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FERNANDO BONASSI
Balanço de Carnaval
Camaradas e companheiros, amigos da espontaneidade, comparsas da euforia desta
esplendorosa nacionalidade! Se o
Carnaval é a manifestação gloriosa de nossa expressividade,
convém refletirmos sobre a qualidade da apresentação, para que
os erros cometidos nessa competição possam ser corrigidos antes
de repetidos em maior desproporção.
Considerando que todos participaram da escolha do tema, votaram num samba que se dizia
inédito e acreditaram que uma
nova história se tramava, nem
vamos falar da ingenuidade desse
enredo mal contado, em que reis e
dragões se juntam para jantar as
riquezas dos palácios enquanto os
súditos otários sobrevivem com
salários de arrepiar os seguranças
dos empresários...
Nota: os empresários estiveram
presentes, doando quantias em
espécie e naquele tipo de silêncio
que protege quem esquece o que
se deu. Só assim, graças à generosidade de estranhos, pode esta comunidade principiar sua festividade!
Alertamos para o perigo dessas
diversões estarem nas mãos dos
patrões, que passam a nos controlar o desempenho das emoções...
No que diz respeito à organização, nossa concentração deixava
a desejar. Poucos passistas sabiam seu lugar. As alas estavam
cansadas de fritar na fila para tudo o que quisessem arranjar e se
armavam em favelas de barracas,
esperando sentadas por serem
atendidas. A diretoria fingia que
não via, talvez para não ter que
trabalhar como polícia em clima
de folia. Ninguém quer estragar o
prazer de ninguém; especialmente enquanto se tem tão pouco em
quatro dias, perto dos muitos meses em que nos danamos como reses na preparação do evento.
Não tivemos tempo! Ao recebermos o sinal para partir, ficamos
nos perguntando para onde ir, de
forma que o atraso tornou-se nosso parceiro justamente quando
víamos que o caminho a seguir
era adiante.
A comissão de frente, errante e
irresponsável, estacou na faixa
amarela como se fosse vermelha e
proibiu a expansão de nossa alegria mais iluminista. Os capitalistas arrivistas, no calor da ferveção, não tinham vergonha de
vender estatais lucrativas e ilusões decadentes, se abraçando
contentes com as modelos contratadas para dar em alguma coisa,
motel ou casa, depois de dançarem indiferentes com a leseira
que mata no batente da quarta
(observação: a quarta-feira foi de
cinzas mesmo, e a maioria teve
que limpá-las ou bani-las para
debaixo dos tapetes e bueiros a
fim chegarem inteiros ao final de
fevereiro).
No momento em que finalmente avançamos para a avenida, até
parecia março! No mormaço que
desceu, tínhamos tanto medo de
tomar pé do que aconteceu que
hesitávamos entre nos divertir e
nos exibir, deixando de lado o
prazer de rebolar para tentar
agradar quem não tinha nada
com o riscado. As baianas, por seu
lado, jogavam para a platéia, que
era escocesa, galesa ou irlandesa,
sei lá, mas que mal sabia sambar,
como essas princesas inglesas que
vêm fazer o bem e apreciar as singelezas de nossas mazelas.
A bateria se acabou logo no começo, martelando os surdos que
se faziam de bobos para um ritmo
que queria dormir e não sentir a
vibração. Só as madrinhas lubrificadas tiveram peito para avaliar o descaso esplêndido no seio
daquela confusão!
Como era de se prever na ocasião, certas alegorias não tiveram
condição de ganhar a avenida;
quer porque fossem grandiosas
demais ou planejadas de menos,
enroscando em fios de alta tensão
antes que pudessem ser movimentadas pelas mãos calejadas
da velha guarda de pijama.
A paralisia de nossa posição ficava clara a se ver a cara de desolação com que nos olhávamos os
adereços, desconfiados todos uns
dos outros, com as bolsas e os preços junto aos corpos, como se os
melhores valores pudessem ser
comprados por um tostão ou tomados num puxão, deixando o
cordão em frangalhos e os receptadores milionários.
Parecíamos dispersos, repetindo
certos lances ultrapassados num
conservadorismo cheio de malabarismos que não mostravam a
que vinham nem desatolavam as
moitas da insatisfação. Preferimos sair pulando a valer, do que
perceber e raciocinar na evolução
dos acontecimentos. A coreografia se transformou num tormento
e logo foi esquecida, como tudo o
que disseram, escreveram ou ensaiaram antes. Aprendemos essa
dura lição, mas não possuíamos o
jogo de cintura necessário para
ajeitar a situação, já que só uns
poucos dispunham de muitas folgas, consciência ou rendas para
fechar as contas e apreciar a badalação...
Por falar nisso, o vazio das arquibancadas deu o que pensar,
embora houvesse tamanho barulho nos camarotes que o desfile foi
prejudicado por interesses escusos
às escolas e afeitos às celebridades.
Cantar até que cantamos, mas
sem a energia e a vivacidade que
se exige de uma escola do nosso
porte. A melodia era melada e a
sorte de muitos carros não sobreviveu ao peso dos destaques, que
ruíram diante das claques ajuntadas para registrar o seu sucesso
(colheram infortúnios - e algum
dinheiro - pela publicidade que fizeram).
As alas comercializadas com os
turistas tiveram a animação típica de uma festa de encomenda.
A harmonia fez lembrar a travessia de mil vietnãs, ou haitis...
mas era aqui!
Mestre-sala e porta-bandeira
giraram tanto que ficaram tontos, caindo no ridículo diante dos
jurados; os mesmos que, em última instância, apreciavam as fantasias mais malucas e sem sentido, conferindo-lhes liminares,
prêmios e pensões!
Por essas e outras desrazões, tudo depende do juízo que fizermos
de nós próprios...
Qualquer divergência, a gente
acerta por fora...
Por hora convocamos uma reunião com a presidência para debatermos com vossa excelência a
abrangência da indigência de
nossa agremiação.
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