São Paulo, sábado, 07 de setembro de 2002

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Palavras a postos


Texto de Alfredo Bosi mostra como Iluminismo europeu influenciou produção cultural brasileira durante a colônia


Leia abaixo o início de "As Sombras das Luzes na Condição Colonial", terceiro capítulo de "Literatura e Resistência", de Alfredo Bosi, que reúne ensaios nunca publicados conjuntamente e que deve ser lançado este mês pela Companhia das Letras. O trecho seguinte é de um dos dois únicos textos totalmente inéditos do volume.

A questão das Luzes como reflexão sobre o seu verdadeiro alcance na humanização do Ocidente tornou-se particularmente dramática para nós, latino-americanos, que, ao longo da construção dos discursos ilustrados, vivemos uma condição colonial.
Na segunda metade do século 18, quando as Luzes resplandeciam na Europa e os seus militantes elaboravam um ideário de liberdade e tolerância, pressupostos dos Direitos do Homem, a situação política nas colônias tornava-se mais opressiva. O tráfico negreiro e a prática escravista intensificavam-se nas diversas áreas de plantagem: o Nordeste brasileiro, as Antilhas, o Sul algodoeiro dos Estados Unidos. E nas áreas platina e andina exterminavam-se a ferro e fogo populações indígenas que lutavam para sobreviver em paz.
Não se tratava, evidentemente, de algum mero desajuste ou disparate ideológico, do tipo ilustração com escravismo, mas, a rigor, de uma contradição estrutural, sistêmica, porque radicada nos impasses do exclusivo colonial e na autodefesa do poder metropolitano, então em fase de alerta e enrijecimento. No pano de fundo das ações recolonizadoras de Portugal e Espanha movia-se o xadrez da política européia com suas alianças e rivalidades. As economias escravistas eram peça integrante desse xadrez; de resto, o jogo, manobrado pelo imperialismo britânico, continuará a condicionar os movimentos das independências latino-americanas e o desenho geral das economias pós-coloniais ao longo do século 19.
Igualmente estrutural seria a ambivalência dos discursos produzidos por intelectuais nascidos em colônias, que se viam a si mesmos como europeus e "americanos" (adjetivo que se foi tornando cada vez mais reivindicativo) e, no contexto do ciclo de ouro, portugueses e brasileiros.
A partir dos meados do século 18, a Razão passou a ser chamada indefectivelmente a dar o seu lume; no caso, o critério para aferir o acerto ou a necessidade objetiva das medidas metropolitanas. Instaurou-se um processo de justificação ideológica do poder monárquico português, atitude que só seria superada pela geração que participou ativamente das lutas pela independência.
Olhando em retrospecto, vemos hoje que o problema crucial residia no lugar político da Razão. De onde vinha aquela voz que se pretendia universal, logo ubíqua, e que, no entanto, mudava de argumento conforme a posição dos interesses em jogo?
Do lado do agente metropolitano, militar ou burocrata, julgava-se razoável submeter indígenas ou africanos "rudes", "bárbaros" e "incultos" a trabalhos compulsórios e tratá-los como crianças rebeldes às quais, afinal, só a coerção física daria o remédio eficaz da civilização: o que resultava na racionalização (dita moderna) do uso da força.
Do lado do nativo, o discurso, quando chegava a franquear o limiar da escrita, assumia a perspectiva da liberdade dos povos sancionada pela idéia de uma Natureza humana e racional comum que a todos deveria irmanar.
Seguir a primeira argumentação significava aceitar como necessários os instrumentos legais e militares do poder colonial. Abraçar a segunda resultava em denunciar a força como injusta e apelar para os valores daquela Humanidade ciosa de emancipação que os ilustrados europeus vislumbravam no horizonte dos seus embates contra a tirania.
Uma terceira via parecia excluída nos termos dessa lógica binária: ou a racionalização da força colonizadora, ou a sua denúncia.
Acontece, porém, que a história das ideologias e das mentalidades não se esgota na armação de dilemas abstratos: ou... ou. Ao contrário: foi essa mesma condição colonial, em tempos ilustrados, que, no dinamismo dos seus contrastes, facultou a articulação de um discurso dúplice, capaz de acolher e deplorar, alternadamente, medidas conjunturais de opressão e repressão.
Saindo da órbita ilustrada, poderíamos retroceder ao drama vivido no século 17, quando já topamos com as contradições de um padre Antônio Vieira, cujos sermões ardorosos em favor dos nativos acabaram sendo embaçados ou neutralizados pela admissão do argumento especioso, mas formalmente racional, da "guerra justa". Tratava-se de um espaço de conflito entre colonos e jesuítas: as razões dos primeiros (no fundo, mera alegação da conveniência de prear índios) eram rebatidas pelas razões dos últimos, escoradas no "jus gentium" da escolástica tardia, e que, "ipso facto", não podem ser lidas como antecipações lógicas do discurso "philosophique", que só no século seguinte penetraria a cultura portuguesa.
Seria, de todo modo, com a maré da nova cultura da Ilustração, promovida a ideário do Estado por obra do marquês de Pombal, que as Luzes coincidiriam com as sombras da vigilância metropolitana. O moderno introduzido em Portugal não se universalizava livremente na medida em que os constrangimentos econômicos e os mecanismos do aparelho estatal exigiam a vassalagem dos colonos brancos, o controle dos nativos e a escravização dos negros. As luzes da metrópole precisavam das sombras coloniais assim como o poder real precisava de súditos para melhor irradiar-se.
Seja dito entre parênteses: a razão dos ilustrados e, mais tarde, a razão dos liberais, donos do poder no século 19, encontraram o seu limite estrutural na questão do trabalho. A prática do déspota ilustrado (assim como a do senhor de terras interessado no jogo parlamentar formalmente liberal) não poderia passar no teste da liberdade generalizada que deveria incluir a emancipação efetiva do homem que trabalhava compulsoriamente. A ilustração portuguesa, assim como a do liberalismo oficial do Brasil-Império, exerceu com sistemática coerência autodefensiva a prática da exclusão. O fazendeiro liberal do Brasil até, pelo menos, o terceiro quartel do século 19 não podia nem queria deixar de ser o que foi: conservador e discriminador racial. Basta ler os "Anais do Parlamento" de 1871 para verificar a reação negativa dos representantes da oligarquia cafeeira em face da Lei do Ventre Livre, discretamente apoiada por d. Pedro 2º. Só às vésperas da Abolição, quando a campanha chegava ao clímax e as fugas dos escravos se multiplicavam pelo país, é que a "racionalidade moderna" dos fazendeiros do Oeste paulista, tão superestimada pelo weberianismo acadêmico, resolveu ceder, impondo sempre a condição de que o Estado lhe fornecesse subsídios para custear a imigração que viria substituir o braço negro. Foi esta a indenização real exigida e alcançada pelos cafeicultores paulistas.



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