São Paulo, segunda-feira, 06 de outubro de 2008

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Teatro / Tréplica

"É preciso entender o público antes de abater o artista"

Autor e diretor da 1ª versão de "Doce Deleite" responde às críticas ao seu comentário sobre a dramaturgia atual

ALCIONE ARAÚJO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Aira santa dos dramaturgos paulistas (na matéria ""Nova dramaturgia" contesta crítica", da Ilustrada de 2/10), invectivou contra o que falei em "Revival reflete crise da dramaturgia", reportagem publicada em 30/09. Louvo a reação, que induz ao debate, não me defendo nem acuso, mas tento iluminar sombras que ficaram nos desvãos das palavras.
As peças do americano Charles Ludlam ["O Mistério de Irma Vap"], do italiano Dario Fo ["Brincando em Cima Daquilo"] e a minha, "Doce Deleite", na atual versão dirigida por Marília Pêra, com Reynaldo Gianecchini e Camila Morgado no elenco, foram incluídas no dito revival.
Revival insinua insegurança de produção, que vislumbra no êxito passado o porto seguro para o presente: gira a terra, muda o mundo, e o velho porto pode ser mais inseguro do que o estreante.
"Doce Deleite" foi escrita há 28 anos; dirigida por mim, tinha Marília Pêra e Marco Nanini no elenco e se apresentava à 0h das segundas-feiras -não havia horário cult nem "star system". Apesar do horário maldito, se tornou um sucesso e ficou quatro anos em cartaz.
Hoje, o país é outro. Cogitei três hipóteses para o êxito atual: sua eventual atemporalidade, a percepção estagnada do cômico, a regressão do humor brasileiro. Minha surpresa com o sucesso pareceu irônica e deselegante ao autor Mário Viana, que me lembrou que as pessoas "não correm para ver a peça do Alcione", mas para ver "a peça do Gianecchini". O Amir Haddad, do alto do seu saber, acha a peça "um vazio absoluto de dramaturgia".
Eis um problema em que vale a pena pensar: por que uma peça sem méritos atrai os atores famosos que, por sua vez, levam o público, enquanto peças de mérito não são devidamente apreciadas? A resposta exige repensar a arte, a cultura, indústria cultural, educação, a contemporaneidade: entender o público antes de abater o artista talvez não seja útil à criação, mas serve ao debate. Escrevi na Folha "Esquizofrenia na educação e cultura", sobre a eliminação das disciplinas de humanidades -do sentir e pensar- do currículo escolar. Estudantes e profissionais liberais, reputados na profissão, não lêem romances, assistem a filmes, espetáculos, shows.
A educação não os leva à cultura, por ter se tornado trajetória de adestramento para a produção. Se a educação não induz, quem há de fazê-lo? Interfaces arte-consumo e arte-entretenimento ocupam filósofos da cultura na era do descartável. A mídia, atada ao leitor, rende-se à moda e à culinária antes das artes -todas carentes de público!
E o teatro ainda não afiou as armas para encantar a sociedade adestrada para a produção e afeita ao entretenimento. Não dirijo, atuo ou produzo; apenas escrevo peças, algumas encenadas, até pelo Amir Haddad. Outras, tidas como inadequadas ao público atual, jazem inéditas. Como oriento roteiristas e participo de júris de dramaturgia, sei que jovens com talento para a narrativa dramática são mais seduzidos pelo audiovisual do que pelo palco -filmam com celulares e veiculam na web.
Isso não significa que não haja dramaturgos talentosos, não ataca as peças encenadas nem desrespeita profissionais. Embora santa, a ira, às vezes, é cega, e nem sempre sábia.
ALCIONE ARAÚJO é escritor, dramaturgo e roteirista



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