São Paulo, domingo, 06 de novembro de 2005

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FERREIRA GULLAR

O caso da velha

Não pensem que dei um tempo para, agora, tentar explicar por que a maioria da população, contrariando meu ponto de vista, preferiu armar-se a desarmar-se. Em vez disso, vou contar a história de um cara que, tendo se mantido a vida toda dentro da lei, teve inesperadamente que romper com ela.
Alberto botou as maletas em cima do carro, alojou a sogra e os filhos no banco de trás, sentou-se com a mulher na frente e deu a partida. Saíam de São Paulo rumo ao Sul, para duas semanas de férias. Quando chegaram à estrada, a manhã mostrou-se linda e livre como o início de toda viagem de férias. Depois pode encrencar, mas sejamos otimistas.
Alberto dali há pouco se sentia outro homem, conversava, contava casos. Os meninos riam, a mulher também. Só a sogra permanecia calada, infensa ao bom humor geral.
- Está sentindo alguma coisa, dona Filoca?
A velha custou a responder, mas resmungou finalmente que não estava sentindo nada. E desse modo seguiram estrada afora, numa euforia que às vezes assustava a mulher.
- Beto, mais devagar. Está correndo muito.
- Muito?! Estamos a 80 km/h, é a velocidade permitida. Dentro da lei.
Foi quando, já noite, tendo atravessado a fronteira com o Paraná, dona Filoca soltou um grunhido estranho e caiu para a frente.
- Vovó está tendo um troço!, gritou a menina.
Alberto olhou para trás e, assustado, parou o carro no acostamento.
- Mamãe, o que houve?, indagava, em pânico, Lúcia.
Alberto tomou o pulso da velha e empalideceu. Chamou por ela, sacudiu-a. Mandou as crianças saírem do carro, deitou-a de qualquer jeito no banco de trás. A velha nada. Estava morta.
Pela cabeça dele passou num relance um pensamento mau: "Essa velha não podia ter morrido antes?". A mulher apavorada começou a chorar.
- Vamos procurar um hospital, Alberto, vamos logo!
- Ela já está morta, disse ele, baixo, para as crianças não ouvirem.
Passado esse primeiro instante dramático, seguiram em frente (a velha, sentada, apoiada pela filha que passara para o banco de trás). Alberto na verdade não sabia o que fazer com o cadáver.
Chegaram a um pequeno hotel de beira de estrada. Contou ao dono o que acontecera, e este, de olhos arregalados, saiu para ver a morta. Em breve, o carro estava rodeado de gente que olhava, perguntava e já começava a contar casos semelhantes.
Alberto, irritado, disse ao dono do hotel que precisava avisar à família e dar um jeito de enterrar a morta.
- Enterrar minha mãe neste lugar? Nunca!, protestou Lúcia.
E além do mais havia o problema legal do atestado de óbito. "O senhor pode ser acusado de homicídio", lembrou o hoteleiro.
- Homicídio?! Quem é doido de matar a própria sogra?
O hoteleiro sorriu cinicamente.
Alberto falou pelo telefone com a família em São Paulo. Os parentes, embora estupefatos, disseram que trouxesse o corpo, que eles lá tomariam todas as providências.
Pensou consigo mesmo: "Lá, vão tomar todas as providências, mas e aqui?". O hoteleiro lhe disse que o médico mais próximo ficava a três horas de viagem. Seguiu para lá, com sua carga macabra. Mas, ao chegar, soube que o médico viajara de férias também.
- E há outro médico por aqui?
- Há o farmacêutico.
Para atestado de óbito não servia. Alberto voltou para o carro, sentou-se, respirou fundo. Foi quando lhe acendeu na mente uma idéia reveladora.
- Vamos direto para São Paulo, agora mesmo.
Não esperou a resposta da mulher, manobrou o carro, pegou a estrada de volta e disparou a correr como um louco.
- Mais devagar, Alberto, por favor.
Fez que não ouviu. Lembrou-se de que a gasolina estava para acabar, teria que abastecer o carro num próximo posto de gasolina. Decidiu parar antes. Ali mesmo, desceu do carro e disse para a mulher:
- Vamos tirar a dona Filoca daí.
- Para quê?
- Vamos!
Então pediu à mulher que o ajudasse a pôr a velha dentro da mala do carro.
- Minha mãe, aí dentro?!
- Ou vão me prender como suspeito de assassinato! Que acha?
Feito o serviço, voltaram para o carro e seguiram viagem. Abasteceram-se de gasolina e continuaram noite adentro.
- Só vamos parar em casa!
Mas, como as crianças começaram a se queixar de que tinham fome, decidiu fazer uma parada rápida num restaurante de estrada. De fato, não se demoraram muito lá dentro, mas, quando voltaram, o carro havia desaparecido. Com a sogra na mala.
O leitor deve imaginar o resto. A chegada deles em casa, o quarto cheio de flores e velas acesas. Onde está a vovó? Roubaram! É possível que a família mal tenha contido o riso. Quem certamente não achou muita graça na história foi o ladrão, ao descobrir o que havia na mala do carro.

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