|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
FERREIRA GULLAR
O caso da velha
Não pensem que dei um tempo para, agora, tentar explicar por que a maioria da população, contrariando meu ponto de
vista, preferiu armar-se a desarmar-se. Em vez disso, vou contar
a história de um cara que, tendo
se mantido a vida toda dentro da
lei, teve inesperadamente que
romper com ela.
Alberto botou as maletas em cima do carro, alojou a sogra e os filhos no banco de trás, sentou-se
com a mulher na frente e deu a
partida. Saíam de São Paulo rumo ao Sul, para duas semanas de
férias. Quando chegaram à estrada, a manhã mostrou-se linda e
livre como o início de toda viagem de férias. Depois pode encrencar, mas sejamos otimistas.
Alberto dali há pouco se sentia
outro homem, conversava, contava casos. Os meninos riam, a mulher também. Só a sogra permanecia calada, infensa ao bom humor geral.
- Está sentindo alguma coisa,
dona Filoca?
A velha custou a responder, mas
resmungou finalmente que não
estava sentindo nada. E desse
modo seguiram estrada afora,
numa euforia que às vezes assustava a mulher.
- Beto, mais devagar. Está correndo muito.
- Muito?! Estamos a 80 km/h, é
a velocidade permitida. Dentro
da lei.
Foi quando, já noite, tendo
atravessado a fronteira com o Paraná, dona Filoca soltou um grunhido estranho e caiu para a frente.
- Vovó está tendo um troço!,
gritou a menina.
Alberto olhou para trás e, assustado, parou o carro no acostamento.
- Mamãe, o que houve?, indagava, em pânico, Lúcia.
Alberto tomou o pulso da velha
e empalideceu. Chamou por ela,
sacudiu-a. Mandou as crianças
saírem do carro, deitou-a de
qualquer jeito no banco de trás. A
velha nada. Estava morta.
Pela cabeça dele passou num relance um pensamento mau: "Essa
velha não podia ter morrido antes?". A mulher apavorada começou a chorar.
- Vamos procurar um hospital, Alberto, vamos logo!
- Ela já está morta, disse ele,
baixo, para as crianças não ouvirem.
Passado esse primeiro instante
dramático, seguiram em frente (a
velha, sentada, apoiada pela filha
que passara para o banco de
trás). Alberto na verdade não sabia o que fazer com o cadáver.
Chegaram a um pequeno hotel
de beira de estrada. Contou ao
dono o que acontecera, e este, de
olhos arregalados, saiu para ver a
morta. Em breve, o carro estava
rodeado de gente que olhava, perguntava e já começava a contar
casos semelhantes.
Alberto, irritado, disse ao dono
do hotel que precisava avisar à família e dar um jeito de enterrar a
morta.
- Enterrar minha mãe neste
lugar? Nunca!, protestou Lúcia.
E além do mais havia o problema legal do atestado de óbito. "O
senhor pode ser acusado de homicídio", lembrou o hoteleiro.
- Homicídio?! Quem é doido
de matar a própria sogra?
O hoteleiro sorriu cinicamente.
Alberto falou pelo telefone com
a família em São Paulo. Os parentes, embora estupefatos, disseram
que trouxesse o corpo, que eles lá
tomariam todas as providências.
Pensou consigo mesmo: "Lá,
vão tomar todas as providências,
mas e aqui?". O hoteleiro lhe disse
que o médico mais próximo ficava a três horas de viagem. Seguiu
para lá, com sua carga macabra.
Mas, ao chegar, soube que o médico viajara de férias também.
- E há outro médico por aqui?
- Há o farmacêutico.
Para atestado de óbito não servia. Alberto voltou para o carro,
sentou-se, respirou fundo. Foi
quando lhe acendeu na mente
uma idéia reveladora.
- Vamos direto para São Paulo, agora mesmo.
Não esperou a resposta da mulher, manobrou o carro, pegou a
estrada de volta e disparou a correr como um louco.
- Mais devagar, Alberto, por
favor.
Fez que não ouviu. Lembrou-se
de que a gasolina estava para
acabar, teria que abastecer o carro num próximo posto de gasolina. Decidiu parar antes. Ali mesmo, desceu do carro e disse para a
mulher:
- Vamos tirar a dona Filoca
daí.
- Para quê?
- Vamos!
Então pediu à mulher que o
ajudasse a pôr a velha dentro da
mala do carro.
- Minha mãe, aí dentro?!
- Ou vão me prender como
suspeito de assassinato! Que
acha?
Feito o serviço, voltaram para o
carro e seguiram viagem. Abasteceram-se de gasolina e continuaram noite adentro.
- Só vamos parar em casa!
Mas, como as crianças começaram a se queixar de que tinham
fome, decidiu fazer uma parada
rápida num restaurante de estrada. De fato, não se demoraram
muito lá dentro, mas, quando
voltaram, o carro havia desaparecido. Com a sogra na mala.
O leitor deve imaginar o resto. A
chegada deles em casa, o quarto
cheio de flores e velas acesas. Onde está a vovó? Roubaram! É possível que a família mal tenha contido o riso. Quem certamente não
achou muita graça na história foi
o ladrão, ao descobrir o que havia
na mala do carro.
Texto Anterior: Crítica: Falta um propósito a "Bang Bang" Próximo Texto: Cúpula da Globo cortou beijo gay, diz Glória Perez Índice
|