São Paulo, sábado, 07 de setembro de 2002

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11.09 UM ANO DEPOIS

A dama da guerra


A escritora e ensaísta americana Susan Sontag diz à Folha que os EUA usam terrorismo como pretexto de expansão de sua política externa


CASSIANO ELEK MACHADO
ENVIADO ESPECIAL AO RIO

Para a famosa equação proposta por Maquiavel sobre a conveniência do príncipe ser mais amado ou mais temido há quem responda com a primeira ou com a segunda qualidade. Desde que apareceu como a princesa da intelectualidade norte-americana, nos anos 60, Susan Sontag demonstrou que seria os dois ao mesmo tempo.
Já quando estreou no ensaísmo, em "Contra a Interpretação" (66), a pensadora norte-americana mostrou que era boa de briga -e que suas campanhas quase sempre terminavam com aclamação, ao menos da comunidade crítica.
Com o passar dos anos, Sontag, 69, foi aumentando seu poder de fogo. E sua popularidade se expandiu de tal forma que a autora de livros clássicos do ensaísmo contemporâneo como "A Doença como Metáfora" chegou até a ser citada no extrapop "Gremlins".
Mas de todas suas batalhas campais duas foram realmente mais explosivas. Primeiro, em 1993, ela mudou para Sarajevo em plena Guerra da Bósnia, onde se entrincheirou por dois anos. Seus artigos ou o fato de ter dirigido montagem de "Esperando Godot" na cidade sitiada foram amplamente bombardeados.
Mas foi um ensaio de mil palavras publicado em setembro do ano passado na revista "New Yorker" que causou o grande estrondo de sua carreira.
Sua defesa de que os ataques não tinham sido "covardes" gerou reações odiosas contra a intelectual. Basta dizer que a importante "New Republic", publicou a seguinte frase: "O que Osama bin Laden, Saddam Hussein e Susan Sontag tem em comum? Todos querem a destruição dos EUA".
Nesta semana, faltando pouco para o aniversário de um ano de 11 de setembro, a intelectual esteve no Rio de Janeiro, para uma conferência na Biblioteca Nacional. Em mesa com o historiador italiano Carlo Guinzburg e mediação da antropóloga Lilia Moritz Schwarcz, Sontag leu trecho de seu próximo livro de ensaios "Olhando para a Dor dos Outros" e falou sobre fotografia, memória e guerra -sem mencionar os ataques terroristas.
Algumas horas antes do evento, porém, ela falou sobre o assunto com a Folha, em conversa iniciada em táxi e finalizada na beira da piscina do Copacabana Palace.
Na entrevista, ela bate pesado no governo americano, faz previsões otimistas para o Brasil, critica escritores do porte de Harold Pinter e Philip Roth e diz que suas brigas não são só contra os outros. O próximo título a entrar para sua extensa bibliografia, que inclui romances (sua paixão), peças e ensaios, tem como objetivo desmontar argumentos de seu clássico "On Photography", de 1977. Leia trechos a seguir.

Folha - No seu artigo que o "New York Times" vai publicar na próxima semana sobre um ano de 11 de setembro a sra. afirma que a guerra sobre a qual vem falando George W. Bush é uma metáfora. Por quê?
Susan Sontag -
Isso começa pela minha oposição à atual administração dos Estados Unidos, meu intenso desgostar do grupo de Bush. Acho que eles têm usado os ataques de 11/9 como um pretexto para uma extensão da política externa americana. E eles usam o termo guerra para cobrir isso.
"Estamos em guerra, então não podemos debater. Temos de nos unir contra o inimigo", pensa o povo. E assim por diante.

Folha - Mas a política externa americana não foi sempre conduzida por "metáforas", como "América para os americanos" ou o "big stick" (o grande porrete)?
Sontag -
Sim, é verdade. Devo dizer que não sou contra metáforas. Mas venho me dedicando há muito tempo a dizer "isto é o que é, não alguma outra coisa". Desde meus escritos de quando tinha 20 anos até hoje me guio pelo interesse de mostrar as coisas como elas são. Assim é mais fácil entendermos melhor a vida. Não sou contra a metáfora na poesia, claro, mas essa figura de linguagem é muito poderosa e pode servir para demagogia e mistificação.
Se você for para os EUA hoje não vai ver guerra alguma, só um país mais repressivo.
Antes havia o "império do mal", a União Soviética. Depois eles se suicidaram. Por 20 anos os EUA não tiveram um "império" contra quem lutar. Agora eles têm novamente. E é um império virtual.

Folha - Império do mal foi como o dramaturgo inglês Harold Pinter classificou os EUA de hoje em recente declaração. Em festival literário em Edimburgo, há 15 dias, ele disse que o 11 de setembro não é um ato isolado, e que reflete o que o mundo pensa sobre os EUA -"o país mais poderoso e odiado do planeta". Você concorda?
Sontag -
Não. Acho que o que ele diz, dessa forma, é nonsense. Algumas coisas são verdadeiras. Que o 11/9 não foi um fenômeno isolado é bastante claro. Nem o governo americano o diria. Mas dizer que isso é o que todos pensam dos EUA é estúpido. Isso é metade do que as pessoas pensam dos EUA. (risos) A outra parte é a mais abjeta adoração a essa cultura popular terrível que corrompe o planeta. Minha visão talvez seja simplista, mas a de Pinter é ainda mais. Ele é um demagogo.
O imperialismo americano é amado e odiado. O Brasil, que sofre isso na pele, deve saber.

