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MARCELO COELHO
O PDP e o PFP
Meu inglês não é dos melhores, mas mesmo assim deu
para acompanhar um pouco do
debate entre Bush e Kerry, na
quinta-feira passada. Querendo
ou não, já estamos familiarizados
com o vocabulário das discussões:
weapons, terrorism, Iraq, war, defense, destruction...
Descrito assim, parece uma
chatice. Nada disso. A fala final
de Kerry foi clara, firme e empolgante, apesar da constante expressão de cachorro molhado que
ele tem. É verdade que eu estava
torcendo a favor de Kerry. Mas
não pensei que fosse torcer tanto
assim. Na verdade, o desempenho
do candidato democrata é que
me animou a ver o programa até
o final.
Seja como for, não tive nenhuma sensação de perda de tempo.
Tudo corria com fluência. Não
havia bate-boca nem enrolação.
Em seu artigo de segunda-feira,
João Sayad observou que "o jornalista Jim Lehre controlou sozinho o espetáculo: fez todas as perguntas para os candidatos, manteve a platéia em silêncio absoluto
e decidiu sobre o direito de resposta de cada um".
Difícil evitar a comparação com
o caso brasileiro. Aqui, há muitas
razões para os debates entre candidatos se tornarem cada vez
mais insuportáveis. Uma delas é o
engessamento das regras: pensa-se menos na conveniência do eleitor do que na dos candidatos. E
há uma desconfiança básica com
relação à burla e à malandragem.
Para evitar injustiças e manobras
escusas, tenta-se prever tudo, regulamentar tudo, assegurar por
escrito os direitos de todos.
No caso americano, é provável
que ocorra o inverso. O mediador
do debate tem mais liberdade de
agir, e não se temem tantos abusos, porque o controle sobre suas
ações não depende de normas,
leis, regulamentos, e sim do veredicto da opinião pública. A autonomia individual é maior, porque o julgamento coletivo se exerce mais de perto.
Aqui, as preocupações com uma
lei mais justa tendem a resultar
em burocracia, da qual os malandros sabem se aproveitar. Por essa
e por outras razões, o debate americano se torna ao mesmo tempo
mais franco e mais próximo do
entretenimento televisivo; aliás,
parece que tudo nos Estados Unidos -de um culto religioso a um
bombardeio- tem de obedecer à
lógica do entretenimento. No
Brasil, a começar pelo voto, tudo é
dever; e, como sempre queremos
escapar do dever, tudo se burocratiza -até o entretenimento.
Se há regras até para o desfile das
escolas de samba, por que não para os debates?
Não é novidade dizer que no
Brasil o Estado se sobrepõe à sociedade e que, em países de tradição liberal, como os Estados Unidos e a Inglaterra, predomina a
autonomia individual e a auto-regulamentação. Mas pensei
mais uma vez nisso ao ouvir alguns comentários a respeito das
últimas eleições.
Afirma-se, por exemplo, que
dois partidos saíram fortalecidos
das últimas eleições municipais: o
PT e o PSDB. Do ponto de vista
factual não é incorreto. Mas acho
mais verdadeiro dizer que, como
sempre no Brasil, só existem dois
partidos. O Partido Dentro do Poder e o Partido Fora do Poder.
O PT, que em política sempre foi
adepto das coisas que vinham "de
baixo para cima", sendo até acusado de "basista", é hoje apenas o
Partido Dentro do Poder. A cúpula, em Brasília, arruma alianças
com Sarney, ACM, Maluf ou
quem quer que seja, e é uma exceção simpática o caso de Fortaleza,
em que a candidata do PT passou
para o segundo turno à revelia
dos interesses do Planalto.
A "fala do poder", o discurso do
"mereço mandar porque estou
mandando", ocupa, entretanto,
um espaço que, no PT, antes era
dedicado à iniciativa popular e às
organizações de base. A gente
nem percebe, mas deveria ser motivo de choque ver a candidata
Marta Suplicy dizendo que fará
mais por São Paulo porque Lula
está no poder em Brasília. Os recursos vieram. E não vinham
quando Fernando Henrique era
presidente. Implícita, a ameaça
mandonista: se o outro candidato
for eleito, não nos responsabilizamos pelo que possa acontecer.
Melhor ser amigo dos caras lá em
cima.
Militância, organizações de base? Ah, sim, Marta não se esqueceu do tema. Em outra linha espantosa de pronunciamentos,
desculpou os capangas que tumultuaram o passeio de Serra pela zona sul da cidade. Não só a
prefeita "não se responsabiliza
pela militância" como também
disse, na CBN, que havia um
componente de provocação por
parte de seu adversário.
Talvez Marta Suplicy até ganhasse mais votos se condenasse,
como prefeita de uma cidade democrática, qualquer grupo que
pretendesse cercear a campanha
de seu adversário. Preferiu lavar
as mãos; quem está no poder sempre tem sabonete de sobra à disposição.
Esqueçam-se ideologias, compromissos e percurso político. Cabos eleitorais pagos e leões-de-chácara de praça pública, nas bases; verba federal, acordos com a
oligarquia e marquetagem de alto luxo, na cúpula: eis o que sustenta o Partido do Poder.
Quanto ao PSDB, tenta sobreviver junto com fatias do PFL no
papel de Partido Fora do Poder. É
difícil, porque nunca se propôs a
representar os excluídos, os sem-terra, os esquecidos pelo poder ou
coisa que o valha. O discurso de
Serra se torna incrivelmente vazio: fala apenas em "planejamento" e "prioridades". Menos do que
dar voz a qualquer grupo organizado da sociedade, toma a palavra em nome de si mesmo. Ou seja, uma espécie de porta-voz da
Razão Administrativa sem cargos, nem lobbies, nem setores da
sociedade a que prestar contas.
Mas nisso se resume a comédia
da política brasileira: supondo-se
que tudo é amorfo, menos o Estado... para quem prestar contas,
afinal?
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