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11.09 UM ANO DEPOIS
A dama da guerra
A escritora e ensaísta americana Susan Sontag diz à Folha que os EUA usam terrorismo como pretexto de expansão de sua política externa
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CASSIANO ELEK MACHADO
ENVIADO ESPECIAL AO RIO
Para a famosa equação proposta
por Maquiavel sobre a conveniência do príncipe ser mais amado ou
mais temido há quem responda
com a primeira ou com a segunda
qualidade. Desde que apareceu
como a princesa da intelectualidade norte-americana, nos anos
60, Susan Sontag demonstrou que
seria os dois ao mesmo tempo.
Já quando estreou no ensaísmo,
em "Contra a Interpretação" (66),
a pensadora norte-americana
mostrou que era boa de briga -e
que suas campanhas quase sempre terminavam com aclamação,
ao menos da comunidade crítica.
Com o passar dos anos, Sontag,
69, foi aumentando seu poder de
fogo. E sua popularidade se expandiu de tal forma que a autora
de livros clássicos do ensaísmo
contemporâneo como "A Doença
como Metáfora" chegou até a ser
citada no extrapop "Gremlins".
Mas de todas suas batalhas campais duas foram realmente mais
explosivas. Primeiro, em 1993, ela
mudou para Sarajevo em plena
Guerra da Bósnia, onde se entrincheirou por dois anos. Seus artigos ou o fato de ter dirigido montagem de "Esperando Godot" na
cidade sitiada foram amplamente
bombardeados.
Mas foi um ensaio de mil palavras publicado em setembro do
ano passado na revista "New Yorker" que causou o grande estrondo de sua carreira.
Sua defesa de que os ataques
não tinham sido "covardes" gerou reações odiosas contra a intelectual. Basta dizer que a importante "New Republic", publicou a
seguinte frase: "O que Osama bin
Laden, Saddam Hussein e Susan
Sontag tem em comum? Todos
querem a destruição dos EUA".
Nesta semana, faltando pouco
para o aniversário de um ano de
11 de setembro, a intelectual esteve no Rio de Janeiro, para uma
conferência na Biblioteca Nacional. Em mesa com o historiador
italiano Carlo Guinzburg e mediação da antropóloga Lilia Moritz Schwarcz, Sontag leu trecho
de seu próximo livro de ensaios
"Olhando para a Dor dos Outros"
e falou sobre fotografia, memória
e guerra -sem mencionar os ataques terroristas.
Algumas horas antes do evento,
porém, ela falou sobre o assunto
com a Folha, em conversa iniciada em táxi e finalizada na beira da
piscina do Copacabana Palace.
Na entrevista, ela bate pesado
no governo americano, faz previsões otimistas para o Brasil, critica
escritores do porte de Harold Pinter e Philip Roth e diz que suas
brigas não são só contra os outros.
O próximo título a entrar para sua
extensa bibliografia, que inclui romances (sua paixão), peças e ensaios, tem como objetivo desmontar argumentos de seu clássico "On Photography", de 1977.
Leia trechos a seguir.
Folha - No seu artigo que o "New
York Times" vai publicar na próxima semana sobre um ano de 11 de
setembro a sra. afirma que a guerra sobre a qual vem falando George
W. Bush é uma metáfora. Por quê?
Susan Sontag - Isso começa pela
minha oposição à atual administração dos Estados Unidos, meu
intenso desgostar do grupo de
Bush. Acho que eles têm usado os
ataques de 11/9 como um pretexto
para uma extensão da política externa americana. E eles usam o
termo guerra para cobrir isso.
"Estamos em guerra, então não
podemos debater. Temos de nos
unir contra o inimigo", pensa o
povo. E assim por diante.
Folha - Mas a política externa
americana não foi sempre conduzida por "metáforas", como "América para os americanos" ou o "big
stick" (o grande porrete)?
