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Pirandello mostra a realidade como noção subjetiva
DA REPORTAGEM LOCAL
É instrutivo que "O Velho
Deus" e "Um, Nenhum e
Cem Mil" ganhem traduções brasileiras quase ao mesmo tempo.
"O Velho Deus", publicado pela
Berlendis & Vertecchia, é o primeiro tomo de "Novelas para um
Ano", projeto a que Luigi Pirandello (1867-1936) dedicou seus últimos 14 anos de vida. Para compor o que seria sua obra definitiva
-24 volumes reunindo tantas
novelas quanto os dias do calendário- criou narrativas inéditas
e reescreveu outras tantas. Chegou a organizar 15 dos tomos.
Este primeiro volume reúne
narrativas escritas entre 1894 e
1903, as quais, na maior parte,
guardam traços do verismo do século 19 -e algum tom de fábula,
apesar de Pirandello ter optado
por chamá-las de novelas.
Que não se engane o leitor: tais
características não diminuem o
valor da obra. Pirandello já era então um grande escritor, e o livro
nos faz ansiar pelo resto de seu
"calendário literário". Em duas
das 12 novelas de "O Velho Deus",
porém, o autor nos dá indícios do
vanguardismo que o consagraria.
Aqui, cabe atentar para datas. É
fato que a loucura de sua mulher,
Antonietta (após a destruição das
minas de enxofre que garantiam a
riqueza da família), teve um impacto na obra de Pirandello. Mas
isso foi depois que as citadas novelas -"Quando Eu Era Louco..." (1902) e "A Desgraça de Pitágoras" (1903)- já existiam.
Tal detalhe nos impede de atribuir a fatos biográficos a presença, nestes dois textos excepcionais, de elementos que construiriam a fama e importância do autor: a exploração do limite entre
razão e insanidade, do conflito do
eu consigo mesmo e com o outro.
De ambas também é possível
pinçar estruturas, idéias e traços
de estilo de "Um, Nenhum e Cem
Mil", que sai pela Cosac & Naify.
Se as "Novelas para um Ano"
foram o meio que Pirandello imaginou de passar a limpo a prosa
com que tantas vezes alimentou
sua dramaturgia, "Um, Nenhum
e Cem Mil" é, em mais de um aspecto, seu romance definitivo
-e, por sua vez, se nutre das descobertas que ele traria do palco.
O livro foi publicado primeiro
em uma revista, entre 1925 e 1926.
Iniciado cerca de 15 anos antes,
quando Pirandello ingressava no
teatro, foi sendo urdido com elementos de sua dramaturgia
-notam-se ecos, por exemplo,
de "Assim É se lhe Parece".
Atando as pontas, "Um, Nenhum e Cem Mil" se liga às duas
novelas citadas. Pela estrutura em
subtítulos que dialogam com os
capítulos, se parece com "Quando
Eu Era Louco...". Já na questão do
reconhecimento/estranhamento,
mote do romance, nos lembra "A
Desgraça de Pitágoras".
A depuração do estilo e a síntese
que o livro alcança do universo temático do autor talvez expliquem
porque Pirandello não escreveria
outro romance.
Passemos à trama.
Ao notar, pela primeira vez,
alertado por sua mulher, que seu
nariz pendia para a direita, o banqueiro Vitangelo Moscarda se dá
conta de que ninguém é para os
outros tal e qual se vê no espelho.
E ninguém é para você como é para mim ou para um terceiro. Somos um e 100 mil -e, por isso
mesmo, nenhum.
Num processo doloroso, confundido pelos outros personagens com delírio, Moscarda tenta
convencer o leitor -a quem trata
no plural, porque ele, sendo um,
também é vários- de sua tese sobre a identidade. Com racionalidade e ironia peculiares, Pirandello nos conduz ao ponto em que,
pela negação de si -nome, figura, posição social-, Moscarda
atinge uma espécie de ascese.
Os atos calculadamente disparatados do protagonista levam os
outros personagens a crerem cada vez mais em suas verdades pessoais. As quais, vistas da perspectiva em que Pirandello situa o leitor, não passam de embaçadas
noções subjetivas.
(FRANCESCA ANGIOLILLO)
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