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LIVROS
Análise/"A Retórica de Rousseau e Outros Ensaios"
Filósofo é mestre da "astúcia da timidez"
VLADIMIR SAFATLE
ESPECIAL PARA A FOLHA
Paulo Eduardo Arantes
um dia cunhou o termo
"timidez da filosofia" a
fim de tentar explicar porque
alguém da estatura de Bento
Prado Jr. recusava-se a publicar seus escritos de forma sistemática. Em tom jocoso, Bento
Prado costumava dizer que "ter
uma obra" era a forma suprema
de alienação. Pois, mais do que
qualquer outra pessoa, ele sabia como a escrita é o ato de se
deixar invadir pelo olhar do
Outro. Sua timidez o levou, à
sua maneira, a tentar depor tal
olhar, escrevendo livros que ficaram guardados durante décadas, como este "A Retórica de
Rousseau" (Cosac Naify).
Foi graças ao trabalho de
Franklin de Mattos que o leitor
pôde enfim conhecer uma das
obras mais impressionantes de
uma experiência filosófica
maior do cenário nacional.
Bento Prado Jr. é hoje lembrado, entre outras coisas, pela sua
indiferença soberana em relação às fronteiras intelectuais,
indiferença que lhe permitia
operar no ponto de intersecção
entre filosofia, literatura, psicanálise, estética, criando uma
forma de reflexão filosófica até
então inédita entre nós.
Neste "A Retórica de Rousseau", descobrimos uma outra
faceta decisiva desta indiferença soberana: a capacidade de
recusar a distinção entre filosofia e história da filosofia, entre
fundação de um programa filosófico próprio e o comentário
de textos da tradição. Pois este
livro não é apenas o comentário
sistemático da teoria da linguagem de "um desses pensadores
clássicos nos quais o pensamento contemporâneo gosta
de se reconhecer".
Se Bento Prado pode insistir
que "a leitura de Rousseau torna-se solidária das aventuras
do pensamento vivo" é porque
trata-se de mostrar como, para
além do tempo lógico, a filosofia conhece uma espécie de
tempo transversal por meio do
qual o presente pode colocar
questões e trabalhar as respostas do passado. A transversalidade do tempo filosófico indica
que o presente nada mais é do
que o ponto de confluência onde a multiplicidade do passado
se atualiza. Todo grande trabalho de história da filosofia é capaz de expor os regimes de tal
atualização. Por isto, ele já é,
desde o início, filosofia.
Desta forma, Bento Prado foi
capaz de revelar, no cerne da
reflexão de Rousseau, a tematização de uma reflexão sobre a
linguagem onde esta não aparece submetida ao paradigma
comunicacional, mas a uma espécie de paradigma expressivo
onde um conceito extremamente peculiar (pois não-platônico) de mímesis e imitação
desempenha o papel principal.
Reflexão na qual a intersubjetividade é reconstruída a partir
do reconhecimento do caráter
irredutível da subjetividade.
Para tanto, levou às últimas
conseqüências a articulação
entre música, filosofia e literatura presente na experiência
intelectual de Rousseau. Assim,
encontrávamos em Rousseau
uma chave de leitura de problemas fundamentais da filosofia
contemporânea da linguagem e
do sujeito. E, mais uma vez, como fora com Bergson e como
será com Wittgenstein, encontrávamos Bento Prado como o
mestre da "astúcia da timidez",
astúcia de quem pode falar de si
por meio das palavras de um
outro por saber que, dentro de
si, falam múltiplas vozes.
VLADIMIR SAFATLE , professor de filosofia da
USP, é autor de "Cinismo e Falência da Crítica"
(Boitempo), "Lacan" (Publifolha) e "A Paixão do
Negativo: Lacan e a Dialética" (Unesp).
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