São Paulo, terça-feira, 07 de março de 2006

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FERNANDO BONASSI

Balanço de Carnaval

Camaradas e companheiros, amigos da espontaneidade, comparsas da euforia desta esplendorosa nacionalidade! Se o Carnaval é a manifestação gloriosa de nossa expressividade, convém refletirmos sobre a qualidade da apresentação, para que os erros cometidos nessa competição possam ser corrigidos antes de repetidos em maior desproporção.
Considerando que todos participaram da escolha do tema, votaram num samba que se dizia inédito e acreditaram que uma nova história se tramava, nem vamos falar da ingenuidade desse enredo mal contado, em que reis e dragões se juntam para jantar as riquezas dos palácios enquanto os súditos otários sobrevivem com salários de arrepiar os seguranças dos empresários...
Nota: os empresários estiveram presentes, doando quantias em espécie e naquele tipo de silêncio que protege quem esquece o que se deu. Só assim, graças à generosidade de estranhos, pode esta comunidade principiar sua festividade!
Alertamos para o perigo dessas diversões estarem nas mãos dos patrões, que passam a nos controlar o desempenho das emoções...
No que diz respeito à organização, nossa concentração deixava a desejar. Poucos passistas sabiam seu lugar. As alas estavam cansadas de fritar na fila para tudo o que quisessem arranjar e se armavam em favelas de barracas, esperando sentadas por serem atendidas. A diretoria fingia que não via, talvez para não ter que trabalhar como polícia em clima de folia. Ninguém quer estragar o prazer de ninguém; especialmente enquanto se tem tão pouco em quatro dias, perto dos muitos meses em que nos danamos como reses na preparação do evento.
Não tivemos tempo! Ao recebermos o sinal para partir, ficamos nos perguntando para onde ir, de forma que o atraso tornou-se nosso parceiro justamente quando víamos que o caminho a seguir era adiante.
A comissão de frente, errante e irresponsável, estacou na faixa amarela como se fosse vermelha e proibiu a expansão de nossa alegria mais iluminista. Os capitalistas arrivistas, no calor da ferveção, não tinham vergonha de vender estatais lucrativas e ilusões decadentes, se abraçando contentes com as modelos contratadas para dar em alguma coisa, motel ou casa, depois de dançarem indiferentes com a leseira que mata no batente da quarta (observação: a quarta-feira foi de cinzas mesmo, e a maioria teve que limpá-las ou bani-las para debaixo dos tapetes e bueiros a fim chegarem inteiros ao final de fevereiro).
No momento em que finalmente avançamos para a avenida, até parecia março! No mormaço que desceu, tínhamos tanto medo de tomar pé do que aconteceu que hesitávamos entre nos divertir e nos exibir, deixando de lado o prazer de rebolar para tentar agradar quem não tinha nada com o riscado. As baianas, por seu lado, jogavam para a platéia, que era escocesa, galesa ou irlandesa, sei lá, mas que mal sabia sambar, como essas princesas inglesas que vêm fazer o bem e apreciar as singelezas de nossas mazelas.
A bateria se acabou logo no começo, martelando os surdos que se faziam de bobos para um ritmo que queria dormir e não sentir a vibração. Só as madrinhas lubrificadas tiveram peito para avaliar o descaso esplêndido no seio daquela confusão!
Como era de se prever na ocasião, certas alegorias não tiveram condição de ganhar a avenida; quer porque fossem grandiosas demais ou planejadas de menos, enroscando em fios de alta tensão antes que pudessem ser movimentadas pelas mãos calejadas da velha guarda de pijama.
A paralisia de nossa posição ficava clara a se ver a cara de desolação com que nos olhávamos os adereços, desconfiados todos uns dos outros, com as bolsas e os preços junto aos corpos, como se os melhores valores pudessem ser comprados por um tostão ou tomados num puxão, deixando o cordão em frangalhos e os receptadores milionários.
Parecíamos dispersos, repetindo certos lances ultrapassados num conservadorismo cheio de malabarismos que não mostravam a que vinham nem desatolavam as moitas da insatisfação. Preferimos sair pulando a valer, do que perceber e raciocinar na evolução dos acontecimentos. A coreografia se transformou num tormento e logo foi esquecida, como tudo o que disseram, escreveram ou ensaiaram antes. Aprendemos essa dura lição, mas não possuíamos o jogo de cintura necessário para ajeitar a situação, já que só uns poucos dispunham de muitas folgas, consciência ou rendas para fechar as contas e apreciar a badalação...
Por falar nisso, o vazio das arquibancadas deu o que pensar, embora houvesse tamanho barulho nos camarotes que o desfile foi prejudicado por interesses escusos às escolas e afeitos às celebridades.
Cantar até que cantamos, mas sem a energia e a vivacidade que se exige de uma escola do nosso porte. A melodia era melada e a sorte de muitos carros não sobreviveu ao peso dos destaques, que ruíram diante das claques ajuntadas para registrar o seu sucesso (colheram infortúnios - e algum dinheiro - pela publicidade que fizeram).
As alas comercializadas com os turistas tiveram a animação típica de uma festa de encomenda.
A harmonia fez lembrar a travessia de mil vietnãs, ou haitis... mas era aqui!
Mestre-sala e porta-bandeira giraram tanto que ficaram tontos, caindo no ridículo diante dos jurados; os mesmos que, em última instância, apreciavam as fantasias mais malucas e sem sentido, conferindo-lhes liminares, prêmios e pensões!
Por essas e outras desrazões, tudo depende do juízo que fizermos de nós próprios...
Qualquer divergência, a gente acerta por fora...
Por hora convocamos uma reunião com a presidência para debatermos com vossa excelência a abrangência da indigência de nossa agremiação.


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