São Paulo, sábado, 06 de setembro de 2008

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LIVROS

Análise/"A Retórica de Rousseau e Outros Ensaios"

Filósofo é mestre da "astúcia da timidez"

VLADIMIR SAFATLE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Paulo Eduardo Arantes um dia cunhou o termo "timidez da filosofia" a fim de tentar explicar porque alguém da estatura de Bento Prado Jr. recusava-se a publicar seus escritos de forma sistemática. Em tom jocoso, Bento Prado costumava dizer que "ter uma obra" era a forma suprema de alienação. Pois, mais do que qualquer outra pessoa, ele sabia como a escrita é o ato de se deixar invadir pelo olhar do Outro. Sua timidez o levou, à sua maneira, a tentar depor tal olhar, escrevendo livros que ficaram guardados durante décadas, como este "A Retórica de Rousseau" (Cosac Naify). Foi graças ao trabalho de Franklin de Mattos que o leitor pôde enfim conhecer uma das obras mais impressionantes de uma experiência filosófica maior do cenário nacional. Bento Prado Jr. é hoje lembrado, entre outras coisas, pela sua indiferença soberana em relação às fronteiras intelectuais, indiferença que lhe permitia operar no ponto de intersecção entre filosofia, literatura, psicanálise, estética, criando uma forma de reflexão filosófica até então inédita entre nós. Neste "A Retórica de Rousseau", descobrimos uma outra faceta decisiva desta indiferença soberana: a capacidade de recusar a distinção entre filosofia e história da filosofia, entre fundação de um programa filosófico próprio e o comentário de textos da tradição. Pois este livro não é apenas o comentário sistemático da teoria da linguagem de "um desses pensadores clássicos nos quais o pensamento contemporâneo gosta de se reconhecer". Se Bento Prado pode insistir que "a leitura de Rousseau torna-se solidária das aventuras do pensamento vivo" é porque trata-se de mostrar como, para além do tempo lógico, a filosofia conhece uma espécie de tempo transversal por meio do qual o presente pode colocar questões e trabalhar as respostas do passado. A transversalidade do tempo filosófico indica que o presente nada mais é do que o ponto de confluência onde a multiplicidade do passado se atualiza. Todo grande trabalho de história da filosofia é capaz de expor os regimes de tal atualização. Por isto, ele já é, desde o início, filosofia. Desta forma, Bento Prado foi capaz de revelar, no cerne da reflexão de Rousseau, a tematização de uma reflexão sobre a linguagem onde esta não aparece submetida ao paradigma comunicacional, mas a uma espécie de paradigma expressivo onde um conceito extremamente peculiar (pois não-platônico) de mímesis e imitação desempenha o papel principal. Reflexão na qual a intersubjetividade é reconstruída a partir do reconhecimento do caráter irredutível da subjetividade. Para tanto, levou às últimas conseqüências a articulação entre música, filosofia e literatura presente na experiência intelectual de Rousseau. Assim, encontrávamos em Rousseau uma chave de leitura de problemas fundamentais da filosofia contemporânea da linguagem e do sujeito. E, mais uma vez, como fora com Bergson e como será com Wittgenstein, encontrávamos Bento Prado como o mestre da "astúcia da timidez", astúcia de quem pode falar de si por meio das palavras de um outro por saber que, dentro de si, falam múltiplas vozes.

VLADIMIR SAFATLE , professor de filosofia da USP, é autor de "Cinismo e Falência da Crítica" (Boitempo), "Lacan" (Publifolha) e "A Paixão do Negativo: Lacan e a Dialética" (Unesp).



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