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ROMANCE/"GILEAD"
Robinson constrói fábula conservadora
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
Numa tradução eficiente e expedita (lançada pouco mais
de um ano após vir a lume no
mercado americano), chega ao
Brasil a segunda ficção da bissexta
Marilynne Robinson, que lhe valeu o Prêmio Pulitzer de 2005.
O cenário é Gilead, uma cidadezinha rural de Iowa. É lá que o reverendo John Ames, pressentindo a chegada da morte, decide escrever uma série de cartas para o filho, de apenas sete anos, que não
verá crescer. A idéia é contar-lhe
tudo aquilo que, em conversas de
pai para filho, acabaria revelando,
se o fim não se mostrasse iminente. Ou seja, suas memórias e seu
legado intelectual.
Não por acaso o capítulo das reminiscências começa quando
Ames, um rapazote, acompanha
o pai numa viagem ao Kansas, em
1892. Durante a longa peregrinação ao túmulo do avô, Ames ouve
ao genitor o tipo de ensinamento
que agora pretende transmitir a
seu único descendente.
Tanto o pai quanto o avô se chamam John Ames e também se dedicaram ao ministério sagrado.
As coisas mudaram, porém, no
decorrer dos anos. O avô tinha visões, conversava com Jesus e,
abolicionista ferrenho, roubou,
trapaceou e pode até ter matado
pela causa dos escravos durante a
Guerra Civil. Por motivo desses
atos, sua relação com o filho pacifista não se deu sem tensão.
Mas a crença de ambos nunca
foi posta à prova como a do herói
de nossa história. Diversas vezes
Ames precisa se digladiar com a
dúvida que os novos tempos inspiram. Seu irmão imbui-se das teses atéias do pensador alemão
Feuerbach. A própria filosofia de
Ames, que defende a idéia de que
o mistério do Criador escapa à
compreensão humana (e, portanto, à racionalização), raspa no agnosticismo.
E sua posição sofre novo abalo
com a chegada a Gilead, durante a
redação das cartas, de seu afilhado Jack. Ovelha desgarrada, com
uma mácula obscura no passado,
o jovem foi batizado John Ames,
em homenagem ao pastor.
O regresso do afilhado deixa
Ames apreensivo, acirrando-lhe a
consciência da finitude. O pastor
já sentia saudade antecipada por
aquilo que deixará na terra, especialmente o filho e a jovem esposa. E essa cobiça pelo que deixará
de ter acentua-se com a chegada
de Jack, a quem vê como possível
substituto no afeto dos seus.
A desconfiança com relação às
intenções do afilhado, somada ao
sentimento pouco cristão experimentado pelo pastor, caminha
para o grande conflito do romance, que possibilita ao religioso viver o momento para o qual o preparou toda a carreira eclesiástica.
A maneira magicamente irresistível com que Marilynne tece sua
fábula oferece alguns desafios à
crítica. Hoje, quando mesmo o
romance realista mais tradicional
carrega o germe da incerteza no
tocante ao compromisso da ficção, a autora exibe uma narrativa
soberba, mas na qual a dúvida se
encerra por completo na matéria;
isto é, na vida retratada, não na
forma que a retrata.
Extremamente conservador como o protagonista que espelha, o
romance de Marilynne traz, escamoteado em si, por causa disso, a
questão essencial: pode um excelente romance vir enfeixado numa estrutura acintosamente reacionária? Os leitores que se maravilham com a história e com a luz
proporcionada pelos ensinamentos teológicos e existenciais do herói decerto não se incomodam
com isso. E, a se julgar pelo galardão já recebido, a crítica norte-americana também não.
Gilead
Autor: Marilynne Robinson
Tradução: Maria Helena Rouanet
Editora: Nova Fronteira
Quanto: R$ 34,90 (304 págs.)
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