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GUILHERME WISNIK
O rei do espaço infinito
Atualmente, qualquer garoto pode baixar imagens do Pentágono para ilustrar seus jogos de batalha-naval
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O QUE mais espanta na experiência de navegação pelo
Google Earth é o salto vertiginoso entre as escalas. Isto é, o trânsito entre o zoom sobre qualquer
ponto do espaço (uma casa em lote
urbano, ou isolada no deserto, por
exemplo), e a visão global do planeta, incluindo-se, nesse intervalo, todas as infinitas mediações entre
uma coisa e outra. É interessante
que, à medida que esse vasto e rico
material de fotos de satélite se torna
acessível a um público amplo pela
internet, um modo de raciocinar
que era antes restrito a arquitetos,
geógrafos e cartógrafos começa a se
generalizar. Refiro-me à abstração
dos mapas e plantas, à capacidade de
decodificar informações espaciais
em suporte bidimensional, e, mais
do que isso, de compreender o território como uma unidade contínua
feita de inúmeras particularidades.
Será que a positividade com que
recebemos acontecimentos novos
como o Google Earth espelha a pacificação geral da era da globalização?
É possível. Hoje, a suspeita de uma
constante vigia da vida privada através de rastros deixados na internet
é, de todo modo, mais branda do que
a paranóia do controle panóptico do
mundo dos tempos da Guerra Fria.
E se até ontem os arquivos de aerofotogrametria não eram autorizados
a vender fotos em que aparecessem
vistas de portos ou aeroportos,
atualmente qualquer garoto pode
baixar imagens do Pentágono ou do
Kremlin para ilustrar seu jogo de batalha-naval.
Porém, a minha hipótese é que fenômenos como o Google Earth propõem situações marginais a enquadramentos ideológicos diretos, em
aproximação com questões que só a
arte tem sido capaz de formular. Para isso, valho-me da comparação
com o "Aleph" de Jorge Luis Borges.
O aleph, palavra que dá nome a um
conto seu, assim como a máquina do
mundo de Drummond, proporciona
uma visão epifânica do universo. É
um ponto mirífico (com dois ou três
centímetros de diâmetro) que concentra, como que por mágica, todos
os pontos do planeta, sem sobreposição ou transparência.
No conto, um pretenso poeta argentino convive secretamente com
o aleph que descobre existir no canto escuro do sótão de sua casa. Por
isso, se lança à tarefa grandiosa de
"versificar toda a redondez do planeta" num infindável e fastidioso
poema épico em que visita e descreve todos os lugares da Terra. Sendo
que, no momento do relato, não havia ainda ultrapassado pouco mais
do que alguns hectares do Estado de
Queensland, na Austrália, e um quilômetro do curso do rio Ob, localizado na Sibéria.
Se, através do aleph, o leitor de
Borges mergulha na vertigem da totalidade concentrada em um único
ponto, o poeta do conto, por sua vez,
parece condenado a uma representação sempre fragmentária desse todo inapreensível. Guardadas as devidas proporções, o Google Earth indica o salto intermitente de um pólo
ao outro, na ambição totalizante da
arte. Ambição humana, trágica, como a de Hamlet, quando declara:
"podia ver-me encerrado em uma
casca de noz e sentir-me o rei do espaço infinito..., não tivesse eu sonhos atormentados".
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