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São Paulo, quinta-feira, 07 de agosto de 2003

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GASTRONOMIA

Cheiro de framboesas?

NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA

É, não posso negar, tenho feito umas coisas divertidas e outras nem tanto, nessa vida de cronista de gastronomia. Trabalho o dia inteiro, vida de bufeteira não é sopa, cozinha-se pouco e fala-se muito ao telefone, tentando descobrir o que o cliente quer de verdade, porque o que ele diz que quer muitas vezes não é o que gosta. Dá sempre certo quando os clientes não estão nem aí pra modinhas e tendências, tudo corre na maior naturalidade.
E tem os convites da profissão. Viajar para fora ninguém convida, uma vez me convidaram para a Patagônia, não deu, estava despreparada, prontinha para Paris ou Nova York e despreparada para a Patagônia. Sei que perdi uma viagem memorável, mas a vida é assim.
Na semana passada a Gabriela, dona da Mille Foglie, aquela livraria só de livros de comida, me fez a maior surpresa. A coisa que mais adoro na vida é um livro novo, embrulhadinho, chegado de fora. E sempre imaginei o que seria, de repente, receber um contêiner, uma coisa enorme, de toneladas, caindo de volumes novíssimos. Pois não é que ela me chamou para ver, assim, incólumes, intocadas, umas toneladas de livros de cozinha?
Foi muita areia para meu caminhãozinho, você acaba se perdendo na imensidão, todos os livros do mundo e mais alguns, uma beleza, salas e salas, corredores, é um excesso de céu. Obrigada, foi uma experiência e tanto. Vão lá vocês, agora, já devem estar nas prateleiras, tinindo de novos.
Tem os restaurantes. No momento só quero saber de ir no Julia, que tem de cozinheira a Paola e que faz uma comida de mercado, aquela que se vai todo dia às compras, chega-se na cozinha, a Paola nem coça a cabeça para saber o que vai fazer, vai fazendo, começa a inventar. É argentina e bonita a moça, cozinha pra caramba, tem um tango gravado na coluna e, enquanto mia o gato de porcelana, ela faz uma das melhores comidas de São Paulo. É um tranco, grande energia tem a cozinheira, e a sua energia põe à mesa, desde as mollejas, o aspargo fresco, os bifes dignos da Argentina, as delicadas sobremesas, ah, as batatas fritas, e a caipirinha de laranja sanguínea.
Não adianta pedirem a caipirinha agora, não adianta, saiu de época, só se pode pedir coisa de época, acha que a Paola, no seu Julia (uma homenagem a Julia Child), vai guardar sucos no freezer? Paola, um sorriso de dentes brancos, uma generosidade à flor da pele. Só os generosos cozinham bem.
E tem muita besteira que os cronistas gastronômicos fazem.
Passei a vida sem entender de vinho, só bebendo e gostando. Mas bebendo também vodca e uísque e etc. e tal, e a vida não é tão comprida assim, foi passando quando vi que não entendia de vinhos coisa nenhuma e, para falar a verdade, nem estava aí para entender, ficava pensando no investimento. Só os livros, pensem bem, para saber o nome daquelas uvas todas, dos terroirs, e depois os próprios vinhos!
Arranjamos então, para o buffet, um estudioso da matéria, alguém que entende e estuda vinhos, um assessor, que começou a adequar nossa comida de festa a vinhos bons e quase nunca caros. Chama-se Horta e nem parente longínquo do marido é. Menos uma coisa para nos preocuparmos.
Mas, no outro dia, comprei escondido um desses livrinhos de dummies, vinho para dummies, (Campus) bem fácil e inteligível e comecei a ler na cama. Lá pelas três da manhã resolvi tirar as dúvidas. Eu que sinto cheiro de todas as comidas, de óleo de peroba, de arroz sem sal, de cachorro que não tomou banho, de cachorro que tomou, de escape de automóvel, de gás de rua, de cocô de cavalo, por que não sentiria os cheiros dos vinhos?
Desci a escada, abri um vinho, despejei na caneca mais próxima, enfiei o nariz dentro, cheirei bastante, esperei as frutas, as ervas, o café, o chocolate, a grama, o tabaco e... nada... Framboesas, talvez? Nem em sonho, por que afinal um vinho cheiraria a framboesas? Bloqueada. Talvez o vinho fosse ruim, passei a pesquisar pano de passar no chão, tinta nova, queijo rançoso... Muito menos, o nariz se recusa a entender os vinhos. Miserável probóscide!
Não sou assim tão fácil de dobrar, ah, como se não me conhecesse! Depois de um dia atarefado voltei correndo para casa e me vesti enquanto escovava os dentes para ir a uma experimentação de argentinos novíssimos, que nem no mercado estão. Tudo junto. Dentifrício e correria. Moral da história, a pasta de dentes queimou minha boca, secou as membranas, enrijeceu o palato, a boca, só de encostar um vinho nela, se embabadava toda com os taninos, não havia vinho no mundo que servisse para uma boca cauterizada de pasta de dentes.
Errei, errei, sim, manchei o teu nome, mas acontecem coisas boas e más na vida de um cronista de comida. O Manoel Beato, grande sommelier, jurou que vai me dar umas noções amanhã ou depois, não tenho vergonha dele. Prometo também não escovar os dentes por dois dias.

ninahort@uol.com.br


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