Sontag - Sim, é verdade. Devo
dizer que não sou contra metáforas. Mas venho me dedicando há
muito tempo a dizer "isto é o que
é, não alguma outra coisa". Desde
meus escritos de quando tinha 20
anos até hoje me guio pelo interesse de mostrar as coisas como
elas são. Assim é mais fácil entendermos melhor a vida. Não sou
contra a metáfora na poesia, claro, mas essa figura de linguagem é
muito poderosa e pode servir para demagogia e mistificação.
Se você for para os EUA hoje
não vai ver guerra alguma, só um
país mais repressivo.
Antes havia o "império do mal",
a União Soviética. Depois eles se
suicidaram. Por 20 anos os EUA
não tiveram um "império" contra
quem lutar. Agora eles têm novamente. E é um império virtual.
Folha - Império do mal foi como o
dramaturgo inglês Harold Pinter
classificou os EUA de hoje em recente declaração. Em festival literário em Edimburgo, há 15 dias, ele
disse que o 11 de setembro não é
um ato isolado, e que reflete o que
o mundo pensa sobre os EUA -"o
país mais poderoso e odiado do
planeta". Você concorda?
Sontag - Não. Acho que o que ele
diz, dessa forma, é nonsense. Algumas coisas são verdadeiras.
Que o 11/9 não foi um fenômeno
isolado é bastante claro. Nem o
governo americano o diria. Mas
dizer que isso é o que todos pensam dos EUA é estúpido. Isso é
metade do que as pessoas pensam
dos EUA. (risos) A outra parte é a
mais abjeta adoração a essa cultura popular terrível que corrompe
o planeta. Minha visão talvez seja
simplista, mas a de Pinter é ainda
mais. Ele é um demagogo.
O imperialismo americano é
amado e odiado. O Brasil, que sofre isso na pele, deve saber.
Folha - E o que a sra., como americana, pensa do Brasil?
Sontag - É um país fantástico.
Há 70 anos que se escuta dizer que
será uma das grandes nações do
futuro. É verdade, acredito em
Stefan Zweig, que escreveu "Brasil, País do Futuro", ainda que
pense que o futuro talvez demore.
O Brasil tem de ser um país poderoso. Tem uma cultura fascinante, um espaço gigantesco, está
em uma parte importante do
mundo. Mas é um país com problemas. Vocês estão no complicado final de uma cadeia econômica
global, que é controlada pelos
EUA. É natural, portanto, que as
pessoas aqui tenham raiva dos
EUA e de sua arrogância. Se fosse
brasileira, eu teria muita raiva.
Acho que se fosse cidadã de qualquer país do mundo teria. Mas isso não tem nada a ver com matar
3.000 pessoas em um prédio.
Folha - A sra. escreveu em "On
Photography" que os Estados Unidos são um país surrealista. O que a
sra. pensa disso 25 anos depois?
Sontag - É a mesma coisa. Não é
uma opinião pessoal minha. Acho
que todo país grande e com tradição em fantasiar pode ser chamado de surreal. O Brasil por exemplo. OK, o Canadá não poderia ser
chamado de surreal. O que devo
dizer sobre os EUA, o que acho
que nunca disse, é que o que me
impressiona mesmo, nesse aspecto, é a quantidade de gente louca
que vive por lá. Maníacos religiosos. Existem pelo menos 100 milhões de americanos que acreditam em diabo, no fim do mundo
chegando logo, que o mundo foi
criado em seis dias, que Darwin é
só uma teoria. Você pode dizer
que aqui no Brasil também existem milhões de pessoas que acreditam nisso. Mas pelo menos eles
não estão dirigindo o país. Aqui
não são as idéias das pessoas educadas, como lá. Há muito irracionalismo nos EUA.
Folha - A sra. vai lançar em outubro um livro de ensaios chamado
"Olhando para a Dor dos Outros",
que discute fotografias de guerra.
Como esse trabalho se relaciona
com "On Photography", de 1977?
Sontag - O crítico Roberto
Schwarcz, um autor que adoro e
que é um dos meus ensaístas prediletos de todo o mundo, escreveu
um artigo muito bom sobre isso.