Folha - E o que a sra., como americana, pensa do Brasil?
Sontag -
É um país fantástico. Há 70 anos que se escuta dizer que será uma das grandes nações do futuro. É verdade, acredito em Stefan Zweig, que escreveu "Brasil, País do Futuro", ainda que pense que o futuro talvez demore.
O Brasil tem de ser um país poderoso. Tem uma cultura fascinante, um espaço gigantesco, está em uma parte importante do mundo. Mas é um país com problemas. Vocês estão no complicado final de uma cadeia econômica global, que é controlada pelos EUA. É natural, portanto, que as pessoas aqui tenham raiva dos EUA e de sua arrogância. Se fosse brasileira, eu teria muita raiva. Acho que se fosse cidadã de qualquer país do mundo teria. Mas isso não tem nada a ver com matar 3.000 pessoas em um prédio.

Folha - A sra. escreveu em "On Photography" que os Estados Unidos são um país surrealista. O que a sra. pensa disso 25 anos depois? Sontag - É a mesma coisa. Não é uma opinião pessoal minha. Acho que todo país grande e com tradição em fantasiar pode ser chamado de surreal. O Brasil por exemplo. OK, o Canadá não poderia ser chamado de surreal. O que devo dizer sobre os EUA, o que acho que nunca disse, é que o que me impressiona mesmo, nesse aspecto, é a quantidade de gente louca que vive por lá. Maníacos religiosos. Existem pelo menos 100 milhões de americanos que acreditam em diabo, no fim do mundo chegando logo, que o mundo foi criado em seis dias, que Darwin é só uma teoria. Você pode dizer que aqui no Brasil também existem milhões de pessoas que acreditam nisso. Mas pelo menos eles não estão dirigindo o país. Aqui não são as idéias das pessoas educadas, como lá. Há muito irracionalismo nos EUA.

Folha - A sra. vai lançar em outubro um livro de ensaios chamado "Olhando para a Dor dos Outros", que discute fotografias de guerra. Como esse trabalho se relaciona com "On Photography", de 1977?
Sontag -
O crítico Roberto Schwarcz, um autor que adoro e que é um dos meus ensaístas prediletos de todo o mundo, escreveu um artigo muito bom sobre isso. Ele fala sobre como a proximidade física de imagens de algo que acontece muito longe traz segurança. Você vê pela TV um leão na selva e o aparelho pode estar muito próximo a você. Você vê ele de perto e ele não te vê.
O mesmo se passa com guerras. Eu discuto a diferença em ver Sarajevo pela TV ou pessoalmente, onde estive. Isso normalmente é lido como se fôssemos nos importar ainda menos com imagens violentas, com a banalização que poderia causar. Fui uma das pessoas que começou com essa idéia, em "On Photography".
Aí chego a sua pergunta. Uma das razões pelas quais escrevi o novo ensaio é discutir comigo mesma. Talvez pela experiência da guerra na Bósnia. Por ver diariamente os jornalistas arriscando suas vidas para fotografarem a guerra. Essas imagens realmente são importantes, mantiveram Sarajevo viva na cabeça das pessoas.
Hoje sou contra essa idéia sofisticada, mas barata, de que quando se vê essas fotos se fica mais "blasé". Elas podem causar impacto.

Folha - Falando em impacto, o que a sra. pensa de um artigo do site Salon que classifica seu ensaio sobre o 11/9 como o momento de maior impacto de sua carreira?
Sontag -
Fiquei completamente chocada e irritada com o linchamento pelo qual passei quando escrevi sobre o 11/9.
Tomei várias posições radicais em minha vida, e me orgulho disso. Acho que o que disse sobre os ataques terroristas, porém, não foi nada radical. Foi quase senso comum. Ser mais atacada por esse artigo do que por qualquer outro é muito ruim. Demonstra o ponto mais baixo de tolerância para o debate nos EUA desde que iniciei. E foram ataques pesados.

Folha - Quais lhe afetaram mais? Sontag - O da revista "New Republic", que me comparou a Osama bin Laden e Saddam Hussein.

Folha - Hussein é hoje o grande inimigo americano. O que a sra. acha que há por trás dessa nova guerra?
Sontag -
Petróleo é o elemento central, mas a indústria armamentista também ocupa papel importante na história. Eles precisam de uma nova chance para usar seus brinquedos. E também há o lobby de Israel. A guerra seria muito boa para Sharon. Hussein é um monstro, mas existem vários deles. O líder do Turcomenistão é um, mas os EUA acabam de assinar um acordo com ele.

Folha - A sra. não tem interesse em escrever um romance com temas como esses? O que a sra. está produzindo atualmente?
Sontag -
Estou fazendo um romance que não tem muita relação com isso. Se chama "A Sala do Karaokê", e é ambientado no Japão. Estou escrevendo muito, me sinto muito bem. Fiquei muito doente há alguns anos. Tive câncer novamente, 25 anos depois de ter pela primeira vez. Mas agora estou bem. Tanto que estou fazendo um novo ensaio sobre o câncer.

Folha - Para combater seu "A Doença Como Metáfora"?
Sontag -
Provavelmente (risos). Gosto de brigar comigo mesma. Mas será algo bem diferente. Muito mais meditativo. Depois de 40 anos publicando acho que descobri o tipo de texto que quero fazer.
O autor alemão W.G. Sebald, que morreu recentemente, mudou minhas idéias. O li não como descoberta, mas como confirmação. Posso fazer algo mais lírico.

Folha - Por isso que a sra. diz que os romances "Na América" e "O Amante do Vulcão" são seus textos de que mais gosta?
Sontag -
Acho que sim. Gosto mesmo é de fazer ficção. Mas talvez meu senso de dever, que talvez seja superdesenvolvido, me impulsiona a discutir problemas. Gostaria de ser egoísta, do mesmo modo como Philip Roth, que diz não fazer ensaios para que não roubem atenção de sua prosa.


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