São Paulo, terça-feira, 06 de setembro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

FERNANDO BONASSI

Os tesoureiros

O tesoureiro deve ser um homem de pequenos segredos guardados em poderosos cofres blindados. O maior valor de um tesoureiro, no entanto, não é o total que esconde ou distribui, mas a moral que constituí quem mexe no tesouro de terceiros. A tesoura de um tesoureiro até pode ser cega, menos o profissional que controla esse vespeiro. Um pouco de razão é necessário quando se manipula com a emoção que emana do erário. As somas picam, estimulam, excitam!
Um tesoureiro pode ter tesão pela moeda corrente, mas não é recomendável gozar displicentemente com os dons bem bons do que lhe é estranho. Por outro lado, nada do que é estranho neste mundo é estrangeiro ao tesoureiro, acostumado às armações, estratagemas e complicações do mercado financeiro. Acontece que os vapores que emanam de certos montantes traiçoeiros podem muito bem deixar um homem podre, ainda que seja de rico. Os pobres não se interessam por isso, mas o rico que emprega os serviços do tesoureiro tem sempre uma pulga atrás da orelha quente. Vê-se constantemente numa fria: confia num dia o patrimônio amealhado ao primeiro que aparece com um currículo recomendado ou desconfia de todos de uma vez, fazendo o papel do burguês mesquinho que cuida de tudo sozinho?
Pois é ao tesoureiro que cabe o mico de sentar no bolso alheio, ficando assim numa posição indelicada e dolorosa. Remexe numa riqueza enganosa que todos almejam gastar, enquanto ele mesmo ganha um salário que os proprietários desejam arrochar. Ele avalia a mais valia dessa relação e se garante guardando documentos profícuos sobre as transações de seus patrões promíscuos.
O tesoureiro afia muito bem seus argumentos. Avaliza as pistas desses cruzamentos duvidosos, antevendo valetas e buracos mal cheirosos que é possível evitar, encostar ou encontrar, conforme o progresso de uns e outros que é preciso ordenar em seus trânsitos, escândalos ou tráfico de recursos. Também conhecem como ninguém os financiamentos que vão e vêm com instrumentos bancários e burocráticos do além, fazendo das contas correntes verdadeiras corredeiras inclementes, ou pirâmides indecentes de felicidade.
Nesses expedientes podem até mesmo enterrar o rabo preso com seus faraós empedernidos. Aqueles próprios que posam de maridos das causas em que se espojam com os dotes que doarão, ou emprestarão, aos deuses. Querem uma vida eterna de benesses, mas tudo depende da "finesse" desses empreiteiros da prosperidade, pois são os tesoureiros camuflados nos palácios que viabilizam as orgias e orgasmos mais terrenos dos seus reis entediados.
Mesmo no mais daninho dos capitalismos os tesoureiros precisam de um mínimo de altruísmo para fazer funcionar o maquinismo de acumular e desperdiçar, o que costuma acontecer à sua revelia. Os tesoureiros gostam é de economizar. Deixar crescer para depois, quem sabe, um dia... separar, repartir ou apartar. São pães duros por natureza da incerteza do futuro nesses fundos de quintal. A coisa vai mal, mas claro que poderia ser pior... pois se os tesoureiros não são como alguns demônios economistas, têm a sua própria relação mística, ou infernal, com o dinheiro. Há algo de dramático, poético e patético na missão desses agentes secretos. São rebeldes sem causa, cueca ou caução. Há tesoureiros que são poetas, anotando nos versos dos boletos os nomes dos eleitos das propinas. Há tesoureiros nas esquinas conferindo, ou cafetinando, o movimento das meninas. Há tesoureiros nas igrejas, cuidando dos pudores extraviados, vasos sagrados e dízimos arrancados entre as preces dos coitados. E que não se iludam os socialistas! Há tesoureiros até mesmo nos partidos comunistas que execram o espiritismo, que aliás também tem seu tesoureiro, seja para contar fortuna, cortar mau agouro, mal olhado ou mal visto mesmo!
Evidentemente, nem todo tesoureiro é um trambiqueiro, ainda que um tesoureiro ressentido possa destroçar a reputação de seu parceiro mais querido. Pois onde mexe o tesoureiro fica esse cheiro de que alguma coisa foi lanhada, mordida, rasgada ou vendida... Não se trata de invenção ou maledicência! A ciência das fofocas e das tesouradas de um cabeleireiro não tem nada a ver com as facadas e propostas de um tesoureiro. Enquanto um melhora a aparência externa do cidadão, o outro assegura a existência interna de sua condição, através de uma ou outra "contribuição" em função de interesses que partilham as quadrilhas. Trata-se de uma estética plástica, onde a beleza da incisão consiste em não deixar vestígios da operação. Mesmo o tesoureiro mais esperto decerto que se parece com um homem comum, que como o comum dos mortais, quer apenas mais onde todos podem menos. Não que sejam pouco criativos, transformadores ou fracos da mente. Tesoureiros de partidos, por exemplo, pensam politicamente; são como esses toureiros valentes que pegam os bichos nas unhas, domesticando-os e transformando-os em votos nas urnas!
Tesoureiros não são doleiros necessariamente, mas podem manipular diligentemente os seus cruzeiros, cruzados, euros ou verdadeiros reais falsificados, dependendo dos mercados ou aliados alienados que quiserem comprar, costurando acertos e acordos pelas costas ou na frente dos clientes bem vestidos. Por isso, muito cuidado aqueles desavisados que têm valores mal explicados com o fisco. Os tesoureiros afastados, banidos ou desprezados serão os últimos à rirem do fiasco dos primeiros desgraçados.


@ - fbonassi@uol.com.br

Texto Anterior: Documentário: Série investiga crimes na história da arte
Próximo Texto: Cinema: Nelson Pereira faz a autópsia de Brasília
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.