São Paulo, quarta-feira, 07 de fevereiro de 2007

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

Tapetes voadores

Grupo no Reino Unido acusa a indústria cultural de representar os muçulmanos de forma ofensiva

VOCÊS LEMBRAM as charges de Maomé? Eu lembro. E lembro o colunista Mark Steyn, no "Chicago Sun-Times", questionando: não é estranho que o Islã entre em ebulição com uns desenhos e ignore os terroristas que ostentam o nome do profeta para matar? Mohammad Atta. Mohammad Khan. Mohammad Al-Nasser. Se isso não é heresia, o que é a heresia?
Problema idêntico voltou nos últimos dias. A Islamic Human Rights Comission, sediada no Reino Unido, publicou o estudo "The British Media and Muslim Representation: The Ideology of Demonisation". O grupo acusa a indústria cultural, sobretudo Hollywood, de representar os muçulmanos de forma ofensiva.
Assistam aos filmes do Indiana Jones. Assistam ao desenho "Aladdin" e escutem o sotaque ridículo do gênio que salta da lâmpada. Os muçulmanos, no cinema, são sempre mentirosos, ladrões, criminosos, terroristas, leitores compulsivos de Chomsky. Um dos autores do estudo afirma mesmo que a situação só é comparável à perseguição que os judeus sofreram na Alemanha nazista.
Mas existem soluções. Se a cultura pop é ofensiva, nada melhor que censurá-la. A idéia, se bem percebi, é apagar estes estereótipos grosseiros. E apresentar o "muçulmano" como um novo super-herói, disposto a salvar a humanidade e nunca, jamais, interessado em rebentar com ela. Imagino o filme: o Super Ali, voando em seu tapete, pronto para salvar um cristão, um hindu, eventualmente um judeu. Sim, sei: estou sendo ofensivo. Os tapetes não voam.
Ofensivo e, já agora, otimista. Eu entendo a dificuldade do muçulmano honesto e pacífico em viver num mundo que lhe é hostil. Mas, como aconteceu com as charges, talvez o muçulmano honesto e pacífico devesse perguntar se o comportamento recente de alguns companheiros de fé não contribuiu para essa lamentável hostilidade.
Na década de 30, o judeu era acusado de corromper, econômica e moralmente, a nação germânica. A acusação assentava numa mentira ou na fabricação de uma verdade conveniente. Hoje, se o vilão cinematográfico tem sotaque árabe e se prepara para cometer um atentado, será que a realidade em volta não confirma essa islâmica identidade?
Infelizmente, o Reino Unido tem tido alguma experiência na matéria. E, na semana em que as brigadas pediam censura sobre Hollywood, a polícia britânica prendia nove suspeitos. Supostamente, os nove tencionavam raptar um soldado (muçulmano) regressado do Afeganistão e, suprema gentileza, torturá-lo (devagar) e decapitá-lo (via internet). O gesto não é uma originalidade no Oriente Médio. Também não é uma originalidade pela nacionalidade da vítima potencial (há dois anos, um engenheiro de Liverpool conheceu tratamento igual no Iraque). Mas é uma originalidade no próprio Reino Unido: depois dos atentados em julho de 2005, o rapto e a decapitação do "apóstata" nativo.
Escusado será dizer que os nove eram muçulmanos. E escusado será dizer que, entre a realidade e a ficção, talvez a realidade seja ligeiramente mais ofensiva do que o sotaque de um desenho animado.


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