São Paulo, sábado, 07 de maio de 2005

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FERNANDO GABEIRA

Valei, senhor das encruzilhadas

Fascinado pelo título, comprei uma enorme (732 páginas) biografia do herói haitiano Toussaint Louverture: "Senhor das Encruzilhadas". Mesmo que não dê conta de atravessar todos os capítulos neste semestre, para alguma coisa há de servir.
Toussaint Louverture, diferentemente dos outros grandes rebeldes haitianos, tinha uma especial relação com uma entidade do vodu, Legba, uma espécie de deus das encruzilhadas e da mudança. Pelo fato de controlar a encruzilhada entre o mundo material e o espiritual, Legba precisa ser invocado no princípio de todas as cerimônias.
O autor do livro, Madison Smart Bell, compara-o vagamente a Hermes, no panteão grego. O fascínio que Legba me provoca é semelhante ao do I Ching, o livro chinês das mutações. Na verdade, o I Ching pretende ser mais amplo do que uma resposta a uma questão binária -para qual dos dois lados marchar?
A idéia de uma encruzilhada também abre inúmeras possibilidades. Não utilizo esses métodos para tomar decisões. Sou totalmente desprovido de contatos com o sobrenatural, sincronicidades e tudo o mais.
No entanto, muitas decisões, reconheço, dependem de variáveis que não emergem até a consciência com facilidade, e, às vezes, essas adivinhações ajudam a fazer brotar algo escondido dentro de si.
Vejo, por exemplo, uma encruzilhada nesse debate sobre o desarmamento, que deve desembocar numa consulta nas urnas. Para explicá-la, veio em meu socorro uma conferência proferida por Camus, em 1955, em Atenas. Ele faz uma bela comparação entre tragédia e melodrama. Na tragédia, todos, de certa forma, têm aspirações legítimas. Todos os anseios são justificáveis, ninguém é o dono da razão. No melodrama, as coisas se passam de forma tal que apenas um é certo, o maniqueísmo passa a ser o leito natural em que a ação se desenvolve.
Optando pelo desarmamento, recuso-me, entretanto, a adotar o caminho do melodrama, a criar rótulos como "bancada da bala", "adeptos do bangue-bangue", "defensores da indústria de armas". Nessa encruzilhada, o melhor caminho a tomar é o contexto trágico, onde se reconhece a legitimidade do argumento do outro.
Um exemplo disso está na afirmação de que o comércio ilegal de armas é muitas vezes superior ao legal, e a proibição do uso de armas deixará desamparadas pessoas que trabalham para viver, diante de criminosos profissionais bem equipados.
Esse argumento não pode ser contestado com um sim no referendo. Ele não cabe na pergunta. A única resposta para ele é combinar com um sim uma campanha para recolher armas ilegais. Tive a oportunidade de ver isso em Cali e em Medellín. Os resultados não são espetaculares. Em Porto Príncipe, com uma coloração mais política, a campanha para tentar recuperar as armas envolve polícia e força de paz. Os resultados também são modestos.
A essas campanhas, no caso brasileiro, é preciso adicionar a dimensão diplomática. Será preciso a colaboração dos Estados Unidos e do Paraguai, no mínimo. Os Estados Unidos produzem armas e têm uma visão diferente sobre a liberdade de porte. Muita coisa vem de lá; logo poderiam traçar uma política de colaboração.
De certa forma somos os anjos dos narizes norte-americanos, com um esforço enorme para evitar que a cocaína chegue lá. É verdade que algumas toneladas acabam passando por baixo de nossas asas. Mas o esforço é enorme. Os americanos que acabam de avaliar o Plano Colômbia sabem que, às vezes, se gasta muito e se colhem resultados insignificantes.
Mesmo usando múltiplos métodos de combate, as armas clandestinas continuarão por aí. Os defensores do sim não podem se limitar à redução do número de crimes, que são evitados com a proibição legal. Precisamos responder também por uma redução de armas clandestinas.
Quando tudo isso for apropriado pelos partidos e cair na correnteza da propaganda, na forma de jingles, bordões e filmetes, será forte a tendência ao melodrama.
Você é sim ou não?
A tragédia, pelo menos, tem um coro pregando a prudência, por saber das limitações de cada um, da legitimidade de cada um.
É muito difícil traçar a linha do bem e do mal, sobretudo porque há fortes indícios de que essa dualidade existe dentro da gente. "Como cortar um pedaço do próprio coração?", perguntou, certa vez, o escritor russo Soljenitsyn.
Talvez para nos fazer responder a esse tipo de questão existam os deuses das encruzilhadas.


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