São Paulo, sábado, 07 de abril de 2001

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Pirandello mostra a realidade como noção subjetiva

DA REPORTAGEM LOCAL

É instrutivo que "O Velho Deus" e "Um, Nenhum e Cem Mil" ganhem traduções brasileiras quase ao mesmo tempo.
"O Velho Deus", publicado pela Berlendis & Vertecchia, é o primeiro tomo de "Novelas para um Ano", projeto a que Luigi Pirandello (1867-1936) dedicou seus últimos 14 anos de vida. Para compor o que seria sua obra definitiva -24 volumes reunindo tantas novelas quanto os dias do calendário- criou narrativas inéditas e reescreveu outras tantas. Chegou a organizar 15 dos tomos.
Este primeiro volume reúne narrativas escritas entre 1894 e 1903, as quais, na maior parte, guardam traços do verismo do século 19 -e algum tom de fábula, apesar de Pirandello ter optado por chamá-las de novelas.
Que não se engane o leitor: tais características não diminuem o valor da obra. Pirandello já era então um grande escritor, e o livro nos faz ansiar pelo resto de seu "calendário literário". Em duas das 12 novelas de "O Velho Deus", porém, o autor nos dá indícios do vanguardismo que o consagraria.
Aqui, cabe atentar para datas. É fato que a loucura de sua mulher, Antonietta (após a destruição das minas de enxofre que garantiam a riqueza da família), teve um impacto na obra de Pirandello. Mas isso foi depois que as citadas novelas -"Quando Eu Era Louco..." (1902) e "A Desgraça de Pitágoras" (1903)- já existiam.
Tal detalhe nos impede de atribuir a fatos biográficos a presença, nestes dois textos excepcionais, de elementos que construiriam a fama e importância do autor: a exploração do limite entre razão e insanidade, do conflito do eu consigo mesmo e com o outro.
De ambas também é possível pinçar estruturas, idéias e traços de estilo de "Um, Nenhum e Cem Mil", que sai pela Cosac & Naify.
Se as "Novelas para um Ano" foram o meio que Pirandello imaginou de passar a limpo a prosa com que tantas vezes alimentou sua dramaturgia, "Um, Nenhum e Cem Mil" é, em mais de um aspecto, seu romance definitivo -e, por sua vez, se nutre das descobertas que ele traria do palco.
O livro foi publicado primeiro em uma revista, entre 1925 e 1926. Iniciado cerca de 15 anos antes, quando Pirandello ingressava no teatro, foi sendo urdido com elementos de sua dramaturgia -notam-se ecos, por exemplo, de "Assim É se lhe Parece".
Atando as pontas, "Um, Nenhum e Cem Mil" se liga às duas novelas citadas. Pela estrutura em subtítulos que dialogam com os capítulos, se parece com "Quando Eu Era Louco...". Já na questão do reconhecimento/estranhamento, mote do romance, nos lembra "A Desgraça de Pitágoras".
A depuração do estilo e a síntese que o livro alcança do universo temático do autor talvez expliquem porque Pirandello não escreveria outro romance.
Passemos à trama.
Ao notar, pela primeira vez, alertado por sua mulher, que seu nariz pendia para a direita, o banqueiro Vitangelo Moscarda se dá conta de que ninguém é para os outros tal e qual se vê no espelho. E ninguém é para você como é para mim ou para um terceiro. Somos um e 100 mil -e, por isso mesmo, nenhum.
Num processo doloroso, confundido pelos outros personagens com delírio, Moscarda tenta convencer o leitor -a quem trata no plural, porque ele, sendo um, também é vários- de sua tese sobre a identidade. Com racionalidade e ironia peculiares, Pirandello nos conduz ao ponto em que, pela negação de si -nome, figura, posição social-, Moscarda atinge uma espécie de ascese.
Os atos calculadamente disparatados do protagonista levam os outros personagens a crerem cada vez mais em suas verdades pessoais. As quais, vistas da perspectiva em que Pirandello situa o leitor, não passam de embaçadas noções subjetivas.
(FRANCESCA ANGIOLILLO)


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