Ele fala sobre como a proximidade física de imagens de algo que
acontece muito longe traz segurança. Você vê pela TV um leão na
selva e o aparelho pode estar muito próximo a você. Você vê ele de
perto e ele não te vê.
O mesmo se passa com guerras.
Eu discuto a diferença em ver Sarajevo pela TV ou pessoalmente,
onde estive. Isso normalmente é
lido como se fôssemos nos importar ainda menos com imagens
violentas, com a banalização que
poderia causar. Fui uma das pessoas que começou com essa idéia,
em "On Photography".
Aí chego a sua pergunta. Uma
das razões pelas quais escrevi o
novo ensaio é discutir comigo
mesma. Talvez pela experiência
da guerra na Bósnia. Por ver diariamente os jornalistas arriscando
suas vidas para fotografarem a
guerra. Essas imagens realmente
são importantes, mantiveram Sarajevo viva na cabeça das pessoas.
Hoje sou contra essa idéia sofisticada, mas barata, de que quando
se vê essas fotos se fica mais "blasé". Elas podem causar impacto.
Folha - Falando em impacto, o
que a sra. pensa de um artigo do site Salon que classifica seu ensaio
sobre o 11/9 como o momento de
maior impacto de sua carreira?
Sontag - Fiquei completamente
chocada e irritada com o linchamento pelo qual passei quando
escrevi sobre o 11/9.
Tomei várias posições radicais
em minha vida, e me orgulho disso. Acho que o que disse sobre os
ataques terroristas, porém, não
foi nada radical. Foi quase senso
comum. Ser mais atacada por esse
artigo do que por qualquer outro
é muito ruim. Demonstra o ponto
mais baixo de tolerância para o
debate nos EUA desde que iniciei.
E foram ataques pesados.
Folha - Quais lhe afetaram mais?
Sontag - O da revista "New Republic", que me comparou a Osama
bin Laden e Saddam Hussein.
Folha - Hussein é hoje o grande
inimigo americano. O que a sra.
acha que há por trás dessa nova
guerra?
Sontag - Petróleo é o elemento
central, mas a indústria armamentista também ocupa papel
importante na história. Eles precisam de uma nova chance para
usar seus brinquedos. E também
há o lobby de Israel. A guerra seria
muito boa para Sharon. Hussein é
um monstro, mas existem vários
deles. O líder do Turcomenistão é
um, mas os EUA acabam de assinar um acordo com ele.
Folha - A sra. não tem interesse
em escrever um romance com temas como esses? O que a sra. está
produzindo atualmente?
Sontag - Estou fazendo um romance que não tem muita relação
com isso. Se chama "A Sala do Karaokê", e é ambientado no Japão.
Estou escrevendo muito, me sinto
muito bem. Fiquei muito doente
há alguns anos. Tive câncer novamente, 25 anos depois de ter pela
primeira vez. Mas agora estou
bem. Tanto que estou fazendo um
novo ensaio sobre o câncer.
Folha - Para combater seu "A
Doença Como Metáfora"?
Sontag - Provavelmente (risos).
Gosto de brigar comigo mesma.
Mas será algo bem diferente. Muito mais meditativo. Depois de 40
anos publicando acho que descobri o tipo de texto que quero fazer.
O autor alemão W.G. Sebald,
que morreu recentemente, mudou minhas idéias. O li não como
descoberta, mas como confirmação. Posso fazer algo mais lírico.
Folha - Por isso que a sra. diz que
os romances "Na América" e "O
Amante do Vulcão" são seus textos
de que mais gosta?
Sontag - Acho que sim. Gosto
mesmo é de fazer ficção. Mas talvez meu senso de dever, que talvez seja superdesenvolvido, me
impulsiona a discutir problemas.
Gostaria de ser egoísta, do mesmo
modo como Philip Roth, que diz
não fazer ensaios para que não
roubem atenção de sua prosa.
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