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CONTARDO CALLIGARIS
"Zodíaco"
O anseio paranóico por um sentido enriquece nossa vida. Mas sempre sobram fios soltos
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UM AMIGO querido (que morreu 20 anos atrás e foi meu
parente durante um tempo)
era engenheiro e mestre de obras.
Ele viveu em vários lugares dos EUA
e, quando eu o conheci, morava em
Houston, Texas. Chamava-se Robert (Bob) Bond (nada a ver com
Bob Bond, o artista gráfico).
Aprendi com ele um monte de coisas. Em particular, ele me ensinou a
pescar. Mas é por uma outra razão
que me lembrei dele assistindo a
"Zodíaco", o filme de David Fincher
(o diretor de "Seven") que estreou
na sexta passada.
Nas horas vagas, Bob Bond era artista; ele produzia (e oferecia) suas
obras só para amigos e próximos,
um quadro para cada um. Todos
seus quadros se chamavam, numa
mistura de inglês e espanhol, "Fonction Passado" e se diferenciavam pela numeração. Eu, por exemplo, ganhei "Fonction Passado 11".
Bob Bond procedia assim: observava o destinatário do quadro durante um tempo e acumulava objetos descartados que (ao seu ver) tinham um relação com a história do
sujeito. Logo, fixava esses objetos a
um painel de madeira, pintava e, toque final, conectava os objetos entre
si com um fio. O resultado final se
parecia com a teia em que uma aranha teria preso, de maneira múltipla
e complexa, os restos de uma vida.
Quando me entregou meu quadro, Bob explicou que o fio indicava
que os elementos de nossas vidas
são mais interligados do que parece.
Como havia, no quadro, alguns fios
que permaneciam pendurados, desconectados, perguntei o porquê, e
Bob me disse, com seu bom senso
habitual, que, numa vida, sempre sobram "loose strings", fios soltos.
Pois bem, "Zodíaco" conta a história real de um policial, de um repórter e de um cartunista que, em San
Francisco, nos anos 70, tentaram
identificar (e prender, claro) um assassino em série, que se autodenominava Zodíaco.
O filme é a tocante história de três
vidas arrebatadas pela procura da
verdade ou, talvez fosse melhor dizer, pela paixão do sentido. Uma investigação policial (ainda mais no
caso do Zodíaco, que deixava propositalmente pistas e mensagens cifradas) é um pouco como um trabalho
de Bob Bond: uma vez achadas as
peças, é preciso interligá-las. Quase
sempre, aliás, quem investiga crava
na parede documentos e lembretes,
peças do quebra-cabeça na espera
do momento em que se tornará possível enxergar o fio que as junta, resolvendo o enigma.
Nos primeiros anos de minha psicanálise, era isso que eu fazia. Meu
quarto-e-sala parecia uma central
de investigações: bilhetes com relatos de sonhos, pesadelos e devaneios, fragmentos de lembranças,
intuições ou interpretações enchiam as paredes como indícios policiais dos quais esperava que revelassem, um dia, seus laços arcanos e,
enfim, o sentido da minha vida.
Jacques Lacan, o psicanalista
francês, dizia que o tempo inicial de
uma psicanálise é uma espécie de
paranóia, uma "paranóia dirigida".
O pensamento paranóico é animado
pela convicção de que tudo é conectado, de que deve haver, em suma,
uma solução do enigma, que nos diria por que somos quem somos e por
que o mundo é como ele é.
Aparte: desse ponto de vista, os
protagonistas de "Zodíaco" são estranhamente contidos; procurando
um assassino chamado Zodíaco,
nunca se aventuram na tentativa de
encontrar a revelação do culpado na
disposição dos astros.
De uma certa forma, o entusiasmo
do pensamento é sempre um pouco
paranóico. Mas Lacan dizia também
que uma psicanálise dá certo quando a paranóia se esgota, e conseguimos enfim encarar a constatação,
um pouco decepcionante e assustadora, de que nada se explica até o
fim: há vasos de flores que caem na
nossa cabeça sem ter sido empurrados por ninguém, nem por nós nem
pelos outros nem pela providência
divina nem por malefício diabólico.
Nisso, "Zodíaco", o filme, é perfeito, pois nos conta uma procura parecida com a nossa, até no detalhe
(crucial) da frustração final. Não há
conclusão definitiva, só indícios.
Resta que a procura do sentido (que
não foi encontrado) deu sentido, durante um tempo, à vida dos investigadores. Um pouco de paranóia
enriquece nossa vida.
Agora, como diria Bob Bond, por
mais que a gente teça nossa teia de
aranha, sempre há fios soltos.
Saio de férias até julho. É um jeito de
falar: na verdade, viajo para a terra
de minha infância para tentar tecer
o fio que talvez ligue alguns cacos da
minha história.
ccalligari@uol.com.br
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