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TEATRO
Festival na Alemanha abraça a doçura orgiástica de "Os Sertões"
BETTY MILAN
ESPECIAL PARA A FOLHA
Canudos foi para Recklinghausen. O teatro Oficina foi
da rua Jaceguai para o interior de
uma mina, onde os alemães reconstruíram o espaço de Lina Bo
Bardi para a apresentação de "Os
Sertões".
Você chega e vê uma imensa faixa amarela na qual está escrito:
"Universidade de culturas brasileiras orgiásticas". Fica sabendo
depois que está no lugar onde foram produzidas as armas que alimentaram a guerra de Canudos.
Recklinghausen fica no coração
da indústria militar alemã. Isso
basta para entender o título da peça: "Krieg im Sertão" (Guerra no
Sertão).
Queira ou não, a história da Alemanha está ligada ao massacre
dos homens do Conselheiro. A
história da Alemanha belicosa, a
que elegeu a violência como solução. E o país de hoje quer a nossa
doçura orgiástica, a cultura ladina
do brincar, que pode ensinar a
paz. Para isso o Oficina veio à Europa. Para ensinar que há no Brasil um teatro-mensageiro de que o
mundo desencantado atual precisa. Com as suas velas e as suas rosas, o elenco entra em cena convocando o público a entrar também. E não fala português ou alemão, é no inglês que ele diz a que
veio: "Nós aqui estamos para fazer um teatro novo".
Inglês por ser esta a língua mais
conhecida e porque o Oficina não
confunde a América do Bush com
a dos americanos. Começa com a
língua abençoada de Shakespeare, mas, ao longo da peça, se vale
de alemão, francês, espanhol, latim e tupi-guarani, além do português de Portugal e do Brasil,
procedendo assim à miscigenação surpreendente das línguas.
Porque o valor maior de "Os Sertões" é a mestiçagem, e São Paulo
é a cidade das 1.001 línguas.
O partido de José Celso Martinez Corrêa não foi o partido infeliz da tradução, ele transmitiu o
que queria com os recursos infalíveis da transmissão: o canto, a
dança e o sexo -o dos índios, dos
negros e dos brancos.
Mostrou, na trilha de Gilberto
Freyre, a importância do sexo na
constituição da nação.
Não foi preciso falar alemão para dizer que o tipo brasileiro é um
tipo sem tipo. Que o homem não
existe sem o sexo e que a condição
humana é inocente. O Oficina falou a língua clara, inequívoca, do
coração. Valeu-se tanto quanto
pôde do corpo, fez "Os Sertões"
para alemão ver e, com isso, acertou em cheio. O espetáculo é lindo, a crítica foi excelente e os
aplausos, retumbantes.
Os alemães aprenderam o que
também nós ainda precisamos
aprender: a seriedade do deboche,
da Brasilianische Zivilisation, que
até renegaria a palavra sexualidade, porque o homem e a mulher
são indissociáveis do sexo e do nu
-o do índio ou o de Kliemt, de
Shiele, de Munch.
O nosso Uzyna Uzona conquistou a Alemanha e vai agora conquistar um a um os países da Europa, na esperança de ganhar um
dia definitivamente a praça paulista, que, por razões imobiliárias,
ainda não sacralizou o espaço do
teatro no Bexiga.
Betty Milan é psicanalista e autora de
"A Paixão de Lia", entre outros
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