São Paulo, segunda-feira, 07 de maio de 2007

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NELSON ASCHER

A enciclopédia e a obesidade


Qual a graça, afinal, de ganhar pronta uma coleção de selos, moedas ou borboletas?

ENCICLOPÉDIA É algo que nunca tive em casa. Não que faça alguma ressalva substantiva a esses magníficos e laboriosos compêndios de todo tipo de conhecimento. Uma das razões, aliás, para não tê-los por perto está no fato de que são demasiado tentadores: a gente pega um de seus volumes para consultar tal ou qual verbete, abre na página errada, algum tópico nos chama a atenção, depois, vinculado a este ou não, mais outro e assim por diante, até que, horas mais tarde, já é difícil até recordar que dúvida ou curiosidade nos levara originalmente à estante.
Sei disso por experiência própria: um dicionário de literatura européia que adquiri no ano em que prestaria o vestibular por pouco não acarretou meu fracasso. O déficit agravado de atenção de que sofro já se manifestava naquela época e, como não podia deixar de ser, eu me interessava então por tudo, exceto pelo que estava em pauta. Fui obrigado, portanto, a chegar a um acordo com o livro. Eu me propunha certas metas: estudar tantos capítulos do manual de química ou fazer "n" exercícios de trigonometria etc. Cumprida a missão, sua recompensa consistia na leitura de meia dúzia de verbetes daquele dicionário. Deu certo, mas aprendi (embora não muito bem) a manter determinadas tentações a uma distância administrável.
Uma razão suplementar para não ter comprado (ou pedido a meus pais), digamos, a "Britânica" é uma perversão do individualismo, que tornava mais atraente organizar minhas próprias coisas, inclusive a informação e o conhecimento, à minha maneira, de acordo com meu ritmo. Qual a graça, afinal, de ganhar pronta uma coleção de selos, moedas ou borboletas? (Constatação esta que deve valer igualmente para um harém.) Se reinventar a roda é, de quando em quando, um exercício saudável, ele nem sempre coincide com as melhores maneiras de gerir o tempo disponível. E colecionar algumas séries equivalia a absorver uma cultura previamente organizada sem sacrificar de todo o prazer da descoberta individual.
Foi, por exemplo, assim que, filho de imigrantes, tornei-me brasileiro (ou, quem sabe, apenas paulista), ouvindo, por um lado, MPB e, por outro, comprando ou ganhando um a um cada volume da obra infanto-juvenil de Monteiro Lobato e do (injustamente) menos conhecido Francisco Marins, criador de Taquara-Póca.
Como minha escola (talvez felizmente) não oferecia aulas de literatura estrangeira, minha iniciação ficou a cargo, primeiro, de "As Obras Célebres" da Melhoramentos e, em seguida, de "Os Imortais da Literatura Universal".
Graças a essa última, li Borges com 14/15 anos e descobri um autor acessível e delicioso, ou seja, totalmente distinto daquele sério, complexo e impenetrável que teria conhecido num curso de letras. Quanto aos clássicos, aos antigos e aos exóticos (os não-ocidentais), comecei a freqüentá-los a esmo graças à "Penguin Classics" e foi uma coleção chamada "Modern European Poets", da mesma editora, que descerrou para mim os horizontes da poesia moderna.
Em última instância, porém, qual a diferença entre, uma vez completa, a série ou coleção de livros adquiridos individualmente e um conjunto que, como as enciclopédias, chega inteiro, pronto para ser consultado ou lido? Aparentemente nenhuma. E, no entanto, esta segunda opção traz consigo tanto o risco do excesso esmagador que intimida, quanto da abundância que desorienta. Ela pode se converter seja numa montanha que, perdendo-se nas nuvens acima, desencoraja o mais intrépido alpinista, seja num labirinto do qual, sem uma legião de Ariadnes fiandeiras, passeante nenhum será capaz de sair. Não é à toa que o lugar ideal das enciclopédias e obras afins sejam as bibliotecas públicas onde o tempo racionado impõe algum tipo de disciplina.
Mas, por mais que nos defendêssemos da avalanche de informação, por mais que tenhamos tentado lhe canalizar a torrente, a era digital derrubou todas as suas comportas. Em vez de possuirmos enciclopédias num canto da casa, hoje em dia, onde quer que haja um computador conectado à internet, vivemos cercados, ou melhor, imersos nelas. Não há mais como fugir ao superávit de conhecimento cuja ameaça parece ser a de nos afogar.
Nada se assemelha tanto a esse processo como as mudanças que revolucionaram a relação de nossa espécie com os alimentos. Se poucas gerações atrás o que se temia era a fome, o maior perigo que os habitantes dos países afluentes correm hoje em dia é o da obesidade.


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