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MÔNICA BERGAMO
Greg Salibian/Folha Imagem
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A auxiliar de administração "Gisele" (no alto, à esq.) chega ao encontro dos Jogadores Anônimos, associação de apoio para viciados em apostas |
Jogo de cores
De mãos dadas, 30 jogadores (de bingos, loterias,
roleta, corrida de cavalo, de cachorro, caça-níqueis, raspadinha, baralho e jogo do bicho) fazem
sua grande aposta numa oração. "Deus, concedei-me
serenidade para aceitar as coisas que não posso modificar, coragem para modificar aquelas que posso e sabedoria para perceber a diferença." São 20h da terça-feira, 2, e o grupo se reúne numa sala da paróquia Santa Teresinha, no Itaim. Eles fazem parte do grupo Jogadores Anônimos, ou J.A., associação que ajuda viciados a abandonarem o jogo.
Nesse dia há uma boa notícia
a ser compartilhada: "Daniel",
45, e "Lara", 38 [a pedido, os nomes deles e de todos os que aparecem nesta reportagem são fictícios], estão "grávidos" e revelam que esperam um menino.
Os dois se conheceram no J.A.
no começo de 2003. "Lara" é
uma das primeiras, nesse dia, a
falar -cada um dos jogadores
tem dez minutos para o seu relato. Ela conta que perdeu o pai
cedo e engravidou aos 16 anos.
Acredita que isso a empurrou
para o jogo.
"Daniel", que trabalha com
recursos humanos, está no grupo desde 97. Já teve recaídas,
mas há um ano está sem jogar.
Conta que perdeu tudo o que tinha em máquinas de videopôquer: um Tempra, um Uno, um
Tipo, um terreno, uma casa.
Um total, calcula, de R$ 400 mil.
Chegou a roubar da empresa
em que trabalhava -e hoje está
sendo processado.
"Norma", 53, começa seu relato animada. "Da outra vez em
que estive aqui, chorei muito.
Hoje estou mais feliz." Na reunião anterior ao Carnaval, ela
teve de confessar aos colegas
que tinha ido a um bingo dias
antes. "Se tiver manifestação na
avenida Paulista para impedir
que os bingos reabram, estarei
lá de cartaz na mão", diz,
apoiando a medida do governo
Lula contra o jogo.
"Norma" conta que, depois de
quase 40 anos de dedicação ao
marido e aos três filhos, ficou
desnorteada quando as "crianças" saíram de casa. Foi com
uma amiga a um bingo -primeiro uma, depois duas, depois
três vezes por semana, até que
passou uma noite fora. O sinal
vermelho acendeu de vez depois
que o gerente do banco ligou
para o marido dela cobrando
uma dívida de R$ 14 mil.
De acordo com o psiquiatra Marcelo Fernandes, que trabalha com vítimas do distúrbio na Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), "Norma" é a jogadora típica: mulher de meia-idade, com tempo livre e dinheiro. Segundo ele, o "boom" de bingos no Brasil -eram 130 em 1993 e hoje passam de 1.100- mudou o perfil do jogador patológico. "Há três anos, bingo era a escolha de 60% dos pacientes. Hoje, é de 90%", diz. Os índices de suicídio entre jogadores patológicos são altos: de 37,5% entre mulheres e de 14% entre homens. "Na população normal ele não passa dos 5%", explica Fernandes.
Numa das reuniões da semana passada, a vendedora "Márcia", 35, contou que já tentou se matar batendo com um martelo na própria cabeça, depois de seis meses de jogo descontrolado. Gastava em média R$ 2.000 por dia. Quando o dinheiro acabava, pegava da empresa em que trabalha, contava histórias tristes para pedir empréstimos. "Cheguei a inventar que tinha atropelado uma criança", diz. Ficou seis meses sem falar com o pai. Há oito parou de jogar.
Na mesma reunião, "Geraldo", 42, divide com os colegas a notícia triste: sua mulher acaba de pedir a separação, depois de 18 anos juntos. Dono de uma gráfica em São Paulo, ele chega a gastar R$ 40 mil por mês com apostas. Já acumulou uma dívida de R$ 300 mil e assegura: "Gastar R$ 1.000 em um bingo não leva mais que dez minutos". Geraldo conta que tinha tratamento VIP nos bingos que freqüentava. Bebida e comida eram de graça. "Até mulheres eles me ofereciam."
Às 21h de terça, depois de uma hora de relatos, chega o intervalo, de 15 minutos.
"Marcílio", 64, auxiliar de
contabilidade, levou uma torta
de maçã para dividir com os colegas. Eles marcam encontros,
churrascos e passeios. Comentam a proibição dos bingos.
"Não adianta. A gente arranja
outro jeito de jogar", diz um deles. Os outros concordam. Quase todos fumam, vício adquirido depois de largarem o jogo. "É
uma substituição", explica o
psiquiatra Fernandes.
Uma das formas de o J.A. incentivar a abstinência no jogo é
a concessão de um brinde simbólico: um chaveiro. Quem fica
sem jogar um mês ganha um
chaveiro verde; dois meses,
amarelo; seis meses, preto; nove, prateado.
"Marcílio" não tem recaídas
desde 2000. Jogou durante 50
anos, acumulou dívidas em 26
financeiras e nove bancos. Chegou a dever a 40
agiotas. Foi ameaçado de
morte. Hoje não tem nenhum bem em seu nome.
Por segurança, tudo está no
nome da mulher ou da filha.
"Emílio", dono de um restaurante que vende comida por
quilo, participou de uma reunião do J.A. pela primeira vez na
quarta-feira. De pé, gaguejando,
contou seu drama: "Ganho R$
3.000 por mês e gasto R$ 4.000
no jogo. Preciso de ajuda". Na
semana passada, "Emílio" ganhou o chaveiro vermelho, entregue a quem acaba de chegar
ao grupo. O aposentado "Juvenal" recebeu o prateado, pois
não joga há nove meses. "Quando cheguei aqui, chorei de tristeza. Hoje, só choro de felicidade", diz "Juvenal".
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