponível, esperando.
Na realidade, o público de cinema no Brasil significa a freqüência em 1.900 salas, com xis cadeiras, durante 365 dias por ano. Público é entidade abstrata, inventada.


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