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LUIZ FELIPE PONDÉ
O Gosto do Pó
Não acho que o conhecimento salve; nós pensamos enquanto as aranhas tecem suas teias.
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NÃO TENHO VOCAÇÃO para
idealizar as coisas. Idealizar
é pensar que o mundo é melhor do que parece. A idealização aumenta o já inevitável risco de fracassar na vida. Reconheço, caro leitor,
que a incapacidade de idealizar pode
se transformar numa doença mortal. O ceticismo, o cinismo, o niilismo, a melancolia, são formas possíveis dessa doença.
Muitos acreditam que sem utopias ou ideais a vida perde o sentido.
Talvez tenham razão. Acho que não.
Eu, desprovido de qualquer órgão
para idealização, prefiro sempre a
realidade à fantasia. Nunca tive
qualquer esperança metafísica. Não
acho que minha vida seja necessariamente melhor por isso.
Uma das banalidades da sociedade moderna é confundir conhecimento com felicidade e sucesso. "A
vida para a felicidade" é irmã gêmea
da mediocridade.
Mas a mediocridade pode ser uma forma de sobreviver. Muitas vezes, não há muito mais
do que isso como opção no cotidiano. Não acho que o conhecimento
salve ninguém, mas ele nos ensina
outras formas de olhar o mundo.
Nós pensamos enquanto as aranhas
tecem suas teias.
Habitamos em dois mundos: o externo e o interno. Do lado de fora, a
ameaça vem do fato de sermos parte
insignificante da cadeia alimentar.
Portadores de um órgão que pensa e
vê a beleza, sabemos que este órgão,
gelatina cinzenta, é também alimento de muitos outros animais. Sejam
eles gloriosos leões, sejam eles miseráveis vermes. Esse "excesso" de conhecimento é a ameaça que nos
atormenta no mundo interno.
Combatemos em duas frentes.
Na
primeira, combatemos a violência
do meio ambiente, onde animais devoram uns aos outros. Na segunda,
combatemos a violência da alma,
onde o medo se torna nosso irmão
gêmeo. Esse "excesso" de conhecimento nos faz carregar nas costas,
há infinitos milênios, a imagem de
nosso próprio cadáver no espelho. À
noite, quando dormimos, os fantasmas dessa alma, que sabe mais do
que deve, nos visita.
Às vezes, na insônia, como diria Elias Canetti, ouvimos os ruídos do corpo e sentimos
a fragilidade da vida que nos escapa.
Certa feita, o escritor israelense
Amóz Oz me disse, numa entrevista
para a Folha, que tem o hábito de
caminhar pelo deserto todas as
manhãs. Esse hábito o ajuda a
compreender melhor a condição
humana.
Por quê?
Amóz Oz tem em mente a antiga
tradição religiosa de caminhar pelo
deserto a fim de percebermos do
que somos feitos: pó e cinzas.
Grandes descobertas sobre si mesmo e sobre a vida são comuns nos
relatos dessas caminhadas. Uma
teologia forte nasce aí: na pobreza
do pó.
Aliás, a ignorância com relação
às grandes tradições religiosas é
marca de um iluminismo estreito,
característico da nossa formação
em ciências humanas. Marx,
Nietzsche e Freud, apesar de terem
posto a teologia de joelhos, apresentam visões simplificadas da religião. Mesmo a literatura de auto-ajuda, esse grande engodo, bebe
nesta experiência do deserto para
construir suas fórmulas baratas de
salvação.
Mas a consciência do deserto pode nos assaltar mesmo em meio a
nossa vida cotidiana. Não é necessário irmos a Israel. O envelhecimento é um exemplo. O medo do
envelhecimento mostra seus dentes todas as manhãs. Quando olho
no espelho pela manhã, e vejo as
marcas do tempo no rosto, sou visitado por este fantasma. Ou quando
recebo o resultado infeliz de um
exame de laboratório.
Hospitais e cemitérios são lugares excepcionais para fazermos filosofia. Imediatamente, é reestabelecida, em minha alma, a consciência do punhado de pó que sou.
A cada doença, o pó toma o lugar
do corpo. Eis a agonia interna da
alma se fazendo presente.
Uma das coisas mais difíceis de
se pensar quando vivemos numa
cultura excessivamente medrosa
como a nossa, viciada na utopia do
"humano eficaz", é que outros modos de vida já foram menos covardes. Isso nada tem a ver com "voltar ao passado". Faz parte de nossa
cultura o auto-engano porque tememos que a tristeza nos torne
menos eficientes.
Imperativos do tipo "seja jovem"
excluem grande parte da experiência cotidiana. A imensa maioria das
horas se passa entre a insegurança
e o medo.
Se o seu pai ou a sua mãe sonha
em ser "jovem" como você, a fala
escondida nesse desejo é: "você
meu filho, você minha filha, não
tem futuro". A coragem é necessária para sermos gente grande. A
"propaganda da juventude" humilha a alma que tem, em sua boca, o
gosto do pó todos os dias.
luiz.ponde@grupofolha.com.br
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