São Paulo, sábado, 07 de setembro de 2002

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LIVRO/LANÇAMENTO

"RETRATO DO ARTISTA QUANDO JOVEM CÃO"

Dylan Thomas surge concreto e irreal

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

Num de seus poemas mais bonitos, Dylan Thomas (1914-1953) fala de quando ele era "moço e solto, sob os galhos das maçãs", e "tão feliz como era verde a relva e estrelada a noite". Numa sensação puramente física de felicidade, ele era um menino que corria "como um príncipe", pelos campos de cevada e margarida, "recebendo as honras de raposas e faisões".
É esse o espírito, ao mesmo tempo exaltado, concreto e irreal, da maioria dos contos autobiográficos que compõem seu "Retrato do Artista Quando Jovem Cão." A referência ao célebre livro de James Joyce, escrito mais de vinte anos antes, é tanto uma homenagem quanto uma clara demarcação de diferenças.
As primeiras páginas do "Retrato do Artista Quando Jovem", de Joyce, impressionam pela quase miraculosa capacidade do autor de recriar a linguagem e o mundo interno da criança. Nos primeiros contos do livro de Dylan Thomas, o que surge é o "mundo externo" da criança, como que incendiado de vida. No primeiro conto, o narrador acaba de entrar numa casa de fazenda, depois de uma viagem de charrete, à noite, no inverno. É recebido por sua tia Annie.
"Um minuto antes eu era pequeno e sentia frio, me escondendo morto de medo num beco escuro em meu melhor terno engomado, com a barriga vazia ressoando e o coração como uma bomba-relógio, apertando o gorro da escola primária, estranho a meus próprios olhos, um contador de histórias de nariz arrebitado perdido em suas próprias aventuras e com saudades de casa; no minuto seguinte era um sobrinho real em vistosas roupas urbanas, abraçado e bem-recebido, de pé no centro aconchegante das minhas histórias e ouvindo o relógio anunciar-me. Ela me conduziu na direção do assento junto à cavernosa lareira e tirou-me os sapatos. As lâmpadas radiantes e os gongos rituais fulguraram e reverberaram para mim."
Não é só de aconchego, de acolhimento, que se faz a felicidade do narrador. Com mais frequência, destacam-se instantes em que o menino sai simplesmente correndo pelo campo, imaginando-se num filme de faroeste, brigando aos socos e pontapés com um colega, ou tentando acertar passarinhos com um estilingue.
"Um vento cálido soprava de onde fazia mais verão. Uma névoa matinal subia do chão, flutuava entre as árvores e escondia pássaros ruidosos. No nevoeiro e no vento, minhas pedras voavam leves como grãos de saraiva num mundo sem restrições. A manhã passou sem que um só pássaro caísse."
Menos do que Joyce, Dylan Thomas lembra aqui alguns textos de Rimbaud; é como se todo o universo estivesse na hora do recreio para esses meninos-poetas incontidos, selvagens, em estado de graça. À medida que avançamos na leitura do livro, o narrador vai abandonando a infância; os últimos contos já tratam dos primeiros passos de Dylan Thomas na vida literária e boêmia do entre-guerras, e de seus primeiros tropeços também.
Ele passa uma noite debaixo de um viaduto, conversando com dois vagabundos; de repente, "o trem atirou-se contra nós, o viaduto rugiu, as rodas gemeram em nossas cabeças, ficamos ensurdecidos e de olhos faiscantes e esmagados sob o peso ígneo e nos levantamos novamente, como homens negros e demolidos, no túmulo do viaduto. Ruído algum chegava da cidade desaparecida".
É ainda a mesma sintaxe maravilhada, o mesmo modo de destacar um acontecimento ou uma cena, cercando-os de vazio, num estado de consciência que não é nem o do sonho nem o da vigília, mas talvez o de um despertar contínuo. A felicidade "natural" do narrador vai dando lugar, entretanto, a uma cada vez mais intensa identificação com os pobres-diabos e os fracassados.
Nos instantes de maior alegria, diz Thomas, "eu tinha mais amor em mim do que poderia querer ou poderia usar". Numa tarde de verão, sozinho, num bar (Thomas morreria em conseqüência do alcoolismo, aos 39 anos) o narrador se vê "buscando companhia embora a recusasse", e percebe que "acabara por encontrar e perder a verdadeira felicidade, num espantoso e canhestro meio minuto junto do aviso "Cavalheiros" e do relógio de ponteiros de arabesco."
Em menos de duzentas páginas, e percorrendo apenas uns dez anos da vida de seu autor, o extraordinário livro de Dylan Thomas se expande em direções opostas. A tentação do resenhista seria citar mais trechos, e páginas inteiras de cada conto; mas, contendo sua exaltação, cabe-lhe terminar por aqui.


Retrato do Artista Quando Jovem Cão     
Autor: Dylan Thomas
Tradução: Hélio Pólvora
Editora: José Olympio
Quanto: R$ 20 (189 págs.)




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