São Paulo, sábado, 07 de janeiro de 2006

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ROMANCE/"GILEAD"

Robinson constrói fábula conservadora

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

Numa tradução eficiente e expedita (lançada pouco mais de um ano após vir a lume no mercado americano), chega ao Brasil a segunda ficção da bissexta Marilynne Robinson, que lhe valeu o Prêmio Pulitzer de 2005.
O cenário é Gilead, uma cidadezinha rural de Iowa. É lá que o reverendo John Ames, pressentindo a chegada da morte, decide escrever uma série de cartas para o filho, de apenas sete anos, que não verá crescer. A idéia é contar-lhe tudo aquilo que, em conversas de pai para filho, acabaria revelando, se o fim não se mostrasse iminente. Ou seja, suas memórias e seu legado intelectual.
Não por acaso o capítulo das reminiscências começa quando Ames, um rapazote, acompanha o pai numa viagem ao Kansas, em 1892. Durante a longa peregrinação ao túmulo do avô, Ames ouve ao genitor o tipo de ensinamento que agora pretende transmitir a seu único descendente.
Tanto o pai quanto o avô se chamam John Ames e também se dedicaram ao ministério sagrado. As coisas mudaram, porém, no decorrer dos anos. O avô tinha visões, conversava com Jesus e, abolicionista ferrenho, roubou, trapaceou e pode até ter matado pela causa dos escravos durante a Guerra Civil. Por motivo desses atos, sua relação com o filho pacifista não se deu sem tensão.
Mas a crença de ambos nunca foi posta à prova como a do herói de nossa história. Diversas vezes Ames precisa se digladiar com a dúvida que os novos tempos inspiram. Seu irmão imbui-se das teses atéias do pensador alemão Feuerbach. A própria filosofia de Ames, que defende a idéia de que o mistério do Criador escapa à compreensão humana (e, portanto, à racionalização), raspa no agnosticismo.
E sua posição sofre novo abalo com a chegada a Gilead, durante a redação das cartas, de seu afilhado Jack. Ovelha desgarrada, com uma mácula obscura no passado, o jovem foi batizado John Ames, em homenagem ao pastor.
O regresso do afilhado deixa Ames apreensivo, acirrando-lhe a consciência da finitude. O pastor já sentia saudade antecipada por aquilo que deixará na terra, especialmente o filho e a jovem esposa. E essa cobiça pelo que deixará de ter acentua-se com a chegada de Jack, a quem vê como possível substituto no afeto dos seus.
A desconfiança com relação às intenções do afilhado, somada ao sentimento pouco cristão experimentado pelo pastor, caminha para o grande conflito do romance, que possibilita ao religioso viver o momento para o qual o preparou toda a carreira eclesiástica.
A maneira magicamente irresistível com que Marilynne tece sua fábula oferece alguns desafios à crítica. Hoje, quando mesmo o romance realista mais tradicional carrega o germe da incerteza no tocante ao compromisso da ficção, a autora exibe uma narrativa soberba, mas na qual a dúvida se encerra por completo na matéria; isto é, na vida retratada, não na forma que a retrata.
Extremamente conservador como o protagonista que espelha, o romance de Marilynne traz, escamoteado em si, por causa disso, a questão essencial: pode um excelente romance vir enfeixado numa estrutura acintosamente reacionária? Os leitores que se maravilham com a história e com a luz proporcionada pelos ensinamentos teológicos e existenciais do herói decerto não se incomodam com isso. E, a se julgar pelo galardão já recebido, a crítica norte-americana também não.


Gilead
   
Autor: Marilynne Robinson
Tradução: Maria Helena Rouanet
Editora: Nova Fronteira
Quanto: R$ 34,90 (304 págs.)


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