São Paulo, segunda-feira, 07 de junho de 2004

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TEATRO

Festival na Alemanha abraça a doçura orgiástica de "Os Sertões"

BETTY MILAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Canudos foi para Recklinghausen. O teatro Oficina foi da rua Jaceguai para o interior de uma mina, onde os alemães reconstruíram o espaço de Lina Bo Bardi para a apresentação de "Os Sertões".
Você chega e vê uma imensa faixa amarela na qual está escrito: "Universidade de culturas brasileiras orgiásticas". Fica sabendo depois que está no lugar onde foram produzidas as armas que alimentaram a guerra de Canudos.
Recklinghausen fica no coração da indústria militar alemã. Isso basta para entender o título da peça: "Krieg im Sertão" (Guerra no Sertão).
Queira ou não, a história da Alemanha está ligada ao massacre dos homens do Conselheiro. A história da Alemanha belicosa, a que elegeu a violência como solução. E o país de hoje quer a nossa doçura orgiástica, a cultura ladina do brincar, que pode ensinar a paz. Para isso o Oficina veio à Europa. Para ensinar que há no Brasil um teatro-mensageiro de que o mundo desencantado atual precisa. Com as suas velas e as suas rosas, o elenco entra em cena convocando o público a entrar também. E não fala português ou alemão, é no inglês que ele diz a que veio: "Nós aqui estamos para fazer um teatro novo".
Inglês por ser esta a língua mais conhecida e porque o Oficina não confunde a América do Bush com a dos americanos. Começa com a língua abençoada de Shakespeare, mas, ao longo da peça, se vale de alemão, francês, espanhol, latim e tupi-guarani, além do português de Portugal e do Brasil, procedendo assim à miscigenação surpreendente das línguas. Porque o valor maior de "Os Sertões" é a mestiçagem, e São Paulo é a cidade das 1.001 línguas.
O partido de José Celso Martinez Corrêa não foi o partido infeliz da tradução, ele transmitiu o que queria com os recursos infalíveis da transmissão: o canto, a dança e o sexo -o dos índios, dos negros e dos brancos.
Mostrou, na trilha de Gilberto Freyre, a importância do sexo na constituição da nação.
Não foi preciso falar alemão para dizer que o tipo brasileiro é um tipo sem tipo. Que o homem não existe sem o sexo e que a condição humana é inocente. O Oficina falou a língua clara, inequívoca, do coração. Valeu-se tanto quanto pôde do corpo, fez "Os Sertões" para alemão ver e, com isso, acertou em cheio. O espetáculo é lindo, a crítica foi excelente e os aplausos, retumbantes.
Os alemães aprenderam o que também nós ainda precisamos aprender: a seriedade do deboche, da Brasilianische Zivilisation, que até renegaria a palavra sexualidade, porque o homem e a mulher são indissociáveis do sexo e do nu -o do índio ou o de Kliemt, de Shiele, de Munch.
O nosso Uzyna Uzona conquistou a Alemanha e vai agora conquistar um a um os países da Europa, na esperança de ganhar um dia definitivamente a praça paulista, que, por razões imobiliárias, ainda não sacralizou o espaço do teatro no Bexiga.


Betty Milan é psicanalista e autora de "A Paixão de Lia", entre outros

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