São Paulo, quarta-feira, 06 de outubro de 2004

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MARCELO COELHO

O PDP e o PFP

Meu inglês não é dos melhores, mas mesmo assim deu para acompanhar um pouco do debate entre Bush e Kerry, na quinta-feira passada. Querendo ou não, já estamos familiarizados com o vocabulário das discussões: weapons, terrorism, Iraq, war, defense, destruction...
Descrito assim, parece uma chatice. Nada disso. A fala final de Kerry foi clara, firme e empolgante, apesar da constante expressão de cachorro molhado que ele tem. É verdade que eu estava torcendo a favor de Kerry. Mas não pensei que fosse torcer tanto assim. Na verdade, o desempenho do candidato democrata é que me animou a ver o programa até o final.
Seja como for, não tive nenhuma sensação de perda de tempo. Tudo corria com fluência. Não havia bate-boca nem enrolação. Em seu artigo de segunda-feira, João Sayad observou que "o jornalista Jim Lehre controlou sozinho o espetáculo: fez todas as perguntas para os candidatos, manteve a platéia em silêncio absoluto e decidiu sobre o direito de resposta de cada um".
Difícil evitar a comparação com o caso brasileiro. Aqui, há muitas razões para os debates entre candidatos se tornarem cada vez mais insuportáveis. Uma delas é o engessamento das regras: pensa-se menos na conveniência do eleitor do que na dos candidatos. E há uma desconfiança básica com relação à burla e à malandragem. Para evitar injustiças e manobras escusas, tenta-se prever tudo, regulamentar tudo, assegurar por escrito os direitos de todos.
No caso americano, é provável que ocorra o inverso. O mediador do debate tem mais liberdade de agir, e não se temem tantos abusos, porque o controle sobre suas ações não depende de normas, leis, regulamentos, e sim do veredicto da opinião pública. A autonomia individual é maior, porque o julgamento coletivo se exerce mais de perto.
Aqui, as preocupações com uma lei mais justa tendem a resultar em burocracia, da qual os malandros sabem se aproveitar. Por essa e por outras razões, o debate americano se torna ao mesmo tempo mais franco e mais próximo do entretenimento televisivo; aliás, parece que tudo nos Estados Unidos -de um culto religioso a um bombardeio- tem de obedecer à lógica do entretenimento. No Brasil, a começar pelo voto, tudo é dever; e, como sempre queremos escapar do dever, tudo se burocratiza -até o entretenimento. Se há regras até para o desfile das escolas de samba, por que não para os debates?
Não é novidade dizer que no Brasil o Estado se sobrepõe à sociedade e que, em países de tradição liberal, como os Estados Unidos e a Inglaterra, predomina a autonomia individual e a auto-regulamentação. Mas pensei mais uma vez nisso ao ouvir alguns comentários a respeito das últimas eleições.
Afirma-se, por exemplo, que dois partidos saíram fortalecidos das últimas eleições municipais: o PT e o PSDB. Do ponto de vista factual não é incorreto. Mas acho mais verdadeiro dizer que, como sempre no Brasil, só existem dois partidos. O Partido Dentro do Poder e o Partido Fora do Poder.
O PT, que em política sempre foi adepto das coisas que vinham "de baixo para cima", sendo até acusado de "basista", é hoje apenas o Partido Dentro do Poder. A cúpula, em Brasília, arruma alianças com Sarney, ACM, Maluf ou quem quer que seja, e é uma exceção simpática o caso de Fortaleza, em que a candidata do PT passou para o segundo turno à revelia dos interesses do Planalto.
A "fala do poder", o discurso do "mereço mandar porque estou mandando", ocupa, entretanto, um espaço que, no PT, antes era dedicado à iniciativa popular e às organizações de base. A gente nem percebe, mas deveria ser motivo de choque ver a candidata Marta Suplicy dizendo que fará mais por São Paulo porque Lula está no poder em Brasília. Os recursos vieram. E não vinham quando Fernando Henrique era presidente. Implícita, a ameaça mandonista: se o outro candidato for eleito, não nos responsabilizamos pelo que possa acontecer. Melhor ser amigo dos caras lá em cima.
Militância, organizações de base? Ah, sim, Marta não se esqueceu do tema. Em outra linha espantosa de pronunciamentos, desculpou os capangas que tumultuaram o passeio de Serra pela zona sul da cidade. Não só a prefeita "não se responsabiliza pela militância" como também disse, na CBN, que havia um componente de provocação por parte de seu adversário.
Talvez Marta Suplicy até ganhasse mais votos se condenasse, como prefeita de uma cidade democrática, qualquer grupo que pretendesse cercear a campanha de seu adversário. Preferiu lavar as mãos; quem está no poder sempre tem sabonete de sobra à disposição.
Esqueçam-se ideologias, compromissos e percurso político. Cabos eleitorais pagos e leões-de-chácara de praça pública, nas bases; verba federal, acordos com a oligarquia e marquetagem de alto luxo, na cúpula: eis o que sustenta o Partido do Poder.
Quanto ao PSDB, tenta sobreviver junto com fatias do PFL no papel de Partido Fora do Poder. É difícil, porque nunca se propôs a representar os excluídos, os sem-terra, os esquecidos pelo poder ou coisa que o valha. O discurso de Serra se torna incrivelmente vazio: fala apenas em "planejamento" e "prioridades". Menos do que dar voz a qualquer grupo organizado da sociedade, toma a palavra em nome de si mesmo. Ou seja, uma espécie de porta-voz da Razão Administrativa sem cargos, nem lobbies, nem setores da sociedade a que prestar contas.
Mas nisso se resume a comédia da política brasileira: supondo-se que tudo é amorfo, menos o Estado... para quem prestar contas, afinal?


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