São Paulo, sábado, 06 de novembro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Bessa-Luís traz sua "Bovary" a SP

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

A grande dama das letras portuguesas está de volta. Agustina Bessa-Luís, 82, que veio ao Brasil menos de dois meses atrás para receber o Prêmio Camões de 2004, está em São Paulo a fim de promover seu romance "Vale Abraão", inspirado em Flaubert.
O livro tem como mote "Madame Bovary", célebre história de desilusão e adultério que causou polêmica no século 19. Será lançado hoje com palestra e exibição de adaptação cinematográfica do mestre Manoel de Oliveira.
Uma controvérsia envolve Agustina. Teriam suas obras marcado o fim do neo-realismo em Portugal ou transfigurado essa corrente literária, à sua moda? A escolha de um romance emblemático do realismo como o de Flaubert teria sido provocação?
Em entrevista à Folha, Agustina conta que a idéia lhe foi sugerida pelo próprio Oliveira, que já havia adaptado dois outros livros seus ao cinema: "Foi ele quem me pediu para escrever uma idéia para um filme, e sugeriu "Madame Bovary". Eu disse que escrevia um livro, de onde Manoel tirava o guião [roteiro].". O romance foi publicado em Portugal em 1991 e o filme saiu em 1993.
Agustina explica que, embora "Madame Bovary" tenha sido o ponto de partida, a inspiração para a personagem principal de "Vale Abraão", Ema Paiva, a "Bovarinha" do Douro, proveio de uma senhora que ela conheceu pessoalmente: "Uma Bovary adaptada aos tempos modernos".
A romancista comenta que o se denomina "bovarismo" é uma constante da natureza feminina. "Trata-se daquela insatisfação vaga de moças instruídas no conceito de que o mundo é uma espécie de paraíso", observa. Muitas, para alimentarem essa ilusão, descobrem o caminho da exibição erótica, que também as entedia.
Ema Paiva, por exemplo. Casada com um medíocre médico de província, cedo se aborrece com o matrimônio e adota um comportamento extravagante e a colecionar amantes. Na verdade, tem menos amantes do que as pessoas imaginam, pois sua conduta baseia-se numa exibição enganosa.
Num dos trechos mais ferinos do romance, Ema é confundida com uma prostituta por um velho de Ferrari. O sujeito percebe o erro quando a vê entrar em casa. "Dê a volta devagar, não me estrague as hidranjas", sentencia Ema, orgulhosa de si, arrastando o casaquinho de pele no areão da entrada.
Agustina é autora de mais de 60 livros (o mais famoso é "A Sibila") e ganhadora de inúmeros prêmios. Escreve desde os doze anos e, aos quinze, adquiriu "o conhecimento mais ou menos desavergonhado do que era ter talento". Diz-se que muitos de seus romances tratam do fim do mundo rural, de figuras que desaparecem junto com seu ambiente, em face de uma sociedade em rápida transformação.
Ao final da entrevista, Agustina senta com um livro em que há fotos de sua família, e vai apontando tipos de outrora: o louco, a apaixonada, a matrona severa. Remetem a um mundo que dá voltas e voltas na imaginação dessa senhora sibilina, que, ao contrário de alguns de seus personagens, soube manter-se em consonância com o tempo.


VALE ABRAÃO. Autora: Agustina Bessa-Luís. Editora: Planeta. Quanto: R$ 29 (272 págs.). Palestra e sessão de autógrafos, hoje às 16h, seguidas de exibição do filme "Vale Abraão", de Manoel de Oliveira, às 18h. Onde: Casa do Saber (Rua Dr. Mário Ferraz, 414, SP, ). Inscrições pelo tel. 0/xx/11/3707-8900. Quanto: grátis.


Texto Anterior: Catálogo revela origem musical em "Macunaíma"
Próximo Texto: "Noturno do Chile": Roberto Bolaño faz elegia de pátria literária impossível
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.