|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
RÉPLICA
Não é "liberar geral" - Gil traz a realidade para a legalidade
Com site licenciado em Creative Commons, ministro enxerga práticas comuns e reafirma seu direito de decidir o que pode ser feito com suas próprias obras
HERMANO VIANA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Nesta Ilustrada, Marcos Augusto Gonçalves escreveu sobre a
turnê "Banda Larga": "É engraçado um compositor bem-sucedido como Gil tirar chinfra
de "liberou geral" na questão
dos direitos autorais. Mas, na
verdade, ele está abrindo mão
de quê? Pelo que entendi, de
nada: apenas de não ir à Jus-
tiça contra pessoas que fazem
gravações dos shows e as colocam na internet -o que já
ocorreria mesmo."
Em "O Globo", Roberto Corrêa de Mello e Walter Franco,
dirigentes da Abramus, perguntaram: "Na verdade estamos com muita ansiedade e
surpresa sobre um tema que
pouco, muito pouco, tem de
novo. Por quê? A Carta Constitucional de 1988 já consagrou
tal direito [...], explicitando de
forma assertiva que só compete ao autor o direito de usar,
fruir, dispor e gozar de sua criação da maneira que quiser. [...]
Creative Commons é assim tão
visceral? Criativo como, se a
Carta Magna já consagra o direito de autor?"
São perguntas pertinentes.
Mas Marcos Augusto Gonçalves se engana: Gil não tira chinfra de "liberou geral". Como dizem os dirigentes da Abramus,
a Constituição determina que
"só compete ao autor o direito
de usar, fruir, dispor e gozar de
sua criação da maneira que
quiser." Em "Banda Larga", Gil
apenas reafirma seu direito de
decidir o que pode ser feito
com suas obras. É o contrário
do "liberou geral". Liberar geral seria fazer vista grossa para
"o que já ocorreria mesmo". Gil
traz "o que ocorre" para a legalidade. Isso não é pouca coisa.
Os termos de uso do site
Banda Larga, licenciado em
Creative Commons, não deixam dúvidas: "Os presentes
termos de uso, além de regularem contratualmente a relação
entre as partes, devem ser entendidos também como licença
de uso do site, que é regido pelo
direito autoral." As licenças
Creative Commons brasileiras
são totalmente regidas pelo direito autoral do Brasil. No Banda Larga, a novidade é que tudo
ali pode ser copiado, distribuído, executado e servir de fonte
para obras derivadas se forem
observadas as seguintes condições: a finalidade tem que ser
não-comercial; o autor da obra
original tem que ser creditado;
a obra derivada tem que ser
distribuída com a mesma licença Creative Commons. Portanto: nada mais distante de um
"vale tudo". Só vale o que o autor determinou que vale.
Fortalecimento do direito
Então: o que é criativo no
Creative Commons? Não é
uma mudança legal. A lei de direito autoral continua a mesma. As licenças Creative Commons permitem o que já era
permitido pela lei. A utilidade
do Creative Commons é trazer
práticas comuns na cultura digital para o âmbito legal, codificando-as em textos claros, facilitando a vida de criadores que
querem sinalizar ao mundo
que incentivam certos usos de
suas obras, vedando outros,
mas mantendo integralmente
seus direitos. A aceitação das licenças -hoje já licenciam mais
de 150 milhões de obras- mostra que muitos criadores, sempre voluntariamente, consideram essa codificação vantajosa
(mesmo comercialmente), prática, aliando controle de suas
obras com fácil circulação on/
off-line. Mais uma vez: é o contrário do "liberou geral" -é o
fortalecimento do direito de
autor exercido pelo próprio autor (e não por intermediários),
com opções mais diversas do
que as apresentadas pelas licenças tradicionais.
As licenças tradicionais se
tornaram inadequadas para lidar com a crise do modelo pré-internet da indústria fonográfica. Mesmo "grandes" gravadoras (cada vez menores -hoje,
no Brasil, contratam só 92 artistas) têm que se adaptar: a
Universal e a EMI agora vendem música na internet sem o
DRM, pois essa proteção demonstrou ser péssima comercialmente. E para quem não
tem gravadora -a maioria da
gente que faz música- é inegável que a situação atual, embora ainda confusa, é boa oportunidade: todo dia surgem formas mais baratas de gravação,
reprodução, distribuição, divulgação etc. É um cenário
francamente positivo do ponto
de vista da inclusão democrática, da diversidade e da eficiência competitiva no mercado.
No ano passado, fazendo o
"Central da Periferia", pude
conversar com vários dos músicos mais populares no Brasil,
quase todos sem gravadoras.
Eles mesmos produzem seus
CDs e aí sim liberam geral, torcendo pelo sucesso na pirataria. Ou seja, ficam desprotegidos. É preciso trazer essa maioria para a legalidade, mas uma
legalidade realista, sem fingir
que vivemos no mundo de antes dos gravadores de DVD,
sem querer numerar CDs
quando CDs vão logo desaparecer, sem propor marcas d'água
digitais caras e que não funcionam. É essa procura de novos
modelos de negócios, para que
um maior número de artistas
possa viver legalmente de suas
criações, que Gilberto Gil estimula. Óbvio: muita coisa vai
mudar (os monges copiadores
de manuscritos da Idade Média
partiram para outros trabalhos
depois da invenção da imprensa...). Como disse Antônio Cícero, numa de suas belas composições: "Quem vai colar/ os
tais caquinhos/ do velho mundo".
Os caquinhos se espalham
pela internet, em bilhões de
samples que são o motor principal (muitas vezes ilegal) da
criatividade contemporânea.
Ferramentas ultrapassadas
(como o DRM) são suicídio comercial. Não há soluções fáceis.
É preciso experimentar -e o
MinC pode criar um ambiente
fértil para experimentações.
Do sucesso de algumas delas
depende a saúde da indústria
criativa brasileira no futuro.
Presença internacional
Na semana passada, Gil foi
um dos palestrantes principais
do seminário "Tecnologia
Emergente", do Massachusetts
Institute of Technology. Repercussão imediata: até o CNet,
site de tecnologia que pouco fala do Brasil, publicou matéria
elogiosa sobre a reflexão proposta por Gil. Também neste
ano ele participou do colóquio
"Criatividade e Inovação na
Cultura Digital", em Sevilha, ao
lado de Manuel Castells, de Antônio Damásio e de Peter Hall.
Esses convites -entre vários
outros recentes da mesma importância- mostram que o
Brasil conquistou notável presença internacional num debate de ponta. Tenho mania de
pensar grande: não somos um
país medíocre: quero o Brasil
indicando bons caminhos para
o mundo, e não entrando num
beco sem saída por apego ao
passado. Vamos encarar o desafio proposto pela internet?
Cantando, então (será que violo algum direito autoral?):
"Chegou a hora dessa gente
bronzeada [e digitalizada!]
mostrar seu valor..."
HERMANO VIANNA é antropólogo, autor de "O
Mundo Funk Carioca" e "O Mistério do Samba"
(ed. Jorge Zahar). A versão integral deste texto
pode ser lida em www.overmundo.com.br/overblog/o-contrario-do-liberou-geral.
Texto Anterior: Crítica/erudito: Com regência de Neschling, Donohoe recria o exigente "Concerto" de Busoni Próximo Texto: Gil defende desde 2003 a flexibilização Índice
|