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Crítica/poesia
Corsaletti elabora linguagem de Bandeira e de Drummond
NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
A grandeza de Manuel
Bandeira, Carlos
Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto
fez com que parte da crítica literária, paradoxalmente, reduzisse a produção posterior a
eles a uma poesia bandeiriana,
drummondiana ou cabralina. A
primeira seria mais simples, a
segunda, mais especulativa e a
terceira, mais construtiva. E assim os poetas estariam sempre
filiados a alguma tradição. É
uma pena. A beleza urgente e
inominável dos três poetas deveria servir para que a crítica
expandisse os seus horizontes
de interpretação, compreendendo que a arte se constrói
também a partir de reconstruções e assimilações.
O último livro de Fabrício
Corsaletti incorpora e digere
muito da linguagem de Bandeira e de Drummond. Alia brevidade, simplicidade e melancolia a um olhar que é também
distante. Uma proximidade hesitante, uma sensualidade que,
na hora "h", parece arrepender-se do contato e voltar-se
para um passado que, à moda
de Bandeira, poderia ter sido e
que não foi, ou para um lugar
pré-poético e pré-lingüístico.
Não é à toa que se usa tanto o
pretérito imperfeito -a cidade
era maior, saía da panela um
cheiro forte de passado, antes
as águas libertavam- na procura de um passado real, mas que
também é estritamente poético
e, por isso, irrecuperável.
Como alcançar um instante
primeiro ou último, quando até
a poesia é desnecessária, e dizê-lo com palavras? Esse é um dos
grandes problemas dos poetas.
Corsaletti também anda neste
fio: perdêramos a linguagem;
não estou escrevendo; ficarei
no limite ou arrebento? E decididamente, não se decide. Fica
aí justamente uma das chaves
para a novidade de sua poesia.
À assimilação de Bandeira e de
Drummond, Fabrício acrescenta a angústia desta consciência de linhagem, a indecisão entre pertencer ao mundo
das palavras e não pertencer a
nada.
O dístico "antes as águas libertavam/ não os olhos de açude" sintetiza a melancolia dominante: os "olhos de açude"
atuais estão cheios de água,
mas ela não pode mais correr
como antes. Quando é que as
águas corriam libertas? Talvez
na infância, antes da consciência sobre a existência do açude.
Mas, uma vez sabedores de
nossas represas, é impossível
permitir que o fluxo se solte outra vez. Se já fui cavalo por que
tapo os olhos? Quem tirou a sonoridade dos meus cascos?
É na pergunta sobre a impossibilidade de falar que está a fala dessa poesia, por onde se podem ouvir os cascos dos cavalos, os bois comendo capim, os
tomates fervendo na panela.
ESTUDOS PARA O SEU CORPO
Autor: Fabrício Corsaletti
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 36 (168 págs.)
Avaliação: ótimo
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