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FERNANDO GABEIRA
Valei, senhor das encruzilhadas
Fascinado pelo título, comprei uma enorme (732 páginas) biografia do herói haitiano
Toussaint Louverture: "Senhor
das Encruzilhadas". Mesmo que
não dê conta de atravessar todos
os capítulos neste semestre, para
alguma coisa há de servir.
Toussaint Louverture, diferentemente dos outros grandes rebeldes haitianos, tinha uma especial
relação com uma entidade do vodu, Legba, uma espécie de deus
das encruzilhadas e da mudança.
Pelo fato de controlar a encruzilhada entre o mundo material e o
espiritual, Legba precisa ser invocado no princípio de todas as cerimônias.
O autor do livro, Madison
Smart Bell, compara-o vagamente a Hermes, no panteão grego. O
fascínio que Legba me provoca é
semelhante ao do I Ching, o livro
chinês das mutações. Na verdade,
o I Ching pretende ser mais amplo
do que uma resposta a uma questão binária -para qual dos dois
lados marchar?
A idéia de uma encruzilhada
também abre inúmeras possibilidades. Não utilizo esses métodos
para tomar decisões. Sou totalmente desprovido de contatos
com o sobrenatural, sincronicidades e tudo o mais.
No entanto, muitas decisões, reconheço, dependem de variáveis
que não emergem até a consciência com facilidade, e, às vezes, essas adivinhações ajudam a fazer
brotar algo escondido dentro de
si.
Vejo, por exemplo, uma encruzilhada nesse debate sobre o desarmamento, que deve desembocar numa consulta nas urnas. Para explicá-la, veio em meu socorro uma conferência proferida por
Camus, em 1955, em Atenas. Ele
faz uma bela comparação entre
tragédia e melodrama. Na tragédia, todos, de certa forma, têm aspirações legítimas. Todos os anseios são justificáveis, ninguém é
o dono da razão. No melodrama,
as coisas se passam de forma tal
que apenas um é certo, o maniqueísmo passa a ser o leito natural em que a ação se desenvolve.
Optando pelo desarmamento,
recuso-me, entretanto, a adotar o
caminho do melodrama, a criar
rótulos como "bancada da bala",
"adeptos do bangue-bangue",
"defensores da indústria de armas". Nessa encruzilhada, o melhor caminho a tomar é o contexto trágico, onde se reconhece a legitimidade do argumento do outro.
Um exemplo disso está na afirmação de que o comércio ilegal de
armas é muitas vezes superior ao
legal, e a proibição do uso de armas deixará desamparadas pessoas que trabalham para viver,
diante de criminosos profissionais bem equipados.
Esse argumento não pode ser
contestado com um sim no referendo. Ele não cabe na pergunta.
A única resposta para ele é combinar com um sim uma campanha para recolher armas ilegais.
Tive a oportunidade de ver isso
em Cali e em Medellín. Os resultados não são espetaculares. Em
Porto Príncipe, com uma coloração mais política, a campanha
para tentar recuperar as armas
envolve polícia e força de paz. Os
resultados também são modestos.
A essas campanhas, no caso
brasileiro, é preciso adicionar a
dimensão diplomática. Será preciso a colaboração dos Estados
Unidos e do Paraguai, no mínimo. Os Estados Unidos produzem
armas e têm uma visão diferente
sobre a liberdade de porte. Muita
coisa vem de lá; logo poderiam
traçar uma política de colaboração.
De certa forma somos os anjos
dos narizes norte-americanos,
com um esforço enorme para evitar que a cocaína chegue lá. É verdade que algumas toneladas acabam passando por baixo de nossas asas. Mas o esforço é enorme.
Os americanos que acabam de
avaliar o Plano Colômbia sabem
que, às vezes, se gasta muito e se
colhem resultados insignificantes.
Mesmo usando múltiplos métodos de combate, as armas clandestinas continuarão por aí. Os
defensores do sim não podem se
limitar à redução do número de
crimes, que são evitados com a
proibição legal. Precisamos responder também por uma redução
de armas clandestinas.
Quando tudo isso for apropriado pelos partidos e cair na correnteza da propaganda, na forma de
jingles, bordões e filmetes, será
forte a tendência ao melodrama.
Você é sim ou não?
A tragédia, pelo menos, tem um
coro pregando a prudência, por
saber das limitações de cada um,
da legitimidade de cada um.
É muito difícil traçar a linha do
bem e do mal, sobretudo porque
há fortes indícios de que essa dualidade existe dentro da gente.
"Como cortar um pedaço do próprio coração?", perguntou, certa
vez, o escritor russo Soljenitsyn.
Talvez para nos fazer responder
a esse tipo de questão existam os
deuses das encruzilhadas.
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