São Paulo, sexta, 6 de novembro de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

FORNADA DO MILÊNIO
Será que você ficou velho, Zé Celso?

GERALD THOMAS
do Rio de Janeiro


Artista insensível parece ser um termo contraditório. Pior ainda é quando o artista repete a voz medíocre da classe média pasteurizada, achatada, emburrecida pelo denominador comum baixíssimo da mídia cultural.
Estou estarrecido... Não, minto, estou somente decepcionado pelas declarações recentes do Zé Celso relativas à arte maravilhosa de Bob Wilson. Zé comparou Wilson a uma revista ilustrada, a uma espécie de embrulho com papel de presente.
Justamente no momento de sua estréia de "Cacilda!", em que ele tinha mais é que falar sobre o seu próprio trabalho, Zé Celso -obviamente inseguro e confuso (envergonhado talvez)- resolveu optar por ecoar, vergonhosamente, a opinião da classe média de 30 anos atrás, que enxergava em Wilson o "artista incompreensível".
Ao mesmo tempo em que é trágica essa constatação, é engraçado ler que ele acusava Wilson de "bater sempre na mesma tecla", quando ele, Zé Celso, não faz outra coisa há três décadas: o discurso social, político e cultural do Zé é o mesmo. Sua arte sofre (ou é enaltecida) justamente pelo fato de que o diretor- autor mantém uma convicção determinada e nada o tira desse patamar.
Pois é justamente esse o caso de Wilson. Esse também sofre (ou é glorificado) nas obsessivas repetições de suas fórmulas.
Wilson (que nunca ouviu falar em Zé Celso) é o teatrólogo mais importante e mais prolixo desses últimos 30 anos, trabalhando (sem parar) nos maiores palcos do mundo e tendo a maior verba disponível em teatro para realizar seus trabalhos.
Será que é isso que enfurece o Zé? Wilson tem todo o dinheiro de que precisa e se apresenta (ainda sob vaias da classe média) no Metropolitan Opera House, no Thalia de Hamburgo, no Schaunbuehne de Berlim, na Opera de Zurique ou no festival de Salzburgo.
Mas não se iludam. Aqueles que o patrocinam ainda ouvem desaforos da classe conservadora. Alguns velhinhos de cabeça branca ainda são vistos se levantando no meio de seus espetáculos e saindo pela porta em protestos ruidosos.
Será que um desses velhinhos de cabeça branca, em Hamburgo ou em Munique, poderia ter sido o Zé?
Ah, sim! Os trabalhos de Bob Wilson todos se parecem uns com os outros, se repetem, se assemelham numa proporção alucinante? Ora, mas que novidade!!! E Mozart? E Wagner? E Di Cavalcanti? E Glauber? Como é que um artista como o Zé pode cometer justamente esse erro? Como é que ele pode beirar o fascismo, o racismo, o preconceito mais primário que é o de julgar "vazio" e "ininteligível" tudo aquilo que ele não entende?
Não é justamente contra esse preconceito raso e perigoso que o Zé lutou a vida toda? Não é justamente contra essa falta de generosidade e de diálogo entre estéticas e ideologias que o Zé lutou a vida inteira? Você ficou velho, Zé? Pior que isso: você se tornou um velho "malhando" a arte de um outro velho, o Bob Wilson? Que pena!
Sim, sem dúvida as obras de Wilson se parecem. Aliás, são todas uma a cara da outra. Mas não poderia ser diferente. Wilson é mais que um teatrólogo, mais que um pintor, mais que um mero diretor de teatro.
Wilson é um visionário, um autor de um vocabulário extenso, um artista-autista que foi buscar em sua cegueira e em sua inabilidade discursiva uma outra maneira de penetrar o mundo emocionante da arte ao vivo.
Mas o que dizer, por exemplo, de Mondrian ou de Paul Klee? O que dizer da arquitetura de Frank Lloyd Wright ou de Niemeyer? Ou Shakespeare, Matisse? Sim, os maiores artistas da humanidade têm um "red thread" (uma terrível "parecência", uma obsessão repetitiva) que os acompanha, deprime, revolta, assombra, mas que é, em última instância, aquilo que chamamos de estilo ou "assinatura do artista".
Será que posso acreditar que o Zé Celso acusa Bob Wilson de possuir aquilo que os maiores mestres da sensibilidade humana tiveram: uma assinatura?
A arte de Wilson nasceu onde a do Living Theatre morreu. Zé pegou emprestado a arte do Living, do Julian Beck e de Judith Malina, que, na década de 60 e 70, acreditavam que, berrando, bradando e enchendo os ouvidos da platéia com refrões e chavões do idealismo de contracultura "flower power" iriam mudar a mentalidade geral do status quo para sempre.
Que falha! Que bobagem! Ingenuidade pura! O próprio Julian (que eu tive o privilégio de dirigir na "Trilogia Beckett", em Nova York, pouco antes de sua morte) confessou que havia se equivocado no que dizia respeito à sua falta de sutileza e de sedução.
Julian confessava assustado que Beckett havia dominado muito mais genialmente a maneira de transmitir sua arte, justamente porque havia conseguido camuflá-la com pequenas cascas e camadas que a platéia (num gesto intuitivo e participante) precisava descascar com curiosidade, para chegar ao cerne da questão.
Quem gosta da arte óbvia? Quem gosta de ouvir jargões e quem se sente motivado por eles? Será que alguém saiu de punho em riste de alguma "peça revolucionária" para ir fazer sua revolução?
Não, evidente que não. Pior que isso. A platéia que vê atores de punho em riste, berrando jargões, sente-se defendida, afastada, sente-se currada pelo excesso de "verdade" vinda do palco e vai para casa se sentindo humilhada.
Essa "verdade" pertence aos gurus, aos papas, aos representantes de um suposto deus.
O verdadeiro artista tem é pacto com o diabo, com a dúvida, com a hesitação.
Ele precisa, sem a menor sombra de dúvida, rearrumar os conceitos estéticos e morais da platéia com pinceladas dissimuladas, sutis e, às vezes, deliberadamente mentirosas, para que a sua mensagem seja interpretada pelo público com as mesmas nuances existenciais que o próprio mistério da vida proporciona.
Com certeza, o Zé não é conhecido pela sua sutileza. Sua arte está longe do cochicho, da sedução e do namoro.
Notem bem: escrevo tudo isso porque adoro o Zé. Já provei isso com inúmeros textos no passado. Há três ou quatro anos escrevi que seu "Ham-let" era o "maior espetáculo da terra" e seu "Gracias Senhor" até hoje não me sai da memória.
Mas me assusto quando vejo que ele não quer enxergar que Wilson -assim como Beckett- fez em seu teatro a junção de várias artes, de várias imagens, de várias filosofias.
Assusto-me quando ouço o Zé repetir o jargão da classe conservadora americana e européia de décadas atrás. Justamente por se autodenominar um anarquista, um alegre, um feliz e esperto bobo da corte, assusto- me quando vejo que esse ser adorável que se chama Zé Celso Martinez Corrêa, pode, em questão de alguns poucos anos, passar a ser simplesmente um bobo.
²
²

E-mail: geraldthomas@uol.com.br


Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.