São Paulo, sábado, 07 de abril de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Crítica/poesia

Corsaletti elabora linguagem de Bandeira e de Drummond

NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

A grandeza de Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto fez com que parte da crítica literária, paradoxalmente, reduzisse a produção posterior a eles a uma poesia bandeiriana, drummondiana ou cabralina. A primeira seria mais simples, a segunda, mais especulativa e a terceira, mais construtiva. E assim os poetas estariam sempre filiados a alguma tradição. É uma pena. A beleza urgente e inominável dos três poetas deveria servir para que a crítica expandisse os seus horizontes de interpretação, compreendendo que a arte se constrói também a partir de reconstruções e assimilações.
O último livro de Fabrício Corsaletti incorpora e digere muito da linguagem de Bandeira e de Drummond. Alia brevidade, simplicidade e melancolia a um olhar que é também distante. Uma proximidade hesitante, uma sensualidade que, na hora "h", parece arrepender-se do contato e voltar-se para um passado que, à moda de Bandeira, poderia ter sido e que não foi, ou para um lugar pré-poético e pré-lingüístico.
Não é à toa que se usa tanto o pretérito imperfeito -a cidade era maior, saía da panela um cheiro forte de passado, antes as águas libertavam- na procura de um passado real, mas que também é estritamente poético e, por isso, irrecuperável.
Como alcançar um instante primeiro ou último, quando até a poesia é desnecessária, e dizê-lo com palavras? Esse é um dos grandes problemas dos poetas. Corsaletti também anda neste fio: perdêramos a linguagem; não estou escrevendo; ficarei no limite ou arrebento? E decididamente, não se decide. Fica aí justamente uma das chaves para a novidade de sua poesia.
À assimilação de Bandeira e de Drummond, Fabrício acrescenta a angústia desta consciência de linhagem, a indecisão entre pertencer ao mundo das palavras e não pertencer a nada.
O dístico "antes as águas libertavam/ não os olhos de açude" sintetiza a melancolia dominante: os "olhos de açude" atuais estão cheios de água, mas ela não pode mais correr como antes. Quando é que as águas corriam libertas? Talvez na infância, antes da consciência sobre a existência do açude.
Mas, uma vez sabedores de nossas represas, é impossível permitir que o fluxo se solte outra vez. Se já fui cavalo por que tapo os olhos? Quem tirou a sonoridade dos meus cascos? É na pergunta sobre a impossibilidade de falar que está a fala dessa poesia, por onde se podem ouvir os cascos dos cavalos, os bois comendo capim, os tomates fervendo na panela.


ESTUDOS PARA O SEU CORPO
Autor:
Fabrício Corsaletti
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 36 (168 págs.)
Avaliação: ótimo


Texto Anterior: Hisham Matar contrapõe pureza e brutalidade em meio à ditadura líbia
Próximo Texto: Obra apresenta Jesus como "100% político"
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.