São Paulo, sábado, 06 de dezembro de 2008

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Crítica/"Três Vidas"

Inventivo, romance cubista de Gertrude Stein desafia o leitor

Com repetições e frases que não se desenvolvem, autora aborda personagens tristes

NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Já faz parte de nosso repertório consolidado a imagem de um quadro cubista. Aquilo que um dia foi inaceitável, de tão estranho ao imaginário burguês, hoje praticamente se transformou num lugar-comum.
Mas e uma narrativa cubista?
Infelizmente, nesse terreno, o hábito do público ainda resiste bravamente; não se sabe direito o que é um romance cubista e, quando se "enfrenta" uma leitura como essa, a tendência é, quase sempre, a da negação.
Gertrude Stein escreve por quebras e repetições; frases que não se desenvolvem, adjetivos que se permutam em tríades infinitas. Nada se explica nem se interpreta.
"Cada momento é uma coisa essencialmente nova"; "tudo quebra; nada continua; tudo se isola" e "uma coisa sem progresso é mais esplêndida do que uma coisa que progride" são palavras da própria autora, praticadas fielmente no romance "Três Vidas", agora republicado pela Cosac Naify.
Realmente, não se trata de leitura fácil; não se espere fluência nem densidade narrativa. A fluência acontece por sucessivos agoras e, por isso, demora. É preciso desabituar-se para, então, novamente, adquirir uma outra forma de leitura.

Densidade
Já a densidade também vem, lenta. Ela se forma pela composição insistente das três personagens, "A boa Anna", "Melanctha" e "A gentil Lena". Três mulheres tristes, três vidas condenadas à incompreensão, três herdeiras dos Três Contos de Flaubert. Herdeiras na inocência, na entrega à vida e nas frases que valem cada uma por um período, um instante.
O cubismo é a colagem de tantos instantes que, compostos, acabam por adquirir uma certa unidade. É assim também com "Três Vidas". A busca obsessiva do conhecimento (que, para Stein, é sabedoria e sexo), como conta Flora Süssekind no excelente posfácio, "emergiria da existência, do momento atual, da simultaneidade, não da sucessão".
Realista não é aquilo que retrata a realidade, mas, como se trata de invenção, aquilo que retrata a composição do inventado. É como virar um livro às avessas e olhar o lado de dentro. Ainda assim, é possível se emocionar muito com Melanctha e Lena, principalmente. O amor pela vida de Melanctha é tamanho que é praticamente impossível que ela seja feliz. Felizes (ou resignados) são somente os adaptados, os espertos, os prisioneiros do hábito. Melanctha é personagem agoral de uma narrativa agoral.
Para ela não há passado nem futuro; há o amor atual, que seu parceiro não pode sustentar. É mesmo difícil, se nem mesmo nós podemos sustentar facilmente a leitura de "grande, exausta e paciente", "paciente, grande e exausta", "exausta, grande e paciente", ou "rabugenta, ordinária, infantil e preta", "preta, ordinária, rabugenta e infantil". Mas é preciso continuar.
O que parece, em princípio, chato, esse adjetivo facilitador que justifica todas nossas acomodações, vai se tornando inventivo, compassivo, irônico e triste. Composição e emoção: cubismo narrativo.


TRÊS VIDAS
Autora:
Gertrude Stein
Tradução: Vanessa Barbara
Editora: Cosac Naify
Quanto: R$ 46 (248 págs.)
Avaliação: ótimo



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