|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
GASTRONOMIA
Cheiro de framboesas?
NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA
É, não posso negar, tenho feito umas coisas divertidas e
outras nem tanto, nessa vida de
cronista de gastronomia. Trabalho o dia inteiro, vida de bufeteira
não é sopa, cozinha-se pouco e fala-se muito ao telefone, tentando
descobrir o que o cliente quer de
verdade, porque o que ele diz que
quer muitas vezes não é o que
gosta. Dá sempre certo quando os
clientes não estão nem aí pra modinhas e tendências, tudo corre na
maior naturalidade.
E tem os convites da profissão.
Viajar para fora ninguém convida, uma vez me convidaram para
a Patagônia, não deu, estava despreparada, prontinha para Paris
ou Nova York e despreparada para a Patagônia. Sei que perdi uma
viagem memorável, mas a vida é
assim.
Na semana passada a Gabriela,
dona da Mille Foglie, aquela livraria só de livros de comida, me fez a
maior surpresa. A coisa que mais
adoro na vida é um livro novo,
embrulhadinho, chegado de fora.
E sempre imaginei o que seria, de
repente, receber um contêiner,
uma coisa enorme, de toneladas,
caindo de volumes novíssimos.
Pois não é que ela me chamou para ver, assim, incólumes, intocadas, umas toneladas de livros de
cozinha?
Foi muita areia para meu caminhãozinho, você acaba se perdendo na imensidão, todos os livros
do mundo e mais alguns, uma beleza, salas e salas, corredores, é
um excesso de céu. Obrigada, foi
uma experiência e tanto. Vão lá
vocês, agora, já devem estar nas
prateleiras, tinindo de novos.
Tem os restaurantes. No momento só quero saber de ir no Julia, que tem de cozinheira a Paola
e que faz uma comida de mercado, aquela que se vai todo dia às
compras, chega-se na cozinha, a
Paola nem coça a cabeça para saber o que vai fazer, vai fazendo,
começa a inventar. É argentina e
bonita a moça, cozinha pra caramba, tem um tango gravado na
coluna e, enquanto mia o gato de
porcelana, ela faz uma das melhores comidas de São Paulo. É um
tranco, grande energia tem a cozinheira, e a sua energia põe à mesa,
desde as mollejas, o aspargo fresco, os bifes dignos da Argentina,
as delicadas sobremesas, ah, as
batatas fritas, e a caipirinha de laranja sanguínea.
Não adianta pedirem a caipirinha agora, não adianta, saiu de
época, só se pode pedir coisa de
época, acha que a Paola, no seu
Julia (uma homenagem a Julia
Child), vai guardar sucos no freezer? Paola, um sorriso de dentes
brancos, uma generosidade à flor
da pele. Só os generosos cozinham bem.
E tem muita besteira que os cronistas gastronômicos fazem.
Passei a vida sem entender de
vinho, só bebendo e gostando.
Mas bebendo também vodca e
uísque e etc. e tal, e a vida não é tão
comprida assim, foi passando
quando vi que não entendia de vinhos coisa nenhuma e, para falar
a verdade, nem estava aí para entender, ficava pensando no investimento. Só os livros, pensem
bem, para saber o nome daquelas
uvas todas, dos terroirs, e depois
os próprios vinhos!
Arranjamos então, para o buffet, um estudioso da matéria, alguém que entende e estuda vinhos, um assessor, que começou
a adequar nossa comida de festa a
vinhos bons e quase nunca caros.
Chama-se Horta e nem parente
longínquo do marido é. Menos
uma coisa para nos preocuparmos.
Mas, no outro dia, comprei escondido um desses livrinhos de
dummies, vinho para dummies,
(Campus) bem fácil e inteligível e
comecei a ler na cama. Lá pelas
três da manhã resolvi tirar as dúvidas. Eu que sinto cheiro de todas as comidas, de óleo de peroba,
de arroz sem sal, de cachorro que
não tomou banho, de cachorro
que tomou, de escape de automóvel, de gás de rua, de cocô de cavalo, por que não sentiria os cheiros
dos vinhos?
Desci a escada, abri um vinho,
despejei na caneca mais próxima,
enfiei o nariz dentro, cheirei bastante, esperei as frutas, as ervas, o
café, o chocolate, a grama, o tabaco e... nada... Framboesas, talvez?
Nem em sonho, por que afinal um
vinho cheiraria a framboesas?
Bloqueada. Talvez o vinho fosse
ruim, passei a pesquisar pano de
passar no chão, tinta nova, queijo
rançoso... Muito menos, o nariz se
recusa a entender os vinhos. Miserável probóscide!
Não sou assim tão fácil de dobrar, ah, como se não me conhecesse! Depois de um dia atarefado
voltei correndo para casa e me
vesti enquanto escovava os dentes
para ir a uma experimentação de
argentinos novíssimos, que nem
no mercado estão. Tudo junto.
Dentifrício e correria. Moral da
história, a pasta de dentes queimou minha boca, secou as membranas, enrijeceu o palato, a boca,
só de encostar um vinho nela, se
embabadava toda com os taninos,
não havia vinho no mundo que
servisse para uma boca cauterizada de pasta de dentes.
Errei, errei, sim, manchei o teu
nome, mas acontecem coisas
boas e más na vida de um cronista
de comida. O Manoel Beato, grande sommelier, jurou que vai me
dar umas noções amanhã ou depois, não tenho vergonha dele.
Prometo também não escovar os
dentes por dois dias.
ninahort@uol.com.br
Texto Anterior: "Kerouac": Bortolotto exalta a amargurada solidão dos anônimos Próximo Texto: Mundo gourmet: Buenos Aires Classic mostra facetas da mesa argentina Índice
|