São Paulo, quarta-feira, 07 de fevereiro de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MARCELO COELHO

Um inimigo na cabeceira

Renúncia e moderação não embelezam o futuro; ameaçam ser piores do que são

MEU PRIMEIRO despertador era um modelo para crianças, feito de plástico branco e cor-de-laranja, com um círculo de personagens da Disney ocupando o lugar das horas no mostrador. Não sei que fim levou; qual o ciclone, o deslizamento de terra, o tsunami que o varreu da cabeceira.
Lembro-me que tinha também, à guisa de pêndulo, um minúsculo Donald em relevo logo em cima das seis horas. O pato era retratado de frente, numa atitude de corrida. Parecia assim avançar com seu tique-taque em minha direção, sem sair nunca do lugar. Não deixa de ser uma imagem do próprio tempo, que caminha sempre e não chega a parte alguma.
Os horrores do ginásio vieram com outro despertador, muito em moda na época: era um estojinho preto, brilhante e funéreo, que quando aberto se armava numa espécie de prisma triangular (as aulas de geometria sempre estavam entre os meus pesadelos), de onde um mostrador branco e dourado irradiava insônia, atraso, conformismo e pressa.
Foi um grande progresso passar para o rádio-relógio digital. Em vez do tique-taque, apenas a passagem automática de um número a outro se faz sem ruído. No meio da noite, o aparelho está sempre desperto; é minha segunda consciência, persistindo em mínimas sinapses, enquanto deixo de existir.
E então o rádio toca, transmitindo notícias alarmantes sobre o aquecimento global. O que fazer? Propostas e esperanças não faltam. Leio na revista "Época" que meu rádio-relógio, ligado 24 horas por dia, é um pequeno vilão no desequilíbrio geral do clima do planeta.
Sim, ele emite suas partículas de carbono; vai roendo, a cada minuto, pedacinhos da calota polar. Seus delicados filamentos de cristal líqüido vermelho rebocam icebergs, aprisionam pássaros migratórios em tórridas armadilhas, puxam em direção à praia o lençol revolto do oceano, desfazem geleiras como castelos de cartas.
Tomei a decisão: meu rádio-relógio será desligado. "Sim, mas não já", dizia Santo Agostinho, em meio aos prazeres da carne, quando a consciência o instava a seguir os preceitos da virtude cristã. Nunca um rádio-relógio me pareceu tão precioso, tão útil, tão indispensável. Vou desligá-lo, sim; mas antes tenho de terminar este artigo.
Não desanimo da contribuição que cada pessoa pode fazer -caminhadas a pé, banhos frios, bicicletas-para diminuir o efeito-estufa. Como em toda decisão virtuosa, os benefícios pessoais de tudo isso acabam se fazendo sentir; a gente acaba ficando feliz com os novos hábitos.
Mas as recompensas só aparecem depois de já empreendido o sacrifício. Quanto ao prazer, não é apenas imediato: também o antecipamos em nossa mente. A renúncia e a moderação não embelezam o futuro; ameaçam ser sempre piores do que são, e só melhoram com o passar do tempo.
Daí, talvez, a eficácia psicológica da idéia de um paraíso eterno: amplifica-se para além da vida aquilo que, já em nossa triste condição terrena, é o benefício a médio prazo de cada prazer abandonado.
Estas considerações vão ficando excessivamente religiosas -como é de esperar, aliás, sempre que o fim do mundo se aproxima.
O último completo fim-de-mundo de que me lembro apareceu com clareza nos anos 80, quando um filme chamado "The Day After" imaginava o futuro da Terra depois de um conflito nuclear.
Curioso que, diante do aquecimento global, as respostas à ameaça planetária se pareçam com as daquele tempo. Surgem idéias mirabolantes para resolver o problema, que em tudo se assemelham ao velho projeto da "Guerra nas Estrelas" da era Reagan. Em vez de um escudo espacial para destruir os mísseis soviéticos, cientistas imaginam coisas como um espelho cósmico, capaz de afastar parte dos raios solares antes que atinjam a superfície da Terra.
Nuvens de ácido sulfúrico cristalizado também seriam uma opção. Entre as pequenas atitudes individuais e os delírios da Nasa, há naturalmente um campo para soluções intermediárias. Tendo a achar que só darão certo as que, de duas, uma: gerarem lucro ou imposto. A imaginação humana nunca falha nesse âmbito.
Mas meu relógio digital continua registrando, impassível, o passar do tempo. É hora de desligá-lo.
PS - Dei errado o endereço do site de magia no artigo da semana passada. O certo é: www.aprendamagi cas.com.br.


coelhofsp@uol.com.br

Texto Anterior: Crítica: Canal Brasil exibe documentário de falas ensaiadas
Próximo Texto: Música: Madri terá edição do Rock in Rio em 2008
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.