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LIVRO/LANÇAMENTO
"RETRATO DO ARTISTA QUANDO JOVEM CÃO"
Dylan Thomas surge concreto e irreal
MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA
Num de seus poemas mais
bonitos, Dylan Thomas
(1914-1953) fala de quando ele era
"moço e solto, sob os galhos das
maçãs", e "tão feliz como era verde a relva e estrelada a noite". Numa sensação puramente física de
felicidade, ele era um menino que
corria "como um príncipe", pelos
campos de cevada e margarida,
"recebendo as honras de raposas
e faisões".
É esse o espírito, ao mesmo
tempo exaltado, concreto e irreal,
da maioria dos contos autobiográficos que compõem seu "Retrato do Artista Quando Jovem
Cão." A referência ao célebre livro
de James Joyce, escrito mais de
vinte anos antes, é tanto uma homenagem quanto uma clara demarcação de diferenças.
As primeiras páginas do "Retrato do Artista Quando Jovem", de
Joyce, impressionam pela quase
miraculosa capacidade do autor
de recriar a linguagem e o mundo
interno da criança. Nos primeiros
contos do livro de Dylan Thomas,
o que surge é o "mundo externo"
da criança, como que incendiado
de vida. No primeiro conto, o narrador acaba de entrar numa casa
de fazenda, depois de uma viagem
de charrete, à noite, no inverno. É
recebido por sua tia Annie.
"Um minuto antes eu era pequeno e sentia frio, me escondendo morto de medo num beco escuro em meu melhor terno engomado, com a barriga vazia ressoando e o coração como uma
bomba-relógio, apertando o gorro da escola primária, estranho a
meus próprios olhos, um contador de histórias de nariz arrebitado perdido em suas próprias
aventuras e com saudades de casa; no minuto seguinte era um sobrinho real em vistosas roupas urbanas, abraçado e bem-recebido,
de pé no centro aconchegante das
minhas histórias e ouvindo o relógio anunciar-me. Ela me conduziu na direção do assento junto à
cavernosa lareira e tirou-me os sapatos. As lâmpadas radiantes e os
gongos rituais fulguraram e reverberaram para mim."
Não é só de aconchego, de acolhimento, que se faz a felicidade
do narrador. Com mais frequência, destacam-se instantes em que
o menino sai simplesmente correndo pelo campo, imaginando-se num filme de faroeste, brigando aos socos e pontapés com um
colega, ou tentando acertar passarinhos com um estilingue.
"Um vento cálido soprava de
onde fazia mais verão. Uma névoa matinal subia do chão, flutuava entre as árvores e escondia pássaros ruidosos. No nevoeiro e no
vento, minhas pedras voavam leves como grãos de saraiva num
mundo sem restrições. A manhã
passou sem que um só pássaro
caísse."
Menos do que Joyce, Dylan
Thomas lembra aqui alguns textos de Rimbaud; é como se todo o
universo estivesse na hora do recreio para esses meninos-poetas
incontidos, selvagens, em estado
de graça. À medida que avançamos na leitura do livro, o narrador vai abandonando a infância;
os últimos contos já tratam dos
primeiros passos de Dylan Thomas na vida literária e boêmia do
entre-guerras, e de seus primeiros
tropeços também.
Ele passa uma noite debaixo de
um viaduto, conversando com
dois vagabundos; de repente, "o
trem atirou-se contra nós, o viaduto rugiu, as rodas gemeram em
nossas cabeças, ficamos ensurdecidos e de olhos faiscantes e esmagados sob o peso ígneo e nos levantamos novamente, como homens negros e demolidos, no túmulo do viaduto. Ruído algum
chegava da cidade desaparecida".
É ainda a mesma sintaxe maravilhada, o mesmo modo de destacar um acontecimento ou uma cena, cercando-os de vazio, num estado de consciência que não é
nem o do sonho nem o da vigília,
mas talvez o de um despertar contínuo. A felicidade "natural" do
narrador vai dando lugar, entretanto, a uma cada vez mais intensa identificação com os pobres-diabos e os fracassados.
Nos instantes de maior alegria,
diz Thomas, "eu tinha mais amor
em mim do que poderia querer
ou poderia usar". Numa tarde de
verão, sozinho, num bar (Thomas
morreria em conseqüência do alcoolismo, aos 39 anos) o narrador
se vê "buscando companhia embora a recusasse", e percebe que
"acabara por encontrar e perder a
verdadeira felicidade, num espantoso e canhestro meio minuto
junto do aviso "Cavalheiros" e do
relógio de ponteiros de arabesco."
Em menos de duzentas páginas,
e percorrendo apenas uns dez
anos da vida de seu autor, o extraordinário livro de Dylan Thomas se expande em direções
opostas. A tentação do resenhista
seria citar mais trechos, e páginas
inteiras de cada conto; mas, contendo sua exaltação, cabe-lhe terminar por aqui.
Retrato do Artista Quando
Jovem Cão
Autor: Dylan Thomas
Tradução: Hélio Pólvora
Editora: José Olympio
Quanto: R$ 20 (189 págs.)
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