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NELSON ASCHER
A enciclopédia e a obesidade
Qual a graça, afinal, de ganhar pronta uma coleção de selos, moedas ou borboletas?
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ENCICLOPÉDIA É algo que nunca tive em casa. Não que faça
alguma ressalva substantiva a
esses magníficos e laboriosos compêndios de todo tipo de conhecimento. Uma das razões, aliás, para
não tê-los por perto está no fato de
que são demasiado tentadores: a
gente pega um de seus volumes para
consultar tal ou qual verbete, abre
na página errada, algum tópico nos
chama a atenção, depois, vinculado
a este ou não, mais outro e assim por
diante, até que, horas mais tarde, já é
difícil até recordar que dúvida ou curiosidade nos levara originalmente à
estante.
Sei disso por experiência própria:
um dicionário de literatura européia
que adquiri no ano em que prestaria
o vestibular por pouco não acarretou meu fracasso. O déficit agravado
de atenção de que sofro já se manifestava naquela época e, como não
podia deixar de ser, eu me interessava então por tudo, exceto pelo que
estava em pauta. Fui obrigado, portanto, a chegar a um acordo com o livro. Eu me propunha certas metas:
estudar tantos capítulos do manual
de química ou fazer "n" exercícios
de trigonometria etc. Cumprida a
missão, sua recompensa consistia
na leitura de meia dúzia de verbetes
daquele dicionário. Deu certo, mas
aprendi (embora não muito bem) a
manter determinadas tentações a
uma distância administrável.
Uma razão suplementar para não
ter comprado (ou pedido a meus
pais), digamos, a "Britânica" é uma
perversão do individualismo, que
tornava mais atraente organizar minhas próprias coisas, inclusive a informação e o conhecimento, à minha maneira, de acordo com meu
ritmo. Qual a graça, afinal, de ganhar
pronta uma coleção de selos, moedas ou borboletas? (Constatação esta que deve valer igualmente para
um harém.) Se reinventar a roda é,
de quando em quando, um exercício
saudável, ele nem sempre coincide
com as melhores maneiras de gerir o
tempo disponível. E colecionar algumas séries equivalia a absorver uma
cultura previamente organizada
sem sacrificar de todo o prazer da
descoberta individual.
Foi, por exemplo, assim que, filho
de imigrantes, tornei-me brasileiro
(ou, quem sabe, apenas paulista),
ouvindo, por um lado, MPB e, por
outro, comprando ou ganhando um
a um cada volume da obra infanto-juvenil de Monteiro Lobato e do (injustamente) menos conhecido
Francisco Marins, criador de Taquara-Póca.
Como minha escola (talvez felizmente) não oferecia aulas de literatura estrangeira, minha iniciação ficou a cargo, primeiro, de "As Obras
Célebres" da Melhoramentos e, em
seguida, de "Os Imortais da Literatura Universal".
Graças a essa última, li Borges
com 14/15 anos e descobri um autor
acessível e delicioso, ou seja, totalmente distinto daquele sério, complexo e impenetrável que teria conhecido num curso de letras. Quanto aos clássicos, aos antigos e aos
exóticos (os não-ocidentais), comecei a freqüentá-los a esmo graças à
"Penguin Classics" e foi uma coleção
chamada "Modern European
Poets", da mesma editora, que descerrou para mim os horizontes da
poesia moderna.
Em última instância, porém, qual
a diferença entre, uma vez completa,
a série ou coleção de livros adquiridos individualmente e um conjunto
que, como as enciclopédias, chega
inteiro, pronto para ser consultado
ou lido? Aparentemente nenhuma.
E, no entanto, esta segunda opção
traz consigo tanto o risco do excesso
esmagador que intimida, quanto da
abundância que desorienta. Ela pode se converter seja numa montanha que, perdendo-se nas nuvens
acima, desencoraja o mais intrépido
alpinista, seja num labirinto do qual,
sem uma legião de Ariadnes fiandeiras, passeante nenhum será capaz
de sair. Não é à toa que o lugar ideal
das enciclopédias e obras afins sejam as bibliotecas públicas onde o
tempo racionado impõe algum tipo
de disciplina.
Mas, por mais que nos defendêssemos da avalanche de informação,
por mais que tenhamos tentado lhe
canalizar a torrente, a era digital
derrubou todas as suas comportas.
Em vez de possuirmos enciclopédias num canto da casa, hoje em dia,
onde quer que haja um computador
conectado à internet, vivemos cercados, ou melhor, imersos nelas.
Não há mais como fugir ao superávit
de conhecimento cuja ameaça parece ser a de nos afogar.
Nada se assemelha tanto a esse
processo como as mudanças que revolucionaram a relação de nossa espécie com os alimentos. Se poucas
gerações atrás o que se temia era a
fome, o maior perigo que os habitantes dos países afluentes correm hoje
em dia é o da obesidade.
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