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FORNADA DO MILÊNIO
Será que você ficou velho, Zé Celso?
GERALD THOMAS
do Rio de Janeiro
Artista insensível parece ser um
termo contraditório. Pior ainda é
quando o artista repete a voz medíocre da classe média pasteurizada, achatada, emburrecida pelo
denominador comum baixíssimo
da mídia cultural.
Estou estarrecido... Não, minto,
estou somente decepcionado pelas
declarações recentes do Zé Celso
relativas à arte maravilhosa de
Bob Wilson. Zé comparou Wilson
a uma revista ilustrada, a uma espécie de embrulho com papel de
presente.
Justamente no momento de sua
estréia de "Cacilda!", em que ele
tinha mais é que falar sobre o seu
próprio trabalho, Zé Celso -obviamente inseguro e confuso (envergonhado talvez)- resolveu optar por ecoar, vergonhosamente, a
opinião da classe média de 30
anos atrás, que enxergava em Wilson o "artista incompreensível".
Ao mesmo tempo em que é trágica essa constatação, é engraçado
ler que ele acusava Wilson de "bater sempre na mesma tecla",
quando ele, Zé Celso, não faz outra coisa há três décadas: o discurso social, político e cultural do Zé é
o mesmo. Sua arte sofre (ou é
enaltecida) justamente pelo fato
de que o diretor- autor mantém
uma convicção determinada e nada o tira desse patamar.
Pois é justamente esse o caso de
Wilson. Esse também sofre (ou é
glorificado) nas obsessivas repetições de suas fórmulas.
Wilson (que nunca ouviu falar
em Zé Celso) é o teatrólogo mais
importante e mais prolixo desses
últimos 30 anos, trabalhando
(sem parar) nos maiores palcos do
mundo e tendo a maior verba disponível em teatro para realizar
seus trabalhos.
Será que é isso que enfurece o
Zé? Wilson tem todo o dinheiro de
que precisa e se apresenta (ainda
sob vaias da classe média) no Metropolitan Opera House, no Thalia
de Hamburgo, no Schaunbuehne
de Berlim, na Opera de Zurique ou
no festival de Salzburgo.
Mas não se iludam. Aqueles que
o patrocinam ainda ouvem desaforos da classe conservadora. Alguns velhinhos de cabeça branca
ainda são vistos se levantando no
meio de seus espetáculos e saindo
pela porta em protestos ruidosos.
Será que um desses velhinhos de
cabeça branca, em Hamburgo ou
em Munique, poderia ter sido o
Zé?
Ah, sim! Os trabalhos de Bob
Wilson todos se parecem uns com
os outros, se repetem, se assemelham numa proporção alucinante? Ora, mas que novidade!!! E
Mozart? E Wagner? E Di Cavalcanti? E Glauber? Como é que um
artista como o Zé pode cometer
justamente esse erro? Como é que
ele pode beirar o fascismo, o racismo, o preconceito mais primário
que é o de julgar "vazio" e "ininteligível" tudo aquilo que ele não
entende?
Não é justamente contra esse
preconceito raso e perigoso que o
Zé lutou a vida toda? Não é justamente contra essa falta de generosidade e de diálogo entre estéticas
e ideologias que o Zé lutou a vida
inteira? Você ficou velho, Zé? Pior
que isso: você se tornou um velho
"malhando" a arte de um outro
velho, o Bob Wilson? Que pena!
Sim, sem dúvida as obras de
Wilson se parecem. Aliás, são todas uma a cara da outra. Mas não
poderia ser diferente. Wilson é
mais que um teatrólogo, mais que
um pintor, mais que um mero diretor de teatro.
Wilson é um visionário, um autor de um vocabulário extenso,
um artista-autista que foi buscar
em sua cegueira e em sua inabilidade discursiva uma outra maneira de penetrar o mundo emocionante da arte ao vivo.
Mas o que dizer, por exemplo, de
Mondrian ou de Paul Klee? O que
dizer da arquitetura de Frank
Lloyd Wright ou de Niemeyer? Ou
Shakespeare, Matisse? Sim, os
maiores artistas da humanidade
têm um "red thread" (uma terrível
"parecência", uma obsessão repetitiva) que os acompanha, deprime, revolta, assombra, mas que é,
em última instância, aquilo que
chamamos de estilo ou "assinatura do artista".
Será que posso acreditar que o
Zé Celso acusa Bob Wilson de possuir aquilo que os maiores mestres
da sensibilidade humana tiveram:
uma assinatura?
A arte de Wilson nasceu onde a
do Living Theatre morreu. Zé pegou emprestado a arte do Living,
do Julian Beck e de Judith Malina,
que, na década de 60 e 70, acreditavam que, berrando, bradando e
enchendo os ouvidos da platéia
com refrões e chavões do idealismo de contracultura "flower power" iriam mudar a mentalidade
geral do status quo para sempre.
Que falha! Que bobagem! Ingenuidade pura! O próprio Julian
(que eu tive o privilégio de dirigir
na "Trilogia Beckett", em Nova
York, pouco antes de sua morte)
confessou que havia se equivocado
no que dizia respeito à sua falta de
sutileza e de sedução.
Julian confessava assustado que
Beckett havia dominado muito
mais genialmente a maneira de
transmitir sua arte, justamente
porque havia conseguido camuflá-la com pequenas cascas e camadas que a platéia (num gesto
intuitivo e participante) precisava
descascar com curiosidade, para
chegar ao cerne da questão.
Quem gosta da arte óbvia?
Quem gosta de ouvir jargões e
quem se sente motivado por eles?
Será que alguém saiu de punho
em riste de alguma "peça revolucionária" para ir fazer sua revolução?
Não, evidente que não. Pior que
isso. A platéia que vê atores de punho em riste, berrando jargões,
sente-se defendida, afastada, sente-se currada pelo excesso de "verdade" vinda do palco e vai para
casa se sentindo humilhada.
Essa "verdade" pertence aos gurus, aos papas, aos representantes
de um suposto deus.
O verdadeiro artista tem é pacto
com o diabo, com a dúvida, com a
hesitação.
Ele precisa, sem a menor sombra
de dúvida, rearrumar os conceitos
estéticos e morais da platéia com
pinceladas dissimuladas, sutis e,
às vezes, deliberadamente mentirosas, para que a sua mensagem
seja interpretada pelo público com
as mesmas nuances existenciais
que o próprio mistério da vida
proporciona.
Com certeza, o Zé não é conhecido pela sua sutileza. Sua arte está
longe do cochicho, da sedução e do
namoro.
Notem bem: escrevo tudo isso
porque adoro o Zé. Já provei isso
com inúmeros textos no passado.
Há três ou quatro anos escrevi que
seu "Ham-let" era o "maior espetáculo da terra" e seu "Gracias Senhor" até hoje não me sai da memória.
Mas me assusto quando vejo que
ele não quer enxergar que Wilson
-assim como Beckett- fez em
seu teatro a junção de várias artes,
de várias imagens, de várias filosofias.
Assusto-me quando ouço o Zé
repetir o jargão da classe conservadora americana e européia de
décadas atrás. Justamente por se
autodenominar um anarquista,
um alegre, um feliz e esperto bobo
da corte, assusto- me quando vejo
que esse ser adorável que se chama Zé Celso Martinez Corrêa, pode, em questão de alguns poucos
anos, passar a ser simplesmente
um bobo.
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E-mail: geraldthomas@uol.com.br
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