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"O risco é virarmos um gueto no cinema"
João Moreira Salles compara documentaristas a vietcongues
Para diretor de "Santiago", documentaristas tendem a despertar sentimento de "piedade'; "Somos os primos pobres do cinema"
DA REPORTAGEM LOCAL
João Moreira Salles, um dos
mais prestigiados documentaristas brasileiros, autor dos filmes "Notícias de uma Guerra
Particular", "Nelson Freire" e
"Santiago", não faz parte do coro otimista que reúne-se em
torno do gênero no Brasil.
Acha que os diretores brasileiros correm o risco de transformar a dificuldade de chegar
a um público mais amplo numa
espécie de virtude.
Leia, a seguir, a entrevista
que o cineasta, também produtor de "Uma Noite em 67", que
abrirá o Festival em São Paulo,
concedeu à Folha.
(APS)
FOLHA - Com a produção, explodiram as teses e os livros sobre documentários, mas eles continuam ausentes da TV e, raras vezes, fazem
mais de 25 mil espectadores. O documentário estaria destinado a uma
certa marginalidade?
JOÃO MOREIRA SALLES - Coutinho
tem uma boa frase sobre isso:
sempre ocupamos um nicho, o
risco é virarmos um gueto. Historicamente o documentário
sempre foi visto por pouca gente. É natural que seja assim, e
isso não nos desmerece frente à
ficção, e muito menos nos torna superiores a ela, como querem alguns, invocando a pureza
do pouco dinheiro, do filme que
não se sujeita aos compromissos do comércio.
Essa superioridade moral é
abominável. Todo documentarista deve saber que provavelmente será visto por uma fração do público de ficção, mas
não pode fazer disso um galardão de virtude.
Na hora em que ele se compraz com esse estado de coisas,
dá mais um passo para transformar o documentário num
gueto cheio de bobos soberbos
que dizem "só quero que me assista quem merece meu filme".
Precisamos desejar sempre o
que provavelmente nunca teremos. Seria extraordinário se
pudéssemos estar na TV, e deveríamos desejar isso, ainda
que seja cada vez mais difícil.
FOLHA - A seu ver, essa quantidade
de estreias no cinema é, de maneira
geral, boa para o documentário ou
esse possível excesso acabaria por
confundir o espectador? Em outros
países, alguns desses filmes iriam direto para a TV?
SALLES - Sem dúvida existe o fetiche do cinema. Nem todo documentário precisa da tela
grande e da sala escura. Para o
espectador não muda nada,
pois a mesma coisa vale para a
ficção e nem por isso o público
está confuso. O problema é que,
paradoxalmente, pelo fato da
TV ser refratária aos documentários, a exibição no cinema,
ainda que se pese todas as dificuldades, muitas vezes acaba
sendo mais acessível do que
uma transmissão na TV.
FOLHA - Muita gente acha que a
ruptura e a invenção, no Brasil, estão mais no documentário que na
ficção. Você concorda? Se sim, por
que a ousadia teria encontrado mais
abrigo nos documentários?
SALLES - Isso faz parte de certo
sentimento piedoso que o documentário desperta. Como
somos o primo pobre do cinema, é legal torcer pela gente. O
pessoal se sente bem. O documentarista seria o vietcongue
do audiovisual, todo mundo
acha bacana, principalmente
quando nos compararam com
quem faz cinemão.
Pegando exemplos aqui e
acolá, e descartando muita coisa original que se faz em ficção,
é possível sustentar o argumento de que o documentário
tem sido mais inventivo do que
o cinema ficcional, mas quem
quiser defender essa tese tem
de levar em conta que isso não é
uma particularidade brasileira.
Nem sequer é uma característica do momento. O documentário sempre experimentou mais, pela simples razão de
que temos muito menos a perder, seja em termos financeiros, seja em simbólicos. Há menos dinheiro, menos expectativa e menos prestígio em jogo.
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