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NELSON ASCHER
Entre um Dia D e o próximo
Ontem se comemorou o 60º
aniversário do Dia D. Em 6
de junho de 1944, cerca de 7.000
embarcações vindas da Inglaterra se aproximaram da costa da
Normandia (noroeste da França)
precedidas e/ou acompanhadas
por milhares de aviões. Tratava-se não só do início do ataque à
"fortaleza Europa" como também da abertura, pedida por Stálin, de uma segunda frente de batalha que aliviaria a pressão do
Exército alemão sobre a Rússia.
Antes do fim do dia, mais de 100
mil soldados americanos, britânicos e canadenses tomaram cinco
praias pré-selecionadas cujos nomes em código eram Omaha,
Utah, Juno, Gold e Sword.
Entre os fatores que asseguraram o sucesso da "operação Overlord", estava a brilhante campanha de desinformação promovida pelos aliados que levaram os
alemães a acreditarem que o desembarque ocorreria ao norte, no
passo de Calais. Apesar disso, o
desembarque custou aos aliados,
em menos de 24 horas, algo em
torno de 10 mil baixas entre mortos, feridos e desaparecidos, dois
terços das quais sofridas pelos
americanos.
O Dia D marcou o começo do
fim da ocupação alemã da Europa Ocidental, inaugurando em
seu lugar meio século de paz e
prosperidade. Caso o desembarque tivesse fracassado, não é impossível que a região envolvida
pertencesse agora a um império
totalitário dividido em senhores e
servos, sem um único judeu, cigano ou homossexual. Uma hipótese mais misericordiosa, decorrente da eventual (mas não garantida) vitória do Exército Vermelho,
seria a extensão do sistema soviético até o litoral do oceano Atlântico.
A gigantesca operação salvara a
metade afortunada do continente
quer de um presente terrível e de
um futuro perigoso, quer do peso
de um passado que seus habitantes não conseguiram superar sozinhos, pois a Segunda Guerra não
deixava de ser a continuação do
megaconflito anterior. Pode-se
dizer que as duas conflagrações
mundiais foram uma espécie de
guerra civil européia que, durando 31 anos, de 1914 a 1945, resultou na partilha da Europa em
dois protetorados: o bloco ocidental e o soviético. Quando, com a
dissolução em 1989 daquele dominado pelos russos, esse sistema
terminou, não era difícil verificar
quão mais benigna fora a tutela
dos EUA.
Ainda assim, o fim, a partir de
1945, da hegemonia européia no
planeta não veio sem seqüelas,
muitas das quais seguem gerando
problemas até hoje, por exemplo,
nos Bálcãs e no Oriente Médio. A
descolonização da África e do sudeste asiático trouxe tantas complicações quanto as que resolveu.
Além do mais, a Europa exportou
idéias e ideologias, como o nazismo, o fascismo e o comunismo,
que se revelaram não menos desastrosas no Terceiro Mundo que
em seus países de origem.
Basta, porém, passar os olhos
pela imprensa continental, em
particular a francesa, para constatar que a importância da maior
operação anfíbia da história e
seus desdobramentos, em especial
a contenção do expansionismo
soviético, vem sendo relativizada
e diminuída por seus principais
beneficiários. Imitando a Áustria
vizinha, que, malgrado haver
participado entusiasticamente do
processo racista e exterminatório
de conquistas concebido por um
de seus filhos, alega desde a derrota ter sido sua "primeira vítima",
a Alemanha tenta atualmente
sair do rol dos vencidos para se
integrar ao dos libertados, enquanto a França, após exagerar
hiperbolicamente a importância
de seus movimentos de resistência, tem feito o possível para se esquecer de quem lhe garantiu, seja
na Primeira e Segunda Guerras,
seja durante a Guerra Fria, a liberdade.
Nos dois casos o afã de reescrever a história é fácil de entender.
Os alemães, descarregando o
grosso da culpa sobre um grupo
restrito de indivíduos (Hitler e a
alta hierarquia de seu partido),
gostariam de se desligar da imagem que adquiriram como perpetradores dos piores atos de barbárie do século 20. Já os franceses
consideram uma mancha indelével em seu orgulho nacional o fato
de terem sido repetidamente salvos pelos "anglo-saxões". Como se
isso não bastasse, a França, conforme via sua importância se erodir no cenário internacional, teve
de amargar nos anos 50 e 60 duas
humilhantes derrotas militares,
uma no Vietnã e a outra na Argélia.
A causa imediata, porém, é a
vontade que as duas nações alimentam de unificar política e
economicamente o continente inteiro a sua imagem e semelhança
e sobretudo sob sua orientação.
Que o núcleo franco-germânico
da guerra civil européia tenha se
acalmado graças à exaustão dos
dois lados é um resultado que,
embora bem-vindo, não basta
nem para apagar sua ficha corrida nem para legitimar a liderança à qual os dois países almejam.
Daí a necessidade de mitigar episódios como o Terceiro Reich e
Vichy através da demonização
dos Estados Unidos e do Reino
Unido, que não passaria de seu
obediente lacaio. Quanto à gratidão, ela não é uma prioridade da
Europa Ocidental, e os povos do
leste (poloneses, tchecos, húngaros etc.), que devem menos aos
anglo-americanos, a manifestam
com mais freqüência e sinceridade.
Os paralelos entre a Segunda
Guerra e a presente luta contra o
fundamentalismo teocrático islâmico não são poucos. Ambas as
contendas opunham algumas democracias tanto a inimigos obscurantistas como a outras democracias que não os levavam suficientemente a sério e se julgavam
capazes de contê-los com uma série ininterrupta de concessões. É
razoável supor que, num futuro
não demasiado distante, a Europa continental precisará que os
anglo-americanos repitam o Dia
D para salvá-la das conseqüências de sua própria miopia.
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