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Crítica/"Três Vidas"
Inventivo, romance cubista de Gertrude Stein desafia o leitor
Com repetições e frases que não se desenvolvem, autora aborda personagens tristes
NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Já faz parte de nosso repertório consolidado a
imagem de um quadro
cubista. Aquilo que um dia foi
inaceitável, de tão estranho ao
imaginário burguês, hoje praticamente se transformou num
lugar-comum.
Mas e uma narrativa cubista?
Infelizmente, nesse terreno, o
hábito do público ainda resiste
bravamente; não se sabe direito
o que é um romance cubista e,
quando se "enfrenta" uma leitura como essa, a tendência é,
quase sempre, a da negação.
Gertrude Stein escreve por
quebras e repetições; frases que
não se desenvolvem, adjetivos
que se permutam em tríades
infinitas. Nada se explica nem
se interpreta.
"Cada momento é uma coisa
essencialmente nova"; "tudo
quebra; nada continua; tudo se
isola" e "uma coisa sem progresso é mais esplêndida do
que uma coisa que progride"
são palavras da própria autora,
praticadas fielmente no romance "Três Vidas", agora republicado pela Cosac Naify.
Realmente, não se trata de
leitura fácil; não se espere
fluência nem densidade narrativa. A fluência acontece por
sucessivos agoras e, por
isso, demora. É preciso desabituar-se para, então, novamente, adquirir uma outra forma de
leitura.
Densidade
Já a densidade também vem,
lenta. Ela se forma pela composição insistente das três personagens, "A boa Anna", "Melanctha" e "A gentil Lena". Três
mulheres tristes, três vidas
condenadas à incompreensão,
três herdeiras dos Três Contos
de Flaubert. Herdeiras na inocência, na entrega à vida e nas
frases que valem cada uma por
um período, um instante.
O cubismo é a colagem de
tantos instantes que, compostos, acabam por adquirir uma
certa unidade. É assim também
com "Três Vidas". A busca obsessiva do conhecimento (que,
para Stein, é sabedoria e sexo),
como conta Flora Süssekind no
excelente posfácio, "emergiria
da existência, do momento
atual, da simultaneidade, não
da sucessão".
Realista não é aquilo que retrata a realidade, mas, como se
trata de invenção, aquilo que
retrata a composição do inventado. É como virar um livro às
avessas e olhar o lado de dentro. Ainda assim, é possível se
emocionar muito com Melanctha e Lena, principalmente.
O amor pela vida de Melanctha é tamanho que é praticamente impossível que ela seja
feliz. Felizes (ou resignados)
são somente os adaptados, os
espertos, os prisioneiros do hábito. Melanctha é personagem
agoral de uma narrativa agoral.
Para ela não há passado nem
futuro; há o amor atual, que seu
parceiro não pode sustentar. É
mesmo difícil, se nem mesmo
nós podemos sustentar facilmente a leitura de "grande,
exausta e paciente", "paciente,
grande e exausta", "exausta,
grande e paciente", ou "rabugenta, ordinária, infantil e preta", "preta, ordinária, rabugenta e infantil". Mas é preciso
continuar.
O que parece, em princípio,
chato, esse adjetivo facilitador
que justifica todas nossas acomodações, vai se tornando inventivo, compassivo, irônico e
triste. Composição e emoção:
cubismo narrativo.
TRÊS VIDAS
Autora: Gertrude Stein
Tradução: Vanessa Barbara
Editora: Cosac Naify
Quanto: R$ 46 (248 págs.)
Avaliação: ótimo
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