São Paulo, terça-feira, 07 de agosto de 2007

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CECILIA GIANNETTI

Coisas do Catete


O Catete tenta se renovar para fazer jus à classificação de zona sul. Mas ainda é tão Centro quanto a Glória

RECONSTROEM O bairro à base de britadeiras, escavadeiras e marteladas. A vitalidade de máquinas e braços ataca às primeiras horas da manhã, sol baixo, para emitir a cacofonia que tira da cama os fantasmas do palácio do Catete, sede do poder republicano entre 1897 e 1960. Nada menos do que 18 presidentes da República ali governaram e tomaram decisões como meter o Brasil em duas guerras mundiais.
Os figurões, dentre eles o suicida Getúlio Vargas, são despertados todos os dias pelos ruídos que escapam das ruelas do bairro que tenta se restaurar e renovar para fazer jus à classificação de zona sul. Ainda é tão Centro quanto a Glória -também equivocadamente chamada zona sul-, com seu jeito de passado eterno e passos lerdos dos que dividem calçadas estreitas com hordas de camelôs.
Estes ambulantes são ainda mais antiquados que os das avenidas Rio Branco e Nossa Senhora de Copacabana. Especializam-se em vender coisas que ninguém mais quer, ou não têm mais vontade para querer depois de mortos.
Um neto joga fora o pé de sapato sem par que o avô guardava, sabe-se lá pra quê. E o pé de sapato é posto à venda pelo camelô que o catar primeiro no lixo. Surge num dos plásticos estendidos na calçada irregular a cabeça de uma boneca sem olhos. Quem pode depender, para comer, da venda de algo tão insólito?
A cabeça da boneca é comprada por um artista plástico que tem estúdio ali perto e fará alguma coisa engraçada com a aquisição. Outros compram passarinho de madeira que pia e gato de pelúcia que mia à pilha. A fila de gente caminha pela rua principal quase sem se mover, vai parando para olhar esses objetos de outro mundo.
O palácio virou museu após a mudança da Capital Federal para Brasília, conforme explica Raí aos fregueses-turistas que comem na loja de sucos na qual trabalha. Gosta de repetir por cima do balcão o que aprende nos livros. Vende-se ali perto o do Roberto Carlos, "o proibidão do Rei", mas Raí só se interessa por guerras e presidentes, estratégias e complôs políticos. Por exemplo: em fevereiro deste ano, a vedete Virginia Lane, então aos 87 anos, foi ao rádio dizer que estava deitada na cama com Getúlio quando quatro sujeitos encapuzados entraram no quarto presidencial do palácio para assassiná-lo. Coisas do Catete.
Aqui a definição de beleza é mais democrática. Os homens cobertos de poeira só silenciam as britadeiras e martelos para fazer "tssss" destinados essencialmente ao que a população criada à base de açaí e Photoshop de revistas masculinas consideraria moças feias. Cacarejam, guincham, sibilam às mais ajeitadinhas, caso não passe alguma com a barriga escapando do jeans.
O trabalho desses homens cobertos de poeira é erguer prédios novos e a moral caída das chamadas barangas. Seu trabalho é impedir que os fantasmas durmam depois das oito da manhã.


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