São Paulo, domingo, 07 de março de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MÔNICA BERGAMO

Greg Salibian/Folha Imagem
A auxiliar de administração "Gisele" (no alto, à esq.) chega ao encontro dos Jogadores Anônimos, associação de apoio para viciados em apostas


Jogo de cores

De mãos dadas, 30 jogadores (de bingos, loterias, roleta, corrida de cavalo, de cachorro, caça-níqueis, raspadinha, baralho e jogo do bicho) fazem sua grande aposta numa oração. "Deus, concedei-me serenidade para aceitar as coisas que não posso modificar, coragem para modificar aquelas que posso e sabedoria para perceber a diferença." São 20h da terça-feira, 2, e o grupo se reúne numa sala da paróquia Santa Teresinha, no Itaim. Eles fazem parte do grupo Jogadores Anônimos, ou J.A., associação que ajuda viciados a abandonarem o jogo.

Nesse dia há uma boa notícia a ser compartilhada: "Daniel", 45, e "Lara", 38 [a pedido, os nomes deles e de todos os que aparecem nesta reportagem são fictícios], estão "grávidos" e revelam que esperam um menino.

Os dois se conheceram no J.A. no começo de 2003. "Lara" é uma das primeiras, nesse dia, a falar -cada um dos jogadores tem dez minutos para o seu relato. Ela conta que perdeu o pai cedo e engravidou aos 16 anos. Acredita que isso a empurrou para o jogo.

"Daniel", que trabalha com recursos humanos, está no grupo desde 97. Já teve recaídas, mas há um ano está sem jogar. Conta que perdeu tudo o que tinha em máquinas de videopôquer: um Tempra, um Uno, um Tipo, um terreno, uma casa. Um total, calcula, de R$ 400 mil. Chegou a roubar da empresa em que trabalhava -e hoje está sendo processado.

"Norma", 53, começa seu relato animada. "Da outra vez em que estive aqui, chorei muito. Hoje estou mais feliz." Na reunião anterior ao Carnaval, ela teve de confessar aos colegas que tinha ido a um bingo dias antes. "Se tiver manifestação na avenida Paulista para impedir que os bingos reabram, estarei lá de cartaz na mão", diz, apoiando a medida do governo Lula contra o jogo.

"Norma" conta que, depois de quase 40 anos de dedicação ao marido e aos três filhos, ficou desnorteada quando as "crianças" saíram de casa. Foi com uma amiga a um bingo -primeiro uma, depois duas, depois três vezes por semana, até que passou uma noite fora. O sinal vermelho acendeu de vez depois que o gerente do banco ligou para o marido dela cobrando uma dívida de R$ 14 mil.

De acordo com o psiquiatra Marcelo Fernandes, que trabalha com vítimas do distúrbio na Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), "Norma" é a jogadora típica: mulher de meia-idade, com tempo livre e dinheiro. Segundo ele, o "boom" de bingos no Brasil -eram 130 em 1993 e hoje passam de 1.100- mudou o perfil do jogador patológico. "Há três anos, bingo era a escolha de 60% dos pacientes. Hoje, é de 90%", diz. Os índices de suicídio entre jogadores patológicos são altos: de 37,5% entre mulheres e de 14% entre homens. "Na população normal ele não passa dos 5%", explica Fernandes.

Numa das reuniões da semana passada, a vendedora "Márcia", 35, contou que já tentou se matar batendo com um martelo na própria cabeça, depois de seis meses de jogo descontrolado. Gastava em média R$ 2.000 por dia. Quando o dinheiro acabava, pegava da empresa em que trabalha, contava histórias tristes para pedir empréstimos. "Cheguei a inventar que tinha atropelado uma criança", diz. Ficou seis meses sem falar com o pai. Há oito parou de jogar.

Na mesma reunião, "Geraldo", 42, divide com os colegas a notícia triste: sua mulher acaba de pedir a separação, depois de 18 anos juntos. Dono de uma gráfica em São Paulo, ele chega a gastar R$ 40 mil por mês com apostas. Já acumulou uma dívida de R$ 300 mil e assegura: "Gastar R$ 1.000 em um bingo não leva mais que dez minutos". Geraldo conta que tinha tratamento VIP nos bingos que freqüentava. Bebida e comida eram de graça. "Até mulheres eles me ofereciam."

Às 21h de terça, depois de uma hora de relatos, chega o intervalo, de 15 minutos.

"Marcílio", 64, auxiliar de contabilidade, levou uma torta de maçã para dividir com os colegas. Eles marcam encontros, churrascos e passeios. Comentam a proibição dos bingos. "Não adianta. A gente arranja outro jeito de jogar", diz um deles. Os outros concordam. Quase todos fumam, vício adquirido depois de largarem o jogo. "É uma substituição", explica o psiquiatra Fernandes.

Uma das formas de o J.A. incentivar a abstinência no jogo é a concessão de um brinde simbólico: um chaveiro. Quem fica sem jogar um mês ganha um chaveiro verde; dois meses, amarelo; seis meses, preto; nove, prateado.

"Marcílio" não tem recaídas desde 2000. Jogou durante 50 anos, acumulou dívidas em 26 financeiras e nove bancos. Chegou a dever a 40 agiotas. Foi ameaçado de morte. Hoje não tem nenhum bem em seu nome. Por segurança, tudo está no nome da mulher ou da filha.

"Emílio", dono de um restaurante que vende comida por quilo, participou de uma reunião do J.A. pela primeira vez na quarta-feira. De pé, gaguejando, contou seu drama: "Ganho R$ 3.000 por mês e gasto R$ 4.000 no jogo. Preciso de ajuda". Na semana passada, "Emílio" ganhou o chaveiro vermelho, entregue a quem acaba de chegar ao grupo. O aposentado "Juvenal" recebeu o prateado, pois não joga há nove meses. "Quando cheguei aqui, chorei de tristeza. Hoje, só choro de felicidade", diz "Juvenal".



Texto Anterior: Frase
Próximo Texto: O poderoso chefão
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.