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Como eu queria estar só (de "Um, Nenhum e Cem Mil")
"O aspecto trágico da vida está precisando nessa lei a que o homem é forçado a obedecer, a lei que o obriga a ser um. Cada qual pode ser um, nenhum, 100 mil, mas a escolha é um imperativo necessário."
Eu queria estar só de um modo inusitado, totalmente novo. O oposto do que
vocês pensam: isto é, sem mim e, portanto, com um estranho por perto.
Isso já lhes parece um primeiro sinal de loucura?
Talvez porque não tenham refletido bem.
Pode ser que a loucura já estivesse em mim,
não nego, mas peço que acreditem que o único
modo de estar realmente só é este que lhes digo.
A solidão nunca está com você, ela está sempre sem você e, portanto, ela só é possível na
presença de algo estranho, lugar ou pessoa que
seja, que o ignore completamente e que você
desconheça totalmente, de tal modo que a sua
vontade e o seu sentimento fiquem suspensos
e perdidos numa incerteza angustiosa e, cessando toda afirmação de sua pessoa, cesse
também a própria intimidade de sua consciência. A verdadeira solidão está em um lugar
que vive por si e que para você não tem nem
voz nem feição, onde o estranho é você.
Assim eu queria estar só. Sem mim. Quero
dizer, sem aquele "mim" que eu já conhecia ou
pensava conhecer. Sozinho com um certo estranho que eu já sentia obscuramente não poder afastar para longe, que era eu mesmo: o estranho inseparável de mim.
Na época eu percebia apenas um! E mesmo
esse um, ou a necessidade que eu sentia de ficar só com ele, de colocá-lo na minha frente
para conhecê-lo melhor e conversar um pouco
com ele, me perturbava demais, provocando
uma sensação misturada de asco e de assombro.
Se para os outros eu não era o que até agora
havia pensado que era para mim, quem eu era?
Vivendo, eu nunca havia pensado na forma
do meu nariz; no tamanho, se grande ou pequeno; ou na cor dos meus olhos; na largura
ou estreiteza da minha testa, e assim por diante. Aquele era o meu nariz, aqueles, os meus
olhos, aquela, minha testa: coisas inseparáveis
de mim, nas quais, entregue a meus afazeres,
absorvido por meus pensamentos, abandonado a meus sentimentos, eu não podia pensar.
Mas agora pensava:
"E os outros? Os outros não estão dentro de
mim. Para os outros que me vêem de fora, as
minhas idéias e os meus sentimentos têm um
nariz. O meu nariz. E têm um par de olhos, os
meus olhos, que eu não vejo e que eles vêem.
Que relação há entre as minhas idéias e o meu
nariz? Para mim, nenhuma. Eu não penso com
o nariz -nem me importo com ele, ao pensar.
Mas... e os outros? Os outros que não podem
ver dentro de mim as minhas idéias e que
vêem de fora o meu nariz? Para os outros, as
minhas idéias e o meu nariz têm tanta relação
que, suponhamos, se elas fossem muito sérias
e ele, por sua forma, muito cômico, todos começariam a rir."
Prosseguindo nessa linha, mergulhei neste
outro problema; que eu não podia, vivendo,
representar a mim mesmo nos atos da minha
vida, ver-me como os outros me viam, colocar-me diante de meu corpo e vê-lo viver como se fosse o de um outro. Quando me punha
diante de um espelho, acontecia uma espécie
de sequestro em mim, toda espontaneidade
acabava, cada gesto meu me parecia fictício ou
postiço.
Eu não podia me ver vivendo.
Pude ter a prova disso poucos dias depois,
quando, caminhando e falando com o amigo
Firbo, fui, como se diz, assaltado por uma impressão ao surpreender-me de repente num
espelho que dava para a rua, o qual eu não havia percebido antes. Aquela impressão não
durou mais que um instante, sendo logo seguida por aquele sequestro, com o fim da espontaneidade e o início do estudo. Primeiramente não reconheci a mim mesmo. Tive a
impressão de um estranho que passasse pela
rua, conversando. Parei. Devia estar muito pálido. Firbo me perguntou:
- O que você tem?
- Nada -eu disse. E, invadido por um estranho assombro misturado com asco, pensei
comigo mesmo:
"Aquela imagem entrevista de relance era
mesmo a minha? Eu sou mesmo assim, de fora, quando -vivendo- não me penso? Então
para os outros eu sou aquele estranho surpreendido no espelho: aquele, e não mais eu
tal como me conheço: aquele ali, que eu, de
primeira, ao notá-lo, não reconheci. Eu sou
aquele estranho que não posso ver vivendo
nem conhecer senão assim, num momento de
distração. Um estranho que só os outros podem ver e conhecer, não eu".
E desde então me fixei neste propósito desesperado: de perseguir aquele estranho que
estava em mim e que me escapava, que eu não
podia fixar diante de um espelho porque logo
se transformava em mim tal como eu me conhecia -aquele um que vivia pelos outros e
que eu não podia conhecer, que os outros
viam vivendo, e eu não. Também eu queria vê-lo e conhecê-lo tal como os outros o viam e conheciam.
Repito: ainda acreditava que esse estranho
fosse um só, um só para todos, assim como
pensava ser um só para mim. Mas logo esse
meu drama atroz se complicou com a descoberta dos 100 mil Moscardas que eu era não só
para os outros, mas também para mim, todos
com este mesmo nome de Moscarda, tão feio
que chega a doer, e todos dentro deste meu pobre corpo que era também um só, um e nenhum, ai de mim, que eu punha diante do espelho e mirava fixo e imóvel nos olhos, abolindo nele todo sentimento e toda vontade.
Quando meu drama se complicou a esse
ponto, aí começaram as minhas incríveis loucuras.
Trecho do capítulo 4 do Livro 1 de "Um, Nenhum e Cem
Mil", romance editado pela Cosac & Naify
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