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Teatro / Tréplica
"É preciso entender o público antes de abater o artista"
Autor e diretor da 1ª versão de "Doce Deleite" responde às críticas ao seu comentário sobre a dramaturgia atual
ALCIONE ARAÚJO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Aira santa dos dramaturgos paulistas (na matéria ""Nova dramaturgia"
contesta crítica", da Ilustrada
de 2/10), invectivou contra o
que falei em "Revival reflete
crise da dramaturgia", reportagem publicada em 30/09. Louvo a reação, que induz ao debate, não me defendo nem acuso,
mas tento iluminar sombras
que ficaram nos desvãos das
palavras.
As peças do americano Charles Ludlam ["O Mistério de Irma Vap"], do italiano Dario Fo
["Brincando em Cima Daquilo"] e a minha, "Doce Deleite",
na atual versão dirigida por
Marília Pêra, com Reynaldo
Gianecchini e Camila Morgado
no elenco, foram incluídas no
dito revival.
Revival insinua insegurança
de produção, que vislumbra no
êxito passado o porto seguro
para o presente: gira a terra,
muda o mundo, e o velho porto
pode ser mais inseguro do que
o estreante.
"Doce Deleite" foi escrita há
28 anos; dirigida por mim, tinha Marília Pêra e Marco Nanini no elenco e se apresentava
à 0h das segundas-feiras -não
havia horário cult nem "star
system". Apesar do horário
maldito, se tornou um sucesso
e ficou quatro anos em cartaz.
Hoje, o país é outro. Cogitei
três hipóteses para o êxito
atual: sua eventual atemporalidade, a percepção estagnada do
cômico, a regressão do humor
brasileiro. Minha surpresa com
o sucesso pareceu irônica e deselegante ao autor Mário Viana, que me lembrou que as pessoas "não correm para ver a peça do Alcione", mas para ver "a
peça do Gianecchini". O Amir
Haddad, do alto do seu saber,
acha a peça "um vazio absoluto
de dramaturgia".
Eis um problema em que vale a pena pensar: por que uma
peça sem méritos atrai os atores famosos que, por sua vez,
levam o público, enquanto peças de mérito não são devidamente apreciadas? A resposta
exige repensar a arte, a cultura,
indústria cultural, educação, a
contemporaneidade: entender
o público antes de abater o artista talvez não seja útil à criação, mas serve ao debate.
Escrevi na Folha "Esquizofrenia na educação e cultura",
sobre a eliminação das disciplinas de humanidades -do sentir e pensar- do currículo escolar. Estudantes e profissionais liberais, reputados na profissão, não lêem romances, assistem a filmes, espetáculos,
shows.
A educação não os leva à
cultura, por ter se tornado trajetória de adestramento para a
produção. Se a educação não
induz, quem há de fazê-lo?
Interfaces arte-consumo e
arte-entretenimento ocupam
filósofos da cultura na era do
descartável. A mídia, atada ao
leitor, rende-se à moda e à culinária antes das artes -todas
carentes de público!
E o teatro ainda não afiou as
armas para encantar a sociedade adestrada para a produção e
afeita ao entretenimento.
Não dirijo, atuo ou produzo;
apenas escrevo peças, algumas
encenadas, até pelo Amir Haddad. Outras, tidas como inadequadas ao público atual, jazem
inéditas. Como oriento roteiristas e participo de júris de
dramaturgia, sei que jovens
com talento para a narrativa
dramática são mais seduzidos
pelo audiovisual do que pelo
palco -filmam com celulares e
veiculam na web.
Isso não significa que não haja dramaturgos talentosos, não
ataca as peças encenadas nem
desrespeita profissionais. Embora santa, a ira, às vezes, é cega, e nem sempre sábia.
ALCIONE ARAÚJO é escritor, dramaturgo e roteirista
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