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MARCELO COELHO
Um inimigo na cabeceira
Renúncia e moderação não embelezam o futuro; ameaçam ser piores do que são
MEU PRIMEIRO despertador
era um modelo para crianças, feito de plástico branco e cor-de-laranja, com um círculo
de personagens da Disney ocupando
o lugar das horas no mostrador. Não
sei que fim levou; qual o ciclone, o
deslizamento de terra, o tsunami
que o varreu da cabeceira.
Lembro-me que tinha também, à
guisa de pêndulo, um minúsculo
Donald em relevo logo em cima das
seis horas. O pato era retratado de
frente, numa atitude de corrida. Parecia assim avançar com seu tique-taque em minha direção, sem sair
nunca do lugar. Não deixa de ser
uma imagem do próprio tempo, que
caminha sempre e não chega a parte
alguma.
Os horrores do ginásio vieram
com outro despertador, muito em
moda na época: era um estojinho
preto, brilhante e funéreo, que
quando aberto se armava numa espécie de prisma triangular (as aulas
de geometria sempre estavam entre
os meus pesadelos), de onde um
mostrador branco e dourado irradiava insônia, atraso, conformismo
e pressa.
Foi um grande progresso passar
para o rádio-relógio digital. Em vez
do tique-taque, apenas a passagem
automática de um número a outro
se faz sem ruído. No meio da noite, o
aparelho está sempre desperto; é
minha segunda consciência, persistindo em mínimas sinapses, enquanto deixo de existir.
E então o rádio toca, transmitindo
notícias alarmantes sobre o aquecimento global. O que fazer? Propostas e esperanças não faltam.
Leio na revista "Época" que meu
rádio-relógio, ligado 24 horas por
dia, é um pequeno vilão no desequilíbrio geral do clima do planeta.
Sim, ele emite suas partículas de
carbono; vai roendo, a cada minuto,
pedacinhos da calota polar. Seus delicados filamentos de cristal líqüido
vermelho rebocam icebergs, aprisionam pássaros migratórios em
tórridas armadilhas, puxam em direção à praia o lençol revolto do
oceano, desfazem geleiras como castelos de cartas.
Tomei a decisão: meu rádio-relógio será desligado. "Sim, mas não já",
dizia Santo Agostinho, em meio aos
prazeres da carne, quando a consciência o instava a seguir os preceitos da virtude cristã. Nunca um rádio-relógio me pareceu tão precioso,
tão útil, tão indispensável. Vou desligá-lo, sim; mas antes tenho de terminar este artigo.
Não desanimo da contribuição
que cada pessoa pode fazer -caminhadas a pé, banhos frios, bicicletas-para diminuir o efeito-estufa.
Como em toda decisão virtuosa, os
benefícios pessoais de tudo isso acabam se fazendo sentir; a gente acaba
ficando feliz com os novos hábitos.
Mas as recompensas só aparecem
depois de já empreendido o sacrifício. Quanto ao prazer, não é apenas
imediato: também o antecipamos
em nossa mente. A renúncia e a moderação não embelezam o futuro;
ameaçam ser sempre piores do que
são, e só melhoram com o passar do
tempo.
Daí, talvez, a eficácia psicológica
da idéia de um paraíso eterno: amplifica-se para além da vida aquilo
que, já em nossa triste condição terrena, é o benefício a médio prazo de
cada prazer abandonado.
Estas considerações vão ficando
excessivamente religiosas -como é
de esperar, aliás, sempre que o fim
do mundo se aproxima.
O último completo fim-de-mundo
de que me lembro apareceu com clareza nos anos 80, quando um filme
chamado "The Day After" imaginava o futuro da Terra depois de um
conflito nuclear.
Curioso que, diante do aquecimento global, as respostas à ameaça
planetária se pareçam com as daquele tempo. Surgem idéias mirabolantes para resolver o problema, que
em tudo se assemelham ao velho
projeto da "Guerra nas Estrelas" da
era Reagan. Em vez de um escudo
espacial para destruir os mísseis soviéticos, cientistas imaginam coisas
como um espelho cósmico, capaz de
afastar parte dos raios solares antes
que atinjam a superfície da Terra.
Nuvens de ácido sulfúrico cristalizado também seriam uma opção.
Entre as pequenas atitudes individuais e os delírios da Nasa, há naturalmente um campo para soluções
intermediárias. Tendo a achar que
só darão certo as que, de duas, uma:
gerarem lucro ou imposto. A imaginação humana nunca falha nesse
âmbito.
Mas meu relógio digital continua
registrando, impassível, o passar do
tempo. É hora de desligá-lo.
PS - Dei errado o endereço do site
de magia no artigo da semana passada. O certo é: www.aprendamagi
cas.com.br.
coelhofsp@uol.com.br
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