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CECILIA GIANNETTI
Coisas do Catete
O Catete tenta se renovar para fazer jus à classificação de zona sul. Mas ainda é tão Centro quanto a Glória
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RECONSTROEM O bairro à base
de britadeiras, escavadeiras e
marteladas. A vitalidade de
máquinas e braços ataca às primeiras horas da manhã, sol baixo, para
emitir a cacofonia que tira da cama
os fantasmas do palácio do Catete,
sede do poder republicano entre
1897 e 1960. Nada menos do que 18
presidentes da República ali governaram e tomaram decisões como
meter o Brasil em duas guerras
mundiais.
Os figurões, dentre eles o suicida
Getúlio Vargas, são despertados todos os dias pelos ruídos que escapam das ruelas do bairro que tenta
se restaurar e renovar para fazer jus
à classificação de zona sul. Ainda é
tão Centro quanto a Glória -também equivocadamente chamada zona sul-, com seu jeito de passado
eterno e passos lerdos dos que dividem calçadas estreitas com hordas
de camelôs.
Estes ambulantes são ainda mais
antiquados que os das avenidas Rio
Branco e Nossa Senhora de Copacabana. Especializam-se em vender
coisas que ninguém mais quer, ou
não têm mais vontade para querer
depois de mortos.
Um neto joga fora o pé de sapato
sem par que o avô guardava, sabe-se
lá pra quê. E o pé de sapato é posto à
venda pelo camelô que o catar primeiro no lixo. Surge num dos plásticos estendidos na calçada irregular a cabeça de uma boneca sem olhos.
Quem pode depender, para comer,
da venda de algo tão insólito?
A cabeça da boneca é comprada
por um artista plástico que tem estúdio ali perto e fará alguma coisa
engraçada com a aquisição. Outros
compram passarinho de madeira
que pia e gato de pelúcia que mia à
pilha. A fila de gente caminha pela
rua principal quase sem se mover,
vai parando para olhar esses objetos
de outro mundo.
O palácio virou museu após a mudança da Capital Federal para Brasília, conforme explica Raí aos fregueses-turistas que comem na loja de
sucos na qual trabalha. Gosta de repetir por cima do balcão o que
aprende nos livros. Vende-se ali perto o do Roberto Carlos, "o proibidão
do Rei", mas Raí só se interessa por
guerras e presidentes, estratégias e
complôs políticos. Por exemplo: em
fevereiro deste ano, a vedete Virginia Lane, então aos 87 anos, foi ao
rádio dizer que estava deitada na cama com Getúlio quando quatro sujeitos encapuzados entraram no
quarto presidencial do palácio para
assassiná-lo. Coisas do Catete.
Aqui a definição de beleza é mais
democrática. Os homens cobertos
de poeira só silenciam as britadeiras
e martelos para fazer "tssss" destinados essencialmente ao que a população criada à base de açaí e Photoshop de revistas masculinas consideraria moças feias. Cacarejam,
guincham, sibilam às mais ajeitadinhas, caso não passe alguma com a
barriga escapando do jeans.
O trabalho desses homens cobertos de poeira é erguer prédios novos
e a moral caída das chamadas barangas. Seu trabalho é impedir que os
fantasmas durmam depois das oito
da manhã.
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