São Paulo, sábado, 06 de outubro de 2007

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RÉPLICA

Não é "liberar geral" - Gil traz a realidade para a legalidade

Com site licenciado em Creative Commons, ministro enxerga práticas comuns e reafirma seu direito de decidir o que pode ser feito com suas próprias obras

HERMANO VIANA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Nesta Ilustrada, Marcos Augusto Gonçalves escreveu sobre a turnê "Banda Larga": "É engraçado um compositor bem-sucedido como Gil tirar chinfra de "liberou geral" na questão dos direitos autorais. Mas, na verdade, ele está abrindo mão de quê? Pelo que entendi, de nada: apenas de não ir à Jus- tiça contra pessoas que fazem gravações dos shows e as colocam na internet -o que já ocorreria mesmo."
Em "O Globo", Roberto Corrêa de Mello e Walter Franco, dirigentes da Abramus, perguntaram: "Na verdade estamos com muita ansiedade e surpresa sobre um tema que pouco, muito pouco, tem de novo. Por quê? A Carta Constitucional de 1988 já consagrou tal direito [...], explicitando de forma assertiva que só compete ao autor o direito de usar, fruir, dispor e gozar de sua criação da maneira que quiser. [...] Creative Commons é assim tão visceral? Criativo como, se a Carta Magna já consagra o direito de autor?"
São perguntas pertinentes. Mas Marcos Augusto Gonçalves se engana: Gil não tira chinfra de "liberou geral". Como dizem os dirigentes da Abramus, a Constituição determina que "só compete ao autor o direito de usar, fruir, dispor e gozar de sua criação da maneira que quiser." Em "Banda Larga", Gil apenas reafirma seu direito de decidir o que pode ser feito com suas obras. É o contrário do "liberou geral". Liberar geral seria fazer vista grossa para "o que já ocorreria mesmo". Gil traz "o que ocorre" para a legalidade. Isso não é pouca coisa.
Os termos de uso do site Banda Larga, licenciado em Creative Commons, não deixam dúvidas: "Os presentes termos de uso, além de regularem contratualmente a relação entre as partes, devem ser entendidos também como licença de uso do site, que é regido pelo direito autoral." As licenças Creative Commons brasileiras são totalmente regidas pelo direito autoral do Brasil. No Banda Larga, a novidade é que tudo ali pode ser copiado, distribuído, executado e servir de fonte para obras derivadas se forem observadas as seguintes condições: a finalidade tem que ser não-comercial; o autor da obra original tem que ser creditado; a obra derivada tem que ser distribuída com a mesma licença Creative Commons. Portanto: nada mais distante de um "vale tudo". Só vale o que o autor determinou que vale.

Fortalecimento do direito
Então: o que é criativo no Creative Commons? Não é uma mudança legal. A lei de direito autoral continua a mesma. As licenças Creative Commons permitem o que já era permitido pela lei. A utilidade do Creative Commons é trazer práticas comuns na cultura digital para o âmbito legal, codificando-as em textos claros, facilitando a vida de criadores que querem sinalizar ao mundo que incentivam certos usos de suas obras, vedando outros, mas mantendo integralmente seus direitos. A aceitação das licenças -hoje já licenciam mais de 150 milhões de obras- mostra que muitos criadores, sempre voluntariamente, consideram essa codificação vantajosa (mesmo comercialmente), prática, aliando controle de suas obras com fácil circulação on/ off-line. Mais uma vez: é o contrário do "liberou geral" -é o fortalecimento do direito de autor exercido pelo próprio autor (e não por intermediários), com opções mais diversas do que as apresentadas pelas licenças tradicionais.
As licenças tradicionais se tornaram inadequadas para lidar com a crise do modelo pré-internet da indústria fonográfica. Mesmo "grandes" gravadoras (cada vez menores -hoje, no Brasil, contratam só 92 artistas) têm que se adaptar: a Universal e a EMI agora vendem música na internet sem o DRM, pois essa proteção demonstrou ser péssima comercialmente. E para quem não tem gravadora -a maioria da gente que faz música- é inegável que a situação atual, embora ainda confusa, é boa oportunidade: todo dia surgem formas mais baratas de gravação, reprodução, distribuição, divulgação etc. É um cenário francamente positivo do ponto de vista da inclusão democrática, da diversidade e da eficiência competitiva no mercado.
No ano passado, fazendo o "Central da Periferia", pude conversar com vários dos músicos mais populares no Brasil, quase todos sem gravadoras. Eles mesmos produzem seus CDs e aí sim liberam geral, torcendo pelo sucesso na pirataria. Ou seja, ficam desprotegidos. É preciso trazer essa maioria para a legalidade, mas uma legalidade realista, sem fingir que vivemos no mundo de antes dos gravadores de DVD, sem querer numerar CDs quando CDs vão logo desaparecer, sem propor marcas d'água digitais caras e que não funcionam. É essa procura de novos modelos de negócios, para que um maior número de artistas possa viver legalmente de suas criações, que Gilberto Gil estimula. Óbvio: muita coisa vai mudar (os monges copiadores de manuscritos da Idade Média partiram para outros trabalhos depois da invenção da imprensa...). Como disse Antônio Cícero, numa de suas belas composições: "Quem vai colar/ os tais caquinhos/ do velho mundo".
Os caquinhos se espalham pela internet, em bilhões de samples que são o motor principal (muitas vezes ilegal) da criatividade contemporânea. Ferramentas ultrapassadas (como o DRM) são suicídio comercial. Não há soluções fáceis. É preciso experimentar -e o MinC pode criar um ambiente fértil para experimentações. Do sucesso de algumas delas depende a saúde da indústria criativa brasileira no futuro.

Presença internacional
Na semana passada, Gil foi um dos palestrantes principais do seminário "Tecnologia Emergente", do Massachusetts Institute of Technology. Repercussão imediata: até o CNet, site de tecnologia que pouco fala do Brasil, publicou matéria elogiosa sobre a reflexão proposta por Gil. Também neste ano ele participou do colóquio "Criatividade e Inovação na Cultura Digital", em Sevilha, ao lado de Manuel Castells, de Antônio Damásio e de Peter Hall.
Esses convites -entre vários outros recentes da mesma importância- mostram que o Brasil conquistou notável presença internacional num debate de ponta. Tenho mania de pensar grande: não somos um país medíocre: quero o Brasil indicando bons caminhos para o mundo, e não entrando num beco sem saída por apego ao passado. Vamos encarar o desafio proposto pela internet? Cantando, então (será que violo algum direito autoral?): "Chegou a hora dessa gente bronzeada [e digitalizada!] mostrar seu valor..."


HERMANO VIANNA é antropólogo, autor de "O Mundo Funk Carioca" e "O Mistério do Samba" (ed. Jorge Zahar). A versão integral deste texto pode ser lida em www.overmundo.com.br/overblog/o-contrario-do-liberou-geral.